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São Paulo, quarta-feira, 26 de novembro de 2003

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ARTES

Exposição retrata expedição nos Campos de Guarapuava que resultou em contato entre índios e brancos no século 18

Desenhos ilustram "choque" colonial

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma valiosa peça de propaganda política colonial está hoje sendo divulgada para um público mais amplo: uma exposição em São Paulo revela raríssimas imagens do contato entre brancos e índios no interior do Brasil no final do século 18.
Uma expedição militar luso-brasileira topa com índios Kaingang nos Campos de Guarapuava, então parte da capitania de São Paulo, atual Paraná. O contato é inicialmente amistoso. Depois os brancos sofrem uma emboscada dos índios, perdem alguns mortos e se retiram.
O episódio foi retratado em pranchas coloridas, uma espécie de "história em quadrinhos" setecentista. São 38, com desenhos à base de guache e aquarela, atribuídos a Joaquim José de Miranda. As pranchas ilustram a expedição do tenente-coronel português Afonso Botelho de Sampaio e Souza, em 1771, a décima de 11 "bandeiras" enviadas aos campos habitados pelos Kaingang.
A coleção retrata o desejo da autoridade colonial de mostrar à corte que estava afinada com o projeto político do marquês de Pombal, o poderoso ministro do rei Dom José 1º. Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras e marquês de Pombal (1699-1782), queria reforçar a defesa da América portuguesa face aos vizinhos espanhóis. Para ele os índios eram aliados naturais que deveriam ser preservados.
Ao enviar a coleção para Portugal, os governantes da capitania "procuraram defender seu projeto de conquista dos campos de Guarapuava, transmitindo à Corte imagens de um tratamento humano, simpático e afetuoso dos indígenas, levando rigorosamente ao pé da letra todas as prescrições da política indigenista de Pombal", escreve no catálogo da exposição o historiador Nicolau Sevcenko, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
A própria emboscada, na qual só morreram brancos, teria um bom efeito de propaganda - "oferecendo portanto a oportunidade de representar os militares como as vítimas", segundo Sevcenko. Curiosamente, falta uma prancha na coleção: a de número 39, que mostra o enterro dos soldados mortos.
O comandante da expedição, Afonso Botelho de Sampaio e Souza (1728-93), era primo do governador da capitania de São Paulo, dom Luis Antonio de Souza Botelho Mourão, segundo o colecionador e especialista no período, João Moreira Garcez Filho.
Com apoio do primo, Afonso Botelho recebeu diversos postos e missões, como a construção de um forte em Paranaguá, criação de vilas e as expedições aos "sertões de Guarapuava".
O conjunto pertence à Coleção Beatriz e Mário Pimenta Camargo. As pranchas foram adquiridas pelo casal de colecionadores paulistas em um inusitado leilão por telefone em 1985. "Ficamos perplexos e encantados", diz Beatriz. O leilão aconteceu meses depois, quando o casal estava em São Paulo. "Felizmente não foi muito disputado", diz ela. A coleção estava com os descendentes de Pombal.
"A constituição da obra é bastante heterogênea e compreende vários procedimentos. Tal modalidade de narrativa visual lembra o sermão ilustrado, de pensamento moralizante, de tradição religiosa", afirmam em texto no catálogo Ana Maria de Moraes Belluzzo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e Valéria Piccoli, pesquisadora de arte.
"Embora o desenho seja registrado como de autoria de José Joaquim de Miranda, seu vigoroso colorido, em tinta à base de água, apresenta diferenças de tratamento e acabamento, procedentes de várias mãos", dizem as duas pesquisadoras.
As imagens "possibilitam leituras diversas: nelas se destaca o fascínio que as mercadorias dos brancos exerceram sobre os Kaingang habitantes daquela região, o interesse dos índios pelas vestimentas, armamentos e técnicas (de caça, especialmente) dos europeus, ao mesmo tempo em que introduzem o tema da guerra dos índios contra os estrangeiros", escreve Marta Rosa Amoroso, do Departamento de Antropologia da FFLCH/USP.
Apesar de servir como um catálogo da exposição, o livro não será vendido. Da tiragem de 4.000 exemplares, mil serão distribuídos a bibliotecas e centros culturais; o restante pertence à Fundação BNP Paribas e ao Banco BNP Paribas Brasil.


DO CONTATO AO CONFRONTO: A CONQUISTA DE GUARAPUAVA NO SÉCULO 18. Onde: Fundação Maria Luisa e Oscar Americano (av. Morumbi, 4.077, SP, tel. 0/xx/11/3742-0077). Quando: de ter. a sex., das 11h às 17h; sáb. e dom., das 10h às 17h; até 14/12. Quanto: R$ 8. Livro: edição bilíngue (português e francês), com reprodução das 38 pranchas em exposição e textos de Nicolau Sevcenko, João Moreira Garcez Filho, Marta Rosa Amoroso, Ana Maria de Moraes Belluzzo e Valéria Piccoli. Não disponível para venda.


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