São Paulo, domingo, 22 de março de 2009

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No coração da Antártida

por MARCELO LEITE

Repórteres da Folha testemunham o cotidiano e as pesquisas da expedição deserto de cristal. A primeira missão científica brasileira independente ao interior do continente antártico tem a missão de desvendar passado e futuro do lugar mais frio do planeta.

Às 23h52 de 26 de dezembro, pouco mais de quatro horas depois de decolar de Punta Arenas, extremo sul do Chile, o jato cargueiro Ilyushin-76TD da Air Almaty baixa o trem de pouso. Quatro minutos mais e o avião de matrícula cazaque fretado pela empresa americana Antarctic Logistics and Expeditions (ALE) toca suavemente o gelo da pista principal de Montes Patriot (Patriot Hills), na Antártida. Aberta a porta, uma onda de frio, luz e irrealidade invade a cabina, com o ar a -8ºC.

O repórter fotográfico Toni Pires e eu somos os únicos brasileiros a bordo. Após 13 dias de espera em Punta Arenas, retidos por ventos e nevascas antárticas que impediam o voo até Patriot, desembarcamos no acampamento-base da Expedição Deserto de Cristal, montado pelo Núcleo de Pesquisas Antárticas e Climáticas (Nupac), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ao lado da base para turistas da ALE.

Pela primeira vez cientistas do Brasil realizam missão autônoma no coração do continente austral, para investigar as profundezas do manto de gelo que o recobre há 33 milhões de anos. Uma aventura 2.000 km mais perto do polo Sul do que a Estação Antártica Comandante Ferraz, a base tradicional da pesquisa brasileira na Antártida, e um feito inédito que a Folha veio testemunhar com exclusividade por duas semanas.

Finalmente cheguei ao território internacional da Antártida, ao 'puro retângulo de quartzo" e à 'solidão sem terra e sem pobreza" de que fala o chileno Pablo Neruda no poema 'Antártica". Faltam agora só quatro minutos para a meia-noite. O sol brilha, ofuscante, dois dedos acima dos montes ao sul, em seu percurso excêntrico sobre o horizonte nos verões em altas latitudes, como aqui nos 80°18’S.

Do alto do avião, no limiar da porta, uma pequena decepção: o gelo glacial da Antártida, que em todos os textos que devorei é descrito como azul, parece mais branco, quase cinza. A pista de pouso de fato se assemelha a um retângulo de quartzo, com cerca de 100 m de largura e 2.500 m de comprimento. O ar queima por dentro das narinas e induz espasmos passageiros na respiração, como se mergulhasse numa cachoeira gélida e seca. Mesmo rodeado por dezenas de pessoas, a sensação é de desamparo completo, no embate solitário do corpo com o poder letal do frio.

Apenas uma escada vermelha de metal me separa do manto de gelo que recobre os 14 milhões de km2 da Antártida, um décimo das terras do planeta. Bojudas botas polares Baffin e o peso dos equipamentos nas mochilas contribuem para a instabilidade. O per?l do solado de borracha garante tração noutros terrenos, mas sobre o gelo apresenta tanta utilidade quanto a lâmina de um patim. O vento de 16 km/h derruba a sensação térmica para -15°C. A superfície está coberta de ondulações, como um oceano em miniatura. Só é possível andar a passos miúdos de ancião, e a beira da pista parece mais distante que o próprio polo Sul, a 1.083 km.

Estão à nossa espera Ulisses Franz Bremer, 48, geógrafo mineiro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e Marcio Cataldo da Silva, 30, carioca, biólogo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Encostados em motos de neve Yamaha pretas, uma delas com bandeirinha do Brasil no bagageiro, os dois integrantes da expedição seguram placas de cartão com os nomes 'Mr. M. Leite" e 'Mr. T. Pires". Os demais passageiros já vão adiantados na caminhada de 1.850 m até o acampamento da ALE. Enquanto tento alcançá-los e Toni fotografa o avião, Bremer e Cataldo transportam as malas em trenós até o acampamento brasileiro, 750 m para oeste.

Sou um dos últimos a entrar na barraca principal da ALE, um casulo azul e branco de 20 m x 5 m e piso de madeira. No ambiente maior há uma dezena de mesas compridas com oito ou dez lugares. Umas cem pessoas –metade passageiros que chegam, outra metade que parte dentro de uma hora de volta à América do Sul– se debruçam sobre pratos fumegantes. As lentes de meus óculos se embaçam de imediato, assim como a da câmera fotográfica. Toni entra na barraca e enfrenta a mesma dificuldade.

A preleção da gerente britânica Fran Orio aos recém-chegados recomenda muita água, máscaras de neve e luvas –três requisitos para prevenir os males antárticos comuns: desidratação, pois se perde muita água pela respiração neste que é o maior deserto do mundo, cegueira da neve, dolorosa queimadura da córnea por raios ultravioleta e congelamento ('frostbite") de extremidades do corpo, como dedos e nariz. Ela deve saber do que fala, já que lhe falta o polegar da mão esquerda.

Barbas grisalhas

Saímos de volta para o frio. Bremer e Cataldo já nos esperam com as motos e seguimos para o acampamento brasileiro. O percurso é suave, com poucos solavancos nos 'sástruguis", línguas de neve dura esculpidas pelo vento que sopra quase sem cessar do sul (basta observar o alinhamento dos calombos para deduzir a direção predominante do vento). O ruído das motos atrai o líder da expedição, glaciólogo Jefferson Cardia Simões, 50, da UFRGS, e seu braço direito, o geógrafo Francisco Eliseu Aquino, 38, mais conhecido como Chico Geleira, por causa de pesquisas anteriores sobre movimentação de geleiras na península Antártica, 2.000 km ao norte de Patriot.

A equipe da Expedição Deserto de Cristal se completa com mais quatro pessoas: os geógrafos da UFRGS Rosemary Vieira, 42, carioca, e Luiz Fernando Magalhães Reis, 51 (que também é químico), gaúcho, o físico carioca Heitor Evangelista da Silva, 45, da Uerj, e o chileno Marcelo Arévalo, 48, da Universidade de Magalhães, em Punta Arenas. Arévalo é o alpinista da expedição, capacitado para resgates no caso de acidentes nas montanhas ou em fendas de gelo. Os oito integrantes da missão chegaram a Patriot em 30 de novembro e ali permaneceriam até 13 de janeiro.

Para dar-nos as boas-vindas, Simões e Aquino deixam o conforto relativo do módulo de fibra de vidro emprestado pelo Instituto Nacional Antártico do Chile (Inach) –uma espécie de iglu azul apelidado de 'gordito", com cerca de 7 m x 3 m, piso de fibra e quatro escotilhas de plástico. Ambos já parecem recuperados da parte mais exaustiva da expedição, o deslocamento de metade da equipe para 250 km a oeste daqui, entre os montes Johns e Woollard. Eles coordenaram lá uma campanha de perfuração de gelo em pleno platô antártico, na companhia de Arévalo e Reis, sob temperaturas de até -28oC e sensação térmica de -40oC (leia reportagem na pág. 34).

Após quase um mês na Antártida, os homens ostentam barbas crescidas e grisalhas –com exceção de Cataldo, o mais jovem, que tem barba e cabelos compridos negros. Todos explicam a disposição de enfrentar as agruras antárticas com base em sonhos juvenis de exploração, alimentados pelos relatos de pioneiros polares como Robert Falcon Scott, Ernest Shackleton e Roald Amundsen. Rosemary Vieira conta que começou a interessar-se pela origem das montanhas na adolescência, enquanto as escalava na região de Nova Friburgo (RJ), o que a levou à geografia física e às geleiras. O líder Simões, no entanto, combate visões românticas da ciência antártica: 'Aventura nesta atividade não existe. Existem só os incautos", afirma, adaptando uma máxima de Amundsen.

27 anos na periferia da Antártida

O acampamento-base da Expedição Deserto de Cristal foi montado pelo Núcleo de Pesquisas Antárticas e Climáticas da UFRGS em Patriot por causa da logística oferecida pela empresa ALE. É o único lugar que pesquisadores brasileiros podem alcançar no interior do continente sem depender da Marinha Brasileira ou de instituições científicas estrangeiras, como o Inach, parceiro chileno do Nupac em outras expedições –uma delas levou Simões ao polo Sul no verão de 2004/2005, numa travessia de 2.300 km em tratores.

A Marinha e a Força Aérea nacionais, que dão apoio logístico ao Programa Antártico Brasileiro (Proantar), não estão capacitadas para operar longe das temperaturas amenas da região da península Antártica, na ponta da qual fica a ilha Rei George, sede da Estação Antártica Comandante Ferraz. Os aviões C-130 (Hércules) da FAB poderiam pousar sobre rodas no gelo de Patriot, como faz o Ilyushin, mas para tanto seria preciso que chilenos treinassem pilotos brasileiros nessa arte –coisa que no momento está fora dos planos da FAB.

Essa limitação logística confinou a pesquisa polar brasileira à periferia da Antártida nos 27 anos de vida do Proantar. Com acesso apenas por embarcações como o navio de pesquisa ocea-nográfica Ary Rongel e voos curtos de helicóptero, ela se restringiu às ilhas e ao litoral da península. Nas áreas costeiras está o 1% da Antártida que fica livre de neve e gelo durante os verões, portanto muito pouco representativo das condições nos restantes 99% do continente. Os projetos de pesquisa tendem a se concentrar nas áreas de oceanografia e fauna, compondo um portfólio científico modesto mesmo diante de outras nações sul-americanas, como Chile, Argentina e Peru, ou de economias de porte similar, como a Coreia do Sul, que construiu um navio quebra-gelo para aumentar seu raio de ação na Antártida.

Os programas de pesquisa antártica de países mais desenvolvidos, como Reino Unido e EUA, foram desmilitarizados e operam com embarcações e aviões próprios ou contratam o equipamento mais adequado para cada projeto. A pesquisa do Proantar tem hoje direção civil, a cargo do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), mas a logística permanece sob o controle da Marinha, o que dá a ela o poder de interferir no andamento dos estudos e é objeto de críticas entre cientistas. A decisão de um comandante de não desembarcar em uma determinada enseada, ou uma tripulação de helicóptero que descarregue equipamento científico no local errado, pode pôr a perder a viagem do pesquisador e meses de planejamento de um projeto, como já aconteceu.

O mais recente ponto de atrito entre cientistas e militares brasileiros surgiu com a compra e adaptação de um navio norueguês (o Ocean Empress), em que se investiram R$ 71 milhões, para dividir missões antárticas com o Ary Rongel. O Navio Polar Almirante Maximiano, de 93 m, terá uma tripulação de 54 militares e acomodação para 106 pessoas –apenas um terço destinado à comunidade científica. Pesquisadores reclamam que não foram chamados a opinar sobre o novo 'layout" do navio.

Com as verbas disponíveis para pesquisa polar os cientistas parecem satisfeitos, graças ao impulso trazido pelo Quarto Ano Polar Internacional 2007-2009, esforço global de pesquisa que, apesar do nome, durou dois anos e termina neste mês. De um patamar de R$ 1 milhão anual, o orçamento da pesquisa antártica brasileira saltou para a casa dos R$ 10 milhões. Um total de 64 nações participa da empreitada internacional, com projetos de investigação e levantamento de dados que devem manter 10 mil cientistas ocupados pelo menos até 2011. A contribuição do Brasil –sétimo país mais próximo da Antártida– reúne 30 instituições de pesquisa e dez projetos, entre os quais se destaca a Expedição Deserto de Cristal, o único com trabalho de campo fora da região da península Antártica.

Com R$ 700 mil de orçamento, a expedição é o segundo projeto mais dispendioso do Proantar no Ano Polar. Chegou a correr risco de não se realizar, com a alta do dólar no final de 2008, que reduziu a equipe de 14 para 8 pessoas. Mas cumpriu seu objetivo central: sob a neve de Patriot já estavam prontas para o embarque as 16 caixas de isopor com mais de uma centena de testemunhos de gelo, colunas escavadas do manto polar cuja análise físico-química permite obter informações sobre o clima do passado.

Urinar, comer, dormir

Se as condições meteorológicas ditam tudo o que se pode e deve fazer na Antártida, a vida do indivíduo é governada pela fisiologia. Isso fica evidente durante o passeio de apresentação do acampamento, ciceroneado por Simões e Aquino. A primeira coisa que mostram são o mictório masculino ao ar livre –um biombo improvisado com tambores de combustível e botijões de gás, atrás do qual um tonel com funil faz as vezes de urinol. Em seguida, a barraca da privada –uma caixa de carga de marfinite com tampa de vaso sanitário adaptada, sob a qual se posiciona um balde forrado com saco plástico preto.

No caso da barraca-banheiro, há duas instruções importantes a seguir. Em primeiro lugar, não esquecer de retirar o saco do balde, fechar bem a boca dele, depositar na pilha do lado direito e forrar o balde com um saco novo. Além disso, deitar o bambu do lado de fora durante a ocupação e pô-lo de novo em pé, fincado na neve, ao terminar. Dessa maneira, qualquer um pode enxergar e outras barracas se o território está livre.

A parada seguinte é a cozinha, uma tenda Weather Heaven amarela, azul e vermelha apelidada de 'jabuti", centro físico e social do acampamento. Antes de entrar, mais um aviso de higiene: o quadrado demarcado por quatro estacas, a 5 m da porta, fica reservado para a coleta de neve para fazer água. Não deve ser pisado, para evitar contaminação.

A primeira noite de sono não dura mais que três horas. O saco de dormir recheado de penas e dotado de capuz é eficiente, mas não o bastante para apagar o fato de que estou separado da neve e de temperaturas negativas apenas pelo piso de plástico negro da barraca, por uma esteira de isolante térmico emborrachado e por um colchão inflável com 2 cm de espessura. A parede dupla da barraca contribui para aquecê-la, mas o ar quente se concentra na parte superior, onde secam as meias e os forros das botas. A luz amarela filtrada pela lona não convida à leitura, penosa também pela necessidade de manter fora do saco ao menos um antebraço, que gela em poucos minutos

Na tenda há espaço para duas pessoas deitadas, quatro malas empilhadas e menos de um metro quadrado livre para apoiar botas com neve grudada, uma por vez, na complicada manobra de entrar pela porta dupla em formato de manga de camisa, uma voltada para fora, outra para dentro. A neve trazida pelas botas se acumula no pequeno quadrado de piso livre, como areia num acampamento de praia, e nunca derrete. Faz muito frio, a qualquer hora do dia, o que se sente em especial nos pés, mas bem menos que do lado de fora. Todos mantêm na barraca uma garrafa só para urinar durante o período de sono, sem ter de acrescentar duas ou três camadas adicionais de roupa, para sair.

A disposição metódica do acampamento não se reflete nos horários. Cada um dorme e acorda na hora que quer, ou consegue, já que o sol nunca se põe. Se o vento e a nevasca amainarem na madrugada –por convenção se adota o horário chileno, uma hora atrás de Brasília–, é quase certo que alguém aproveitará a brecha para sair de moto e realizar algum trabalho de campo. A única atividade conjunta, quando calha de dar certo, é a também única refeição quente do dia, em algum horário entre 16h e 2h.

No restante do tempo, come-se sem parar. Biscoitos, sucrilhos, torradas, chocolate, chá, café, leite quente. Não preciso de conselhos de saúde para buscar de forma contínua e premente as calorias e os líquidos capazes de manter meu metabolismo acelerado. Afinal, todo o calor disponível para o organismo, dentro das roupas ou do saco de dormir, é produzido por ele mesmo. Nas duas semanas em que estive no acampamento, a mínima registrada no bloquinho de Aquino não cairia abaixo de -10,4o C, embora ventos de mais de 30 km/h, com rajadas de até 100 km/h, pudessem levar a sensação térmica a -22o C.

Minha primeira refeição acontece às 17h do dia 27, um sopão de macarrão reformado pelo biólogo Cataldo a partir de um cozido do dia anterior. A base de proteína é um escalope de carne que saiu das almofadas verde-escuro de plástico aluminizado produzido por uma empresa de Campinas (SP), comida pronta fornecida pela Marinha que ocupa o topo do ranking de queixas, empatada com as diárias pagas aos expedicionários (R$ 50). O frango cozido e as almôndegas são quase aceitáveis, depois de retirados do molho que preenche a embalagem fechada a vácuo e refogados com azeite de oliva e temperos.

No mais, o cardápio é o previsível em um acampamento: sardinha e atum (em óleo e não água, para não forçar as latas e vazar se congelados), macarrão instantâneo de vários sabores, farofa pronta, batata palha, ketchup... Quase sempre tudo misturado, em pratos plásticos com profundidade de tigelas e porções de fazer inveja a operários da construção civil.

Gelo é mesmo azul e domina a paisagem

A primeira saída do acampamento é uma caminhada de 1 km até a base chilena Parodi. Ela fica ao pé dos montes Patriot, que formam a ponta sul da série de cadeias de montanhas conhecida como vale da Ferradura, um semicírculo que se estende até o noroeste, a uns 40 km de distância. Nosso guia é o biólogo Cataldo, que parte em busca de açúcar para reforçar a despensa desfalcada.

A temperatura está em -8o C, suportável. Com três camadas de camisetas e calças, uma jaqueta de feltro sintético ('fleece") e o casaco de penas, começo a suar. Seriam necessários alguns dias até regular a quantidade de roupas e dominar o manuseio dos zíperes estratégicos, nas axilas e na lateral das calças de vento, para deixar parte do calor escapar. Uma dor de garganta começa a se insinuar, mas sucumbe a anti-inflamatórios e ao conselho de respirar pelo nariz sempre, para aquecer o ar antes que atinja a mucosa da laringe.

A base chilena é uma confortável reunião de módulos azuis iguais ao 'gordito" conectados por uma galeria em formato de túnel e uma cozinha- refeitório. Não se veem trancas, só velcro, e na Antártida a tradição é que comida abandonada pode ser usada por quem precisa. Há banheiros completos, com aquecedores e chuveiros para duchas semanais –conforto inexistente no acampamento brasileiro, onde todos sofrem com os cabelos empastados e quebram o galho com lenços umedecidos. A estação está desocupada há quase dois anos, parece cenário de um filme de ficção científica. A expedição brasileira ia alojar-se aqui, mas na última hora a negociação fracassou.

Uma placa de alumínio escovado informa que a camada de gelo se desloca à velocidade de 8 m por ano em Patriot. Há estabilidade suficiente para estabelecer uma pista de pouso no gelo, como fizeram militares chilenos. Um acordo permite que a ALE também a utilize.

Um retorno ao contato direto com o gelo, após o pouso do Ilyushin, só acontece no domingo, nosso segundo dia. Rosemary Vieira nos convida para uma coleta de rochas na reentrância das montanhas defronte ao acampamento que apelidou de vale da Avalanche, por causa de uma falha na neve da encosta.

Com o sol brilhando num ângulo mais favorável, fica evidente que o gelo é azul, mesmo, e não só por licença poética da glaciologia. A estrutura cristalina do gelo glacial absorve radiação na faixa da cor vermelha, deixando disponível para as retinas uma quantidade incomum de luz em frequências próximas do azul.

Junto da montanha o gelo se projeta para baixo numa depressão, provável efeito da ação de ventos catabáticos, que têm origem no vórtice de ar sobre o polo Sul, um funil que o derrama para baixo com violência, escorrendo daí sobre o relevo, do platô para a periferia menos elevada do continente. Por isso os ventos predominantes na Antártida sopram do quadrante sul.

Vista de cima, a onda de gelo reflete o sol e se parece com o mar. A não ser pelos raros afloramentos de rocha escura, a paisagem se impõe com grande variedade de formas em duas cores, o azul do gelo e do céu e o branco da neve e das nuvens. O olhar vagueia pela imensidão e não raro se equivoca quanto às distâncias, sempre maiores do que parecem.

A onipresença do gelo se torna ainda mais evidente no anfiteatro que

Bremer e Vieira escolheram para coletar sedimentos nesta tarde. Entre as duas vertentes de rochas verdadeiras há grandes áreas de cascalho interrompendo a brancura da neve. Ao abrigo do vento e sob efeito do sol forte, a temperatura do ar está em 3,8o C. As pedras absorvem radiação solar e ficam bem mais quentes, a 7,1o C. Cavando 3 cm, a temperatura baixa para 1,5o C. Mais um pouco e se alcança o permafrost, faixa de solo sempre congelada que em Patriot tem 25 cm de espessura. Abaixo disso, uma camada de gelo que pode ter centenas de metros acima do leito rochoso verdadeiro.

Trata-se de uma geleira de rocha, explica Vieira: parte da montanha sob nossos pés não é de fato uma montanha, mas uma duna de gelo salpicada de cascalho. Essas geleiras revestidas de detritos se formam em condições específicas de baixa precipitação e baixa temperatura, não superior a 0oC, com vertentes laterais próximas de onde despencam pedaços de rocha erodidos por incontáveis ciclos de congelamento e descongelamento.

Tempestades e anomalias

O acontecimento do dia 29 de dezembro é a remontagem da sonda elétrica perfuradora de gelo que havia sido utilizada entre os montes Johns e Woollard (leia reportagem na pág. 34). O dia terminaria sem o pouso previsto do jato da ALE, um mau sinal –se o tempo continuar ruim e as chegadas e partidas, atrasadas, dificilmente sairá o voo de retorno dos brasileiros, previsto para 4 de janeiro.

No dia seguinte, mais saídas de moto com Vieira e Simões, até a moraina Casassa e as montanhas Marble, outro pedaço da Ferradura. Como todos já estão com suas quotas de peso estourando, diminui o ritmo da retirada de amostras e começam a seleção e o empacotamento para a viagem de volta. Aos poucos o acampamento inteiro se volta para a arrumação das 2,4 toneladas de carga que embarcarão no Ilyushin.

Tempestade e nevasca chegam com o último dia do ano e dificultam até mesmo o leva-e-traz de caixas na neve fofa e sob vento intenso. O confinamento abate um pouco o moral da expedição. Uns passam mais tempo dormindo, outros com seus livros, relatórios ou DVDs. Simões libera o telefone por satélite para todos falarem com suas famílias, o que dá início a uma peregrinação ao 'gordito", onde ficam os equipamentos eletrônicos. Alguns saem do módulo parafalar de saudade sem constrangimento, mas de dentro se ouve tudo.

A nevasca iniciada em 31 de dezembro dura quatro dias. O meteorologista da ALE diz que é a pior temporada dos últimos dez anos em Patriot. Como a região se encontra sob a influência dos mares de Bellingshausen e Amundsen, a suspeita é que a penetração de massas de ar mais úmido e quente tenha sido favorecida pelo aquecimento dessas seções do oceano Austral a oeste da península, sob efeito da mudança climática global.

Essas massas de Bellingshausen-Amundsen aumentam a precipitação de neve e desencadeiam tempestades ao se chocarem com os ventos secos e frios que descem do platô. O colapso da plataforma de Wilkins é no momento o sinal mais forte da anomalia na região, o que faz temer que o tempo comece a mudar não só no verão de Patriot mas também nos invernos do Sul e do Sudeste brasileiros, pois é nessas áreas de mar congelado que se originam muitas frentes frias que alcançam o Brasil.

A ceia de Ano Novo é frango reformado com arroz e amêndoas. Todos ainda alimentam a expectativa de que alguém da ALE chegue com um convite para festejar o Réveillon, como havia ocorrido no Natal. O chamado só vem às 23h20, mas transforma os pesquisadores, que saem em passo apertado, sob neve forte. Cataldo ainda arranja tempo para um mergulho em sua barraca, da qual emerge com calças jeans e camiseta onde se lê 'Climber" (escalador). A festa da ALE tem um quê de bar intergalático em 'Guerra nas Estrelas". Quase todos os homens de cabeça raspada, ou quase, muitas tatuagens e piercings. Um grupo de senhores japoneses desaparece do canto assim que terminam os brindes da meia-noite. Restam uns tantos alpinistas, a dezena de brasileiros e duas dúzias de funcionários da empresa. Cerveja Austral e vinho também chileno, em caixinhas de papelão, são servidos à vontade.

Na poncheira esculpida em gelo restam só vestígios de frutas, mas o 'vulcão" a seu lado está ativo: uma funcionária animada convoca os recém-chegados para encostar a boca na abertura mais baixa, enquanto despeja rum, uísque ou o que estiver à mão pela abertura de cima. Entre uma convocatória e outra, dá tapas nas nádegas dos homens. Em seguida, atrasa o relógio da parede em uma hora, para ter um novo Réveillon.

Na data marcada para a partida, 4 de janeiro, o tempo surpreende e se abre, reavivando a esperança de voltar para casa. Seriam porém cinco dias de frustração, com tempo limpo e muito vento, mas nenhum voo –segundo a ALE por causa das rajadas, da temperatura do gelo na pista, disso e daquilo, o que só contribui para espalhar a convicção de que a empresa está enrolando enquanto espera o retorno de alguma expedição ao maciço Vinson para lotar o Ilyushin.

Congelamento na mão

A pior notícia chega no dia 7, trazida por Steve Jones, outro gerente da empresa: o próximo voo ocorreria no dia seguinte, mas teria lugar só para dois brasileiros, Toni e eu. O mau humor se dissemina entre os cientistas da Expedição Deserto de Cristal, com poucas exceções. Chico Geleira é a mais notável. Propõe resgatar em espécie a dívida da ALE conosco: cebola, alho, azeite de oliva –que chega congelado numa garrafa PET–, queijo, vinho, cerveja e refrigerantes, luxos quase desconhecidos até então pelos expedicionários. O rancho incrementado dissolve um pouco da ansiedade, mas não muito. Depois de 39 dias dormindo e acordando no frio, sem banho, cama de verdade ou cadeiras com encosto, o estado de espírito parece compreensível.

Vieira e Arévalo estão muito resfriados e passam boa parte do tempo na barraca. A geógrafa tem também algumas manchas pelo corpo, que são examinadas e fotografadas pelos médicos da ALE –um inglês e um sueco. Por insistência de Simões, Cataldo também os consulta sobre um inchaço que começara num ferimento no dedo médio da mão esquerda. Não chegam a um diagnóstico preciso, que só viria no Rio de Janeiro dez dias depois: princípio de congelamento nas articulações, provável resultado do vento nos muitos percursos de moto para abastecer o experimento a 12 km de distância.

'Tive necrose da derme e epiderme em todas aquelas regiões da mão. Depois que voltei, aos poucos o inchaço sumiu e deu lugar a placas escuras, quase pretas, de pele necrosada", contaria Cataldo num e-mail. 'Agora já descascou tudo e minha mão está nova em folha, com apenas uma ou duas pequeníssimas cicatrizes para contar a história para os meus netos."

O Ilyushin pousa de novo em Patriot só no dia 9, às 3h56, trazendo a pequena comitiva –uma dezena de pessoas– do príncipe Albert de Mônaco. Decola de novo às 6h15. Toni e eu ficamos com os últimos bancos laterais, de metal, entre duas paredes com três andares de tonéis vazios amarrados com cintas, que estalam para valer na decolagem e no pouso em Punta Arenas. Abertas a porta dianteira e a rampa traseira, a cabina é invadida pela umidade e um cheiro de terra e de plantas –uma outra onda de irrealidade, após duas semanas no gelo azul.

Os oito integrantes da Expedição Deserto de Cristal ainda teriam de esperar mais quatro dias para voltar a Punta Arenas e outros cinco para aportar no Brasil, somando 60 dias longe de casa. Antes de deixar o Chile era preciso desembaraçar toda a carga e certificar-se de que o total de 21 caixas de gelo estavam seguras em câmaras frigoríficas, aguardando seus próprios voos para o Rio de Janeiro e para o Maine (EUA), onde ficarão pelo menos dois anos em estudo.


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