São Paulo, quinta-feira, 28 de outubro de 2004

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Egípcio usa filmes para reconstituir sua vida

JEAN-LUC DOUIN
DO "MONDE"

Em 1977, um amigo médico invadiu a sala de montagem do diretor egípcio Youssef Chahine, ordenou que ele largasse os rolos de filmes e intimou que o acompanhasse ao hospital em que trabalhava em Londres. Lá, o cirurgião lhe informou que ele tinha três artérias bloqueadas e recomendou uma cirurgia imediata.
"Pedi para ver um paciente que tivesse seguido o mesmo tratamento. Mostraram-me um sujeito por trás de um vidro, com uns 40 tubos saindo de seu corpo. Nunca tive medo da morte. Eu aspirava a ser eterno, mais do que deixar uma obra. E uma obra só importa quando diz sua própria verdade. Até lá, eu havia filmado basicamente opiniões de esquerda. Eu, que sempre tive medo de ser descoberto, me dei conta de que aquilo que me importava era contar minha história. E fiquei me perguntando se teria a força necessária para me encarar abertamente", contou o diretor.
Foi assim que, tomado de novo ânimo, Chahine voltou a Alexandria para uma série de filmes autobiográficos. Através de uma história de amor entre um muçulmano e uma judia, "Alexandrie Pourquoi" (1978), ele evoca a harmonia reinante antes da guerra em sua Alexandria natal. Naquele ano, ele assistiu a uma exibição do filme, ao lado de Iasser Arafat. De repente, ouviu o líder palestino exclamar "aquela puta!". Sem saber se o insulto se dirigia a ele ou à personagem", Chahine interpelou Arafat ao final da sessão. "Ele me explicou que a atriz trouxera lembranças de uma moça que o reconfortara no passado".
Desnudar-se não é freqüente no cinema. "É um risco", admite. Quatro anos mais tarde, em "La Mémoire", Chahine retrata um cineasta que passa por uma cirurgia e vê desfilar sua vida, suas obras, seus amores. Em 1989, em "Alexandrie Encore et Toujours", ele aborda o tema do desejo de um cineasta por sua atriz fetiche.
Em "Alexandria... Nova York", ele reconstitui sua juventude, a temporada que passou nos Estados Unidos em (1945-46), para estudar arte dramática.
Agora, o novo filme parece tratar de uma decepção amorosa, porque se Chahine rodou "Alexandria... Nova York", foi para dizer "amo os Estados Unidos. Eles são atacados por toda a imprensa árabe. Mas sei que na alma dos egípcios continua a existir o sonho norte-americano. Não rejeitam o país, mas estão furiosos com o regime. Todas as coisas horríveis que vemos na TV, contra os palestinos, perpetradas com armas dos EUA. Como vocês esperam que eles reajam? Eu estou encolerizado, meu filme poderia se chamar "Raiva no Coração". Estou furioso contra o que vem sendo feito no Iraque. Mas Bush não é os Estados Unidos. Os Estados Unidos são meus amigos, meus professores, minhas dançarinas!"
Em "Alexandria... Nova York", Chahine utiliza um trecho de seu filme "Gare Centrale", no qual interpreta um mendigo trôpego, esquizofrênico. Por que não usar trechos de filmes de Hollywood? "Eu queria usar uma canção de Sinatra, algumas imagens de "Ziegfeld Girl". Pediram-me US$ 2 milhões! E eu queria homenageá-los, os imbecis!"


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