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ABDEL RAHMAN EL BACHA
Pianista franco-libanês faz última apresentação tocando Chopin, Beethoven e Schumann
Suspenso e transparente no ar gelado do jardim
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Ele toca olhando fixo para a
frente, para as lonjuras do outro lado da cauda do piano. Ou
não olhando: de olhos fechados,
virados para as lonjuras de dentro. Sua expressão passa de um
quase sorriso, muito tranquilo, a
uma quase ânsia, nada agressiva,
uma saudade de outro mundo,
que a música cria ou faz lembrar.
E tudo isso feito com uma elegância inteiramente natural, certa
discrição nada tímida, que eleva
nosso nível de humanidade por
uma hora e pouco, escutando o
pianista Abdel Rahman El Bacha.
No ano passado, El Bacha tocou
memoravelmente o "Quinteto"
de Schumann com o Quarteto
Amazônia. Agora veio sozinho,
para tocar a "Sonata" em fá menor ("Concerto sem orquestra"),
op. 14, de Schumann (1810-56),
mais a "Pastoral", op. 28, de Beethoven (1770-1827) e a integral
dos "Prelúdios" op. 28, de Chopin
(1810-49).
Para além do parentesco numérico -14, 28: pode-se esperar de
tudo, até numerologia, de um pianista tão refinado e secreto-, o
programa que ele tocou terça-feira no BankBoston é costurado de
relações musicais. Desde a sequência genealógica óbvia até as
menos óbvias inversões da influência, que El Bacha articula numa segunda ordem. Não se trata
só de escutar Chopin em Schumann, por exemplo; mas um
Chopin e um Schumann (e um
Beethoven) modulados pela sensibilidade muito particular do
pianista franco-libanês. Tudo se
transporta, sem alarde, para um
reino pessoal da música.
Seu tempo, em especial, não
lembra o de ninguém. E não se
trata de tocar mais rápido ou mais
lento do que de hábito -embora
ele faça as duas coisas (por exemplo, os "Prelúdios" 1 e 23 bem
mais lentos e o 2 bem mais rápido). É o modo de estar na música,
não a quantidade de colcheias por
segundo que define o tempo.
Vale a pena falar de mais "Prelúdios". O das notas repetidas, nš
12, que ele tocou sem fantasmagorias, mais como um encantamento, ou um jogo. O nš 3, quase sem
pedal. O nš 13, como se estivesse
descobrindo o piano. Melhor de
todos? Um voto para o nš 15 (ré
bemol maior), dividido entre uma
canção sem palavras e um interlúdio orquestral, a nota repetida oscilando de solar a soturna, e a segunda menor, depois da tempestade, com acentos de tudo o que
na vida se vai.
Imagem que resume o concerto:
um reflexo do pianista, na parede
de vidro atrás do palco, só metade
do corpo, transparente, suspenso
no ar gelado do jardim. O "Andante" da "Pastoral" de Beethoven, como um duplo de si, suspenso no tempo da música de El
Bacha. E nós absortos, perdidos,
cada um de nós fora de si, suspensos por alguns minutos nessa vida
maior que a música inventa ou faz
lembrar.
Abdel Rahman El Bacha
Onde: Espaço Cultural BankBoston (av.
Chucri Zaidan, 246, Brooklin, região sul,
tel. 3081-1911)
Quando: hoje, às 21h
Quanto: R$ 30
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