São Paulo, domingo, 22 de março de 2009

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O maior deserto do mundo

por MARCELO LEITE, enviado especial à Antártida

O manto de gelo que cobre a antártida guarda segredos sobre o clima da Terra e ameaças para os cientistas que se dispõem a estudá-lo

"Deus do céu! Este lugar é horrível", escreveu Robert Falcon Scott em seu diário, em 17 de janeiro de 1912, ao alcançar o polo Sul e se dar conta de que Roald Amundsen já tinha estado ali. A frase hoje enfeita o bar da estação norte-americana Amundsen-Scott, no polo, com humor um tanto deslocado (Scott e seus companheiros derrotados morreriam no caminho de volta, algumas semanas depois), e contradiz a atração magnética que o polo exerce sobre pesquisadores e aventureiros de toda parte: se fosse tão ruim, não haveria tanta gente louca para ir até lá.

"Estamos no meio do nada, finalmente no deserto polar", anotou o glaciologista Jefferson Cardia Simões, bem mais animado, em seu relato sobre a jornada principal da Expedição Deserto de Cristal ao coração da Antártida. Durante 16 dias de dezembro, metade da equipe brasileira de cientistas –além dele, Francisco Eliseu Aquino, Luiz Fernando Magalhães Reis e Marcelo Arévalo–acampou num ponto perdido (latitude 79º55’28"S, longitude 94º23’18"W) entre os montes Johns e Woollard, 2.115 m acima do nível do mar, em pleno platô antártico. "Para todos os lados, somente uma superfície plana, batida constantemente por ventos que no inverno podem ultrapassar fácil os 150 km/h."

A temperatura anual média no local é de -33ºC. Durante o inverno, quando o sol não brilha, pode cair a -50ºC. No momento em que o quarteto desembarcou do avião bimotor com esquis alugado da empresa ALE, às 12h45 de 8 de dezembro, o tempo estava ensolarado, sem nuvens, e fazia -19ºC. Tinha durado uma hora o voo de 250 km desde o acampamento-base da pioneira expedição brasileira nos montes Patriot, que fica na altitude de 900 m e sob temperaturas pelo menos 10ºC mais quentes –ou menos frias. O turboélice Twin Otter decolou de volta a Patriot, deixando 900 kg de carga sobre a neve –comida para 20 dias, o dobro da estadia prevista, equipamentos para perfurar gelo e três barracas, que o grupo começou a montar de imediato.

A área entre Johns e Woollard havia sido escolhida precisamente por seu isolamento. O objetivo do grupo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) é colher informações sobre o comportamento do clima global e local por meio dos chamados testemunhos, colunas de gelo escavadas em sentido vertical. As montanhas mais próximas ficam a dezenas de quilômetros de distância, e estações de pesquisa, a centenas. O solo rochoso, além disso, encontra-se cerca de 1.500 m abaixo da superfície, pois essa é a espessura do gelo na região.

Essa condição dá aos pesquisadores segurança de que as partículas encontradas no gelo dos testemunhos, em análises posteriores no Brasil e nos EUA, foram depositadas ali diretamente da alta atmosfera, em algum momento do passado, e não são fruto de contaminação por fontes próximas de poeira e gases.

Além disso, o platô Antártico, ali, está sob influência direta das massas de ar sobre os mares de Bellingshausen e Amundsen, cuja superfície congelada a oeste da península Antártica está na origem de frentes frias que penetram o Brasil todo inverno. Mas Francisco Aquino também já encontrou correlações entre episódios de frio intenso no Rio Grande do Sul e massas de ar provenientes do mar de Weddell, do outro lado (leste) da península. Ambas as regiões figuram entre as que mais se aqueceram por força da mudança climática global, e a melhor maneira de reconstituir essa perturbação –que parece estar na raiz de uma aceleração das geleiras em direção ao mar– é consultar a memória do clima armazenada no gelo, como os dados de um computador no disco rígido.

Essas frentes frias excepcionais de Weddell investigadas por Aquino são um fenômeno até agora pouco estudado, que ele tenta corroborar com as informações guardadas no gelo. "Esses testemunhos do monte Johns ajudarão a fechar o meu teste [do fenômeno] nos últimos 50 anos", diz o geógrafo, referindo-se a uma tese de doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de São José dos Campos, cuja defesa deve ocorrer ainda neste ano. Com o interesse internacional que essas novas teleconexões têm despertado, mais a capacidade de obter testemunhos de gelo em ambientes inóspitos, os brasileiros chegam à primeira divisão da pesquisa polar mundial.

"Já dá para contar uma bela história", afirma Simões. Para o líder do grupo, a Expedição Deserto de Cristal teve o mérito maior de comprovar a capacidade logística dos pesquisadores brasileiros: "O Ministério da Ciência e Tecnologia mostrou interesse em investir no interior da Antártida. Nós demonstramos nossa capacidade de montar e preparar a expedição".

Deserto de água, fonte de dados

Não fácil, no entanto. Logo nas primeiras horas, ainda durante a montagem do acampamento, o quarteto brasileiro sentiu o peso de trabalhar no maior deserto do mundo, ainda que formado por água –a maior reserva de água doce da Terra, com 80% do total mundial, só que em estado sólido. O primeiro sinal de desidratação, dores de cabeça, começou a aparecer, forçando-os a acender o fogareiro para derreter neve e fazer água. O dia terminou com duas tendas montadas, imprescindíveis dormitório-cozinha e banheiro.

O segundo dia em Johns-Woollard começou frio, a -25ºC, e trouxe mais trabalho pesado: a montagem da sonda elétrica Inventor, fabricada artesanalmente pelo suíço Felix Stampli, e da barraca domo que abriga cientistas e aparelhos do vento durante a perfuração. Os trabalhos prosseguiram até meia-noite, para aproveitar o tempo bom, e quando a máquina de US$ 80 mil –equipamento único na América do Sul, capaz de alcançar 200 m de profundidade– foi desligada, o grupo tinha perfurado 25 m de poço.

Até os 70-80 m, que só seriam atingidos três dias depois, a sonda perfura o que se chama de "firn", palavra de origem germânica para o estágio intermediário entre neve e gelo ("neviza", em espanhol). É uma espécie de gelo farinhento, sobre o qual ainda não caiu o peso suficiente de neve para compactá-lo na forma de gelo glacial, ou gelo azul. Este só se forma quando a pressão das camadas superiores elimina a permeabilidade da massa, interrompendo a comunicação entre as microbolsas de ar que permanecem em meio aos cristais de água. Para isso, a densidade tem de chegar ao intervalo entre 0,83g/cm3 e 0,91 g/cm3, quando as microbolsas se tornam microbolhas seladas, compartimentos herméticos com relíquias de ar de décadas, séculos e milênios passados. O gelo antártico também guarda as impurezas presentes na atmosfera –de poeira a substâncias radiativas produzidas em explosão nucleares– que tenham caído sobre o continente.

A análise desse arquivo de dados atmosféricos permite recuperar muitos tipos de informação sobre o passado: temperatura, extensão do gelo marinho em volta da Antártida, ciclos de atividade solar, vulcanismo, poluição global, processos de desertificação, concentração de gases do efeito estufa como dióxido de carbono (CO2) e metano (CH4). Para isso, no entanto, é preciso datar as camadas de gelo, ou seja, descobrir em que época caiu a neve que lhes deu origem. Além de características físico-químicas que diferenciam a neve de inverno da de verão, que permitem assim contar as camadas anuais, a datação –ou estratigrafia– é calibrada com auxílio de eventos com data ou periodicidade conhecidas, como erupções vulcânicas e testes atômicos.

Com o material obtido nos 95 m de profundidade do poço entre os montes Johns e Woollard, onde a precipitação de neve atinge um máximo de 300 mm por ano, os cientistas do Nupac poderão recuar entre 250 e 300 anos no tempo (em certos pontos da Antártida Oriental, como o Domo Argus, caem menos de 20 mm/ano, e o gelo profundo pode chegar a 1,5 milhão de anos). Examinando depois as microbolhas presas no gelo, poderão determinar qual era a composição da atmosfera, ano a ano, nesses três séculos, e inferir como variaram as temperaturas no período. O objetivo é entender melhor as ligações –"teleconexões", no jargão climatológico– entre o clima da Antártida e o da América do Sul, em particular do Brasil.

Meias molhadas

A equipe de Johns-Woollard passou maus bocados com a sonda suíça. Seu funcionamento depende de tecnologia, mas também de sensibilidade, pois o operador tem de usar o tato para perceber se é normal a vibração do cabo de aço na ponta do qual desce a broca elétrica. No sexto dia, ela travou a 94 m de profundidade, e foram necessárias quatro horas e muita força para soltá-la. O moral da tropa só não foi junto para o buraco porque a nebulosidade e o frio intenso formaram cristais de gelo no ar que deram origem a um parélio, fenômeno óptico em que o Sol aparece cercado de um halo de luz e quatro outros "sóis" opostos em cruz. "Que espetáculo!" –anotou Simões.

Por segurança, o grupo decidiu cavar outro poço, em 16 de dezembro, e rapidamente se alcançaram os 76 m. Dois dias depois começou uma grande nevasca, com vento de 65 km/h e visibilidade de 30 m –um "whiteout" (branco total), em que o visitante antártico pode facilmente se perder. Além disso, o mau tempo impediu o pouso do avião que viria resgatá-los nesse dia, o que só ocorreria seis dias depois, na véspera do Natal. As mesmas más condições impossibilitavam o pouso em Patriot do jato Ilyushin que levaria a equipe da Folha e que só chegou no dia 26, dois dias após o fim da campanha de perfuração em Johns-Woollard.

Com a tempestade, a temperatura do ar se elevou, mas subiu também a umidade. E, com ela, o desconforto dos expedicionários, pois ficou quase impossível secar meias e forros de botas. A umidade atrapalhava a sonda, ao se condensar no metal e ressolidificar em contato com o gelo do poço, travando seguidamente o aparelho. Ocorreu um curto-circuito, mas Reis e Arévalo conseguiram improvisar um substituto para o pino danificado com um prego de caixote limado. Depois disso, a escavação prosseguiu até 95 m sem maiores incidentes.

A perfuração com a sonda do Núcleo de Pesquisas Antárticas e Climáticas, que chega a no máximo 200 m, é apesar de tudo relativamente simples. Daí para baixo, especialmente depois dos 300m, a pressão a que o gelo está submetido tende a fechar o orifício e prender as sondas. O poço mais profundo da Antártida foi escavado na estação russa Vostok (recordista também em temperatura egativa, com -89,2ºC), onde se usou um tipo de querosene sob pressão para lubrificar o poço e impedir seu entupimento.

O testemunho de gelo de Vostok, quando chegou a 3.623 m, forneceu informações sobre o clima dos últimos 420 mil anos. Esse gelo só foi superado em antiguidade pelo testemunho obtido em 004 por franceses e italianos no domo Concórdia, a 560 km de Vostok. Neste caso, ainda que a uma profundidade menor (cerca de 3.200 m), foram 800 mil anos de dados. Ao lado de estemunhos retirados do manto de gelo sobre a Groenlândia, no hemisfério Norte, essas perfurações renderam algumas das evidências mais fortes de que há um vínculo direto entre aumento da concentração de gases do efeito estufa na atmosfera e seu aquecimento progressivo.

O que as pesquisas vão mostrar?

O manto antártico não é só o principal arquivo de informações sobre o clima do passado, mas também um dos principais motores do clima do presente. Seus 25 milhões de km3 de gelo, se derretidos (o que demoraria séculos ou milênios), elevariam o nível dos oceanos cerca de 60 m no planeta inteiro. Todo esse gelo se encontra ali porque há um desequilíbrio térmico no planeta: a região em torno do equador recebe cinco vezes mais calor do Sol que os pólos, ao longo do ano. Este diferencial move o sistema do clima terrestre, uma máquina de transportar calor para as extremidades norte e sul, 60% dele pela atmosfera (massas de ar) e 40% pelos oceanos (correntes).

Como tem muito mais gelo que o Ártico, onde o polo é coberto por mar e a camada de gelo sobre ele é bem mais fina, a Antártida participa ainda mais ativamente desse troca-troca de calor. As águas mais frias e densas da Terra, por exemplo, são formadas sob as plataformas de gelo que se projetam do continente sobre o mar e daí circulam pelo planeta. Enquanto no Ártico a superfície de mar congelado dobra de tamanho entre verão e inverno, em torno da Antártida ela se multiplica por seis, passando de 4 milhões para 22 milhões de km2 –uma área maior que a do próprio continente (14 milhões de km2).

Qualquer alteração mais significativa nessa máquina ciclópica de produzir e destruir gelo pode afetar o clima de regiões inteiras, de geadas a regime de chuvas, como no caso das frentes frias que penetram pelo sul do Brasil. Na opinião de Simões, a Antártida é pelo menos tão importante para o clima brasileiro quanto a Amazônia, mas sua influência é muito menos conhecida. Daí a importância de estudar a criosfera –manto, plataformas, geleiras e mar congelado–, para entender a dinâmica da Antártida. A Expedição Deserto de Cristal e a perfuração brasileira em Johns-Woollard constituem uma das várias peças do mosaico de conhecimentos em construção pelo Ano Polar Internacional (API).

Além da expedição, o ano polar coincidiu com mais um impulso à glaciologia brasileira: a criação do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera, uma rede de sete laboratórios em quatro Estados (RS, SP, RJ e MG), com sede na UFRGS e coordenação de Jefferson Simões. Um dos primeiros passos do instituto, que recebeu verba de R$ 4,8 milhões do MCT, será iniciar a construção, neste ano, de um laboratório de testemunhos de gelo. O centro terá salas frias e limpas para armazenar, processar e analisar os cilindros, trabalho hoje realizado em sua maior parte na Universidade do Maine (EUA), em colaboração com o grupo de Paul Andrew Mayewsky –uma celebridade da pesquisa polar, que tem até um pico da Antártida batizado com seu nome.

Antes mesmo de se encerrar o API, neste mês de março, a visão tradicional sobre a estrutura e o comportamento do manto antártico já passava por um terremoto. A reanálise de dados de satélite, por exemplo, revelou que não é só a península Antártica que se encontra em fase de aquecimento acelerado, no último meio século, mas o continente inteiro (+0,6ºC desde 1957), e em especial a Antártida Ocidental (+0,85ºC).

O manto está em movimento permanente e flui em várias direções, com velocidades que variam de 1 m/ano a 3,5 km/ano, neste caso formando grandes correntes de gelo que terminam na costa. Descobriu-se há cerca de uma década que nem todo o manto repousa diretamente sobre rocha e que em vários pontos existem lagos subglaciais, conectados por todo um sistema de drenagem este identificado só em 2005, para espanto da comunidade científica. São rios gigantescos encapsulados sob o manto, cujo efeito acelerador sobre a migração de geleiras mal se começa a entender.

A nova coqueluche da pesquisa antártica está, mais uma vez, sob a área de Vostok. Ali se detectou o maior lago subglacial do continente, com 14 mil km2 de espelho d’água e profundidade de 500 m. Cientistas russos já levaram seu poço de perfuração até a 70 m da água do lago e interromperam o trabalho no mês passado. Há uma enorme discussão sobre como obter amostras da água sem contaminar um ecossistema que está isolado há milhares ou milhões de anos do resto do planeta. O que ninguém duvida é que se encontrará vida ali, possivelmente microrganismos, e que a escavação prosseguirá, mais dia, menos dia.

"A Antártida é o último continente intocado do planeta, o único que ficou na forma original", justifica Simões. "É um exemplo de cooperação internacional, e a última chance de trabalhar em conjunto pela preservação ambiental."

Um lugar que de horrível não tem nada –a não ser para quem perdeu a vida abrindo o caminho que hoje até pesquisadores de países tropicais tanto se esforçam por trilhar.


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