São Paulo, Sábado, 23 de Outubro de 1999
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CINEMA
MAM inicia ciclo de filmes do cineasta espanhol a partir de hoje com "Mulheres..." e "Carne Trêmula"
Cor vulgar de Almodóvar está no MAM

CRISTIAN AVELLO CANCINO
free-lance para a Folha

Pedro Almodóvar é sempre lascivo, polifônico, exuberante. Ele enquadra o círculo das relações humanas em recintos cor-de-rosa e, assim, se torna observador de sentimentos e conflitos levados ao paroxismo por personagens sempre cafonas, irrequietas, narigudas, às voltas com seus próprios afetos.
Mais uma vez teremos acesso ao mundo vulgar e sincero de Almodóvar. É a partir de hoje, às 16h, quando o Museu de Arte Moderna (MAM) inicia um ciclo de filmes homenageando o diretor espanhol que imaginou mulheres armadas vestidas de Jackie Onassis ("Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos"), donas-de-casa assassinas ("Que Fiz Eu Para Merecer Isso?") e freiras viciadas em heroína ("Maus Hábitos").
É, ele foi subversivo, mexeu com os brios da Igreja nos anos 80. Hoje, porém, Almodóvar mostra-se mais conformado, sua cafonice desbotou e deu lugar a cores mais amenas, personagens angustiados e contidos. Exemplo disso é "Carne Trêmula", seu penúltimo filme, formalmente o mais apurado deles.
Para quem não assistiu esse filme no ano passado, quando esteve em cartaz na cidade, vale a pena dar um tempinho na Mostra Internacional de Cinema para vê-lo hoje. Não é o melhor Almodóvar, como se disse, mas traz seu gênio depurado.
"Carne Trêmula" tem início com um parto almodovariano até o osso. Mostra uma mulher dando à luz dentro de um ônibus que trafega por uma Madrid sitiada, convulsa em meio a problemas políticos. Nascia ali, em plena via pública, um sujeito que anos mais tarde se tornaria um jovem entregador de pizzas apaixonado por uma mulher mais velha. Certa feita, o jovem entra sorrateiramente, às escondidas, na casa da mulher e, durante uma discussão, acaba atirando sem intenção num policial que fica paralítico.
No início, por conta da caracterização de Madrid, temos a impressão de que o filme será o libelo político do cineasta para uma geração conformista e desagregada. Vemos, contudo, um final que faz coro com a crença dessa suposta platéia: "Na Espanha, agora ninguém tem medo", diz o narrador, dando a impressão de que algo mudou no diretor iconoclasta de "A Lei do Desejo".
De qualquer forma, pior seria se falássemos aqui de "A Flor de Meu Segredo", provavelmente o mais fraco dos filmes que estão nesta mostra (são nove no total).
Agora, que fique bem entendido. O pior de Almodóvar é melhor que a maioria dos filmes que a indústria cultural tem tratado de nos empurrar goela abaixo nestes últimos anos. Almodóvar desce macio ou cai pesado, nunca fica entalado. Os "pesados" aqui são "Ata-me", "Matador" e "A Lei do Desejo", sobretudo este último, que versa francamente sobre homossexualismo e repressão.
Na linha "light" poderíamos enquadrar o tragicômico "Maus Hábitos", que se passa num convento em que freiras cantam boleros e injetam muita droga. As "redentoras humilhadas" também tomam LSD. Uma delas vê o mundo como em sonhos. Almodóvar aproveita para mostrar aos espectadores o ponto de vista da freira viciada, inundando a tela com cores lisérgicas e divertindo com essa solução cinematográfica para mostrar a "viagem" da freira.
É a mesma "viagem" do diretor. Ele sempre quis imprimir seus filmes das melhores cores que os anos de "subversão" e de respostas a todo tipo de preconceito deixaram nele. É quase uma ironia que este pintor desbocado das bizarrices humanas ganhe um ciclo no Museu de Arte Moderna.


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