São Paulo, domingo, 22 de março de 2009

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O clima que veio do frio

por FLÁVIO DIEGUEZ

Como a Antártida participa dos invernos quentes e verões frios brasileiros

Qual a relação entre o chocolate quente, o café colonial e o vinho de Gramado, no Rio Grande do Sul, e os ventos antárticos? Uma tal de "anomalia do vetor de vento a 925 hPa" parece ser a responsável por unir dois lugares tão distantes. A anomalia –que provavelmente se origina no mar de Weddell, em plena Antártida– pode ser a culpada pelos anos de inverno relativamente quentes no sul do Brasil, e que tiram toda a graça de passear pela região. Ela instaura a desordem nos ventos usualmente confinados às vizinhanças do polo Sul e, às vezes, despacha um vendaval gelado que viaja 7.000 km pelo oceano e 50 horas mais tarde invade os Estados do Sul do Brasil. Provoca uma bagunça geral nas temperaturas e uma consequência disso podem ser os invernos desenxabidos de Gramado, em que nem dá vontade de tomar chocolate quente.

Quando, ao contrário, os ventos ficam mais enclausurados na região polar, os verões brasileiros esfriam. Em fevereiro de 2004, a anomalia de vento deixou rastros bem palpáveis, tanto na Antártida quanto no Sul e no Sudeste brasileiros, diz o climatologista Alberto Setzer, do Instituto de Pesquisas Espaciais. "Na Antártida, o mar de Weddell estava 40% mais congelado do que o normal, e os ventos também, propiciando a injeção de ar frio antártico na direção do Brasil." O resultado, diz ele, foi que a cidade de São Paulo teve o fevereiro mais frio em 28 anos; o Espírito Santo, o mais frio em 22 anos; e o Rio de Janeiro, o mais frio em 39 anos.

O resultado da busca bem-sucedida de uma explicação glacial para essas temperaturas, publicado num relatório de 2006, anima os climatologistas brasileiros, que veem nesse tipo de achado uma oportunidade para aprimorar os modelos de previsão do tempo. "Esse tipo de conexão, caso fique bem estabelecida, poderia ampliar a confiabilidade das previsões", diz o pesquisador Lincoln Alves, do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Ele não viu o trabalho sobre a anomalia do mar de Weddell, mas acredita que seria muito importante, já que o clima sofre as influências mais variadas: ventos, temperaturas do ar e da água, quantidade de sol e assim por diante. "Quanto mais componentes incorporamos aos modelos, melhor é o resultado da previsão."

Já se sabe há tempos que a Antártida influencia o regime das chuvas no Sul e no Sudeste do Brasil –por meio das frentes frias. Elas surgem porque o gelo esfria a atmosfera vizinha e faz com que o ar fique mais denso– ou seja, mais pesado. Com isso, o "ar despenca" para a superfície e se acumula, formando uma enorme "bolha". Então, à medida que a bolha cresce, ela se espalha na direção do oceano e dos continentes. O que se chama de frente fria é simplesmente a fronteira da bolha em expansão e o ar quente que vai sendo empurrado por ela. "Imagine um guarda-chuva que você segura na horizontal enquanto anda", sugere Alves. "O guarda-chuva é como a frente fria, empurrando o ar enquanto avança." O resultado, muitas vezes, é uma pancada de chuva, quando o ar que é empurrado está repleto de umidade na forma de vapor (veja o infográfico na página 49). As frentes frias provocam chuva quando o ar quente está carregado de umidade, na forma de vapor, que se transforma em água líquida em contato com o frio.

Saber disso, no entanto, não é suficiente para melhorar as previsões meteorológicas brasileiras ou as previsões climáticas de mais longo prazo. Como diz o glaciologista Jefferson Cardia Simões, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, os cientistas brasileiros estão empenhados justamente em desvendar o processo de formação das frentes frias. "Queremos entender a gênese das frentes frias, assim como a frequência com que elas são criadas e com que intensidade chegam ao Brasil", diz ele. Nessa tarefa ninguém fica mais animado que o climatologista Francisco Eliseu Aquino, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, um dos parceiros de Setzer e do próprio Simões no trabalho sobre a anomalia do mar de Weddell. Aos 38 anos, muito envolvido com o estudo da Antártida, Aquino diz que não sabe como consegue tempo para dar conta de tudo que pega para fazer. Ele explica com entusiasmo por que pensa que a anomalia tem um papel efetivo nos padrões climáticos brasileiros: "Nós agora temos dados para dizer em que aspecto específico a influência da Antártida se faz sentir. No caso das variações de temperatura, é uma mudança na circulação dos ventos que é dominada pela Antártida".

Depois do trabalho sobre a anomalia, Aquino passou da influência glacial a um tema mais geral. Ele quer elucidar o efeito que as mudanças climáticas podem provocar nos padrões meteorológicos do Sul do Brasil. "Acho que está havendo um aumento da variabilidade, que tende a produzir fenômenos extremos: as secas ficam mais drásticas e as chuvas mais intensas do que as médias históricas." No caso das chuvas, diz que se observa um aumento nas precipitações no Sul, da ordem de 10%. Chegou a essa conclusão estudando temporais gigantes, chamados pelo nome de "complexos convectivos de mesoescala", em que diversas formações de nuvens se reúnem num pacote único de tempestades pesadas, tão grandes que podem cobrir uma área igual à de vários Estados somados.

Essas borrascas ocorrem na metade quente do ano e produzem granizo, vendavais, enchentes, inundações, tempestades elétricas e tornados. Sua área de atuação, além do Sul e do Sudeste do Brasil, também cobre norte da Argentina, sul do Paraguai e Bolívia. Até novembro, Aquino pretende publicar um trabalho com a tese de que tanto esse aumento das chuvas quanto os efeitos da anomalia do mar de Weddell estão associados a um aumento da variabilidade climática.

As correntes marítimas, que sofrem grande influência do frio da Antártida, também têm influência marcante sobre o clima brasileiro. Os oceanógrafos mencionam, especialmente, um volume gigantesco de água que desaba direto das superfícies geladas para o fundo dos oceanos. O frio aumenta a salinidade e a densidade dessa massa aquática, conhecida como "água antártica de fundo".

O volume desse incrível esguicho subaquático é tão grande que esvaziaria a baía da Guanabara em apenas 20 segundos. E quando ele escorre pelo fundo dos oceanos, interage com correntes marinhas mais quentes, como a chamada Corrente Brasileira, produzindo efeitos climáticos importantes, diz o oceanógrafo Ronald Buss, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Ela pode, por exemplo, ter influenciado o surgimento do furacão Catarina, que assolou a costa meridional brasileira em 2004. "Ainda sabemos pouco sobre a interação do oceano com a atmosfera", diz Buss, "mas esse estudo pode melhorar as previsões de tempo e clima no Brasil".

Para esses estudos, as ilhas Malvinas (ou Falklands) parecem ser um ponto-chave, porque é onde a água de fundo encontra a chamada Corrente Brasileira, mais quente e mais salgada. "Muitos pesquisadores consideram essa região uma das mais energéticas do oceano global", diz Buss. Segundo ele, a força do esguicho antártico depende da extensão do congelamento dos mares antárticos, e esse é um dado que, obtido a partir de imagens de satélite, pode vir a ser incorporado aos modelos climáticos. No Atlântico, a água de fundo percorre toda a costa brasileira até o equador, onde, já aquecida, retorna à superfície. E a coisa toda funciona como uma balança: quanto mais água afunda na Antártida, mais longe ela volta a subir. E, dependendo de onde ela sobe, mudam os efeitos climáticos. "Desde o princípio a oceanografia brasileira trabalha com a Antártida", diz ele. "Atualmente, vários grupos de pesquisa estão tentando compreender como as correntes nascidas em torno do polo Sul afetam o clima brasileiro, especialmente no litoral."


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