São Paulo, quinta-feira, 26 de setembro de 2002

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ABDEL RAHMAN EL BACHA

Pianista franco-libanês faz última apresentação tocando Chopin, Beethoven e Schumann

Suspenso e transparente no ar gelado do jardim

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Ele toca olhando fixo para a frente, para as lonjuras do outro lado da cauda do piano. Ou não olhando: de olhos fechados, virados para as lonjuras de dentro. Sua expressão passa de um quase sorriso, muito tranquilo, a uma quase ânsia, nada agressiva, uma saudade de outro mundo, que a música cria ou faz lembrar. E tudo isso feito com uma elegância inteiramente natural, certa discrição nada tímida, que eleva nosso nível de humanidade por uma hora e pouco, escutando o pianista Abdel Rahman El Bacha.
No ano passado, El Bacha tocou memoravelmente o "Quinteto" de Schumann com o Quarteto Amazônia. Agora veio sozinho, para tocar a "Sonata" em fá menor ("Concerto sem orquestra"), op. 14, de Schumann (1810-56), mais a "Pastoral", op. 28, de Beethoven (1770-1827) e a integral dos "Prelúdios" op. 28, de Chopin (1810-49).
Para além do parentesco numérico -14, 28: pode-se esperar de tudo, até numerologia, de um pianista tão refinado e secreto-, o programa que ele tocou terça-feira no BankBoston é costurado de relações musicais. Desde a sequência genealógica óbvia até as menos óbvias inversões da influência, que El Bacha articula numa segunda ordem. Não se trata só de escutar Chopin em Schumann, por exemplo; mas um Chopin e um Schumann (e um Beethoven) modulados pela sensibilidade muito particular do pianista franco-libanês. Tudo se transporta, sem alarde, para um reino pessoal da música.
Seu tempo, em especial, não lembra o de ninguém. E não se trata de tocar mais rápido ou mais lento do que de hábito -embora ele faça as duas coisas (por exemplo, os "Prelúdios" 1 e 23 bem mais lentos e o 2 bem mais rápido). É o modo de estar na música, não a quantidade de colcheias por segundo que define o tempo.
Vale a pena falar de mais "Prelúdios". O das notas repetidas, nš 12, que ele tocou sem fantasmagorias, mais como um encantamento, ou um jogo. O nš 3, quase sem pedal. O nš 13, como se estivesse descobrindo o piano. Melhor de todos? Um voto para o nš 15 (ré bemol maior), dividido entre uma canção sem palavras e um interlúdio orquestral, a nota repetida oscilando de solar a soturna, e a segunda menor, depois da tempestade, com acentos de tudo o que na vida se vai.
Imagem que resume o concerto: um reflexo do pianista, na parede de vidro atrás do palco, só metade do corpo, transparente, suspenso no ar gelado do jardim. O "Andante" da "Pastoral" de Beethoven, como um duplo de si, suspenso no tempo da música de El Bacha. E nós absortos, perdidos, cada um de nós fora de si, suspensos por alguns minutos nessa vida maior que a música inventa ou faz lembrar.


Abdel Rahman El Bacha     
Onde: Espaço Cultural BankBoston (av. Chucri Zaidan, 246, Brooklin, região sul, tel. 3081-1911)
Quando: hoje, às 21h
Quanto: R$ 30




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