São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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ELIO GASPARI


O mundo maravilhoso de Lula

Vai bem o turismo do governo de Lula. Em pouco mais de um ano ele já visitou duas das maravilhas do mundo. Foi à pirâmide de Gizeh e acaba de esticar uma viagem à Índia para passar no Taj Mahal, uma maravilha fora de mão que se pode bem ver em fotos.
Isso no mesmo dia do anúncio em São Paulo de que falta pouco para bater a marca dos 2 milhões de desempregados na região metropolitana. São 1,96 milhão.
Em agosto de 1996, depois de anunciar em Paris que o desemprego de Pindorama não era coisa tão dramática (estava em 15%), FFHH foi jantar na casa de pasto para granfinos Lasserre, onde um filé com fritas sai por US$ 300. Tomou um bom vinho, safra 1991. Qual? Só podia ser Romanée Conti.
FFHH foi um viajante cauteloso. Recusou-se a trocar o avião da Presidência. Com o desemprego encostando nos 20%, Lula não só decidiu importar um Airbus por US$ 56,7 milhões como rebarbou a possibilidade de encomendar o novo modelo da Embraer, que pode sair por uns US$ 30 milhões. Trata-se do ERJ-190, concebido para concorrer com o Airbus.
Os reis Alberto e Paula da Bélgica voam num avião ERJ-145 comprado em 2001 da Embraer por US$ 20 milhões.
A Embraer emprega 13 mil brasileiros, toma dinheiro emprestado no BNDES (US$ 4,15 bilhões entre 1995 e 2003) e quer vender o seu modelo aos companheiros do Planalto. Em termos de mão-de-obra, se Lula comprasse o avião nacional, daria empregos diretos e indiretos a umas 400 pessoas durante seis meses. (Do engenheiro da Embraer ao caixa do McDonald's de São José dos Campos.) Se elas forem somadas aos trabalhadores que fazem suas cigarrilhas holandesas (Café Crème) e os roupões de algodão egípcio que licitou, deve-se temer que o presidente adquira uma obsessão pela criação de empregos no exterior.
A Embraer lança o ERJ-190 no próximo dia 9. Lula disse que vai à festa. Boa oportunidade para o companheiro se perguntar por que alguém deve comprar esse avião, se o presidente do Brasil prefere um Airbus importado e mais caro.

A ekipenômica superou a escravidão

Por conta da proximidade dos festejos do 11º aniversário do predomínio da ekipekonômica sobre os demais ramos da administração, aqui vai um bom caso para que se meça a ruína que impuseram ao Brasil. O livro "O Rio de Janeiro Setecentista", de Nireu Cavalcanti, conta o seguinte:
Em 1787, o escravo Felipe servia a Custódio Martins Ribeiro e queria comprar sua liberdade, estipulada em 256 mil réis.
Esse dinheiro equivalia à metade do preço de uma casa térrea num bairro modesto. Custódio não quis libertá-lo e Felipe recorreu à rainha D. Maria. Sustentou que rendia ao seu dono entre 28 mil réis e 38 mil réis anuais. O escravo dava um retorno bruto de 11% a 15% sobre o capital investido. Custódio não o alforriava, porque a aplicação dos 256 mil réis renderia apenas 5% (12,8 mil réis).
Custódio teve a falta de sorte de viver no reinado da Rainha Louca. No reinado do companheiro (dele), Lula podia ter se livrado de Felipe e de todos os encargos escravistas, tais como seguro-saúde e amparo na velhice.
Entregando seu capital à ekipekonômica em 1994, ao longo dos últimos dez anos, Custódio teria faturado uma renda real média de 16,2%. No primeiro ano de Lula, o capital investido em Felipe teve um rendimento real de 12,8%.
Os juros da ekipekonômica rendem mais que um escravo de 29 anos e dão aos felizes maganos a tranqüilidade de um retorno sem custos de manutenção nem aborrecimentos políticos. Negros como Felipe acabavam reclamando à rainha.

Tarso Genro passou pelo século 19

O ministro da Educação, Tarso Genro, deu sua opinião sobre o sistema de cotas para beneficiar os estudantes negros que, tendo sido aprovados nos exames vestibulares, não conseguiram se classificar:
"Sou totalmente favorável, mas elas são totalmente insuficientes. Um grande processo de inclusão é que vai resolver em definitivo essa questão".
Não disse nada de novo. Em maio de 1870, o deputado Rodrigo da Silva dizia o seguinte do projeto da Lei do Ventre Livre:
"Não teremos necessidade, por exemplo, de auxiliar estabelecimentos de educação que recebam as crianças escravas libertas pelos seus senhores ou pelas sociedades humanitárias? Não será um embaraço para o aumento das libertações a falta de estabelecimentos desta ordem?".
A idéia segundo a qual a medida A é insuficiente, pois a patuléia precisa da medida B, muito mais abrangente, faz parte do patrimônio retórico do andar de cima. Destina-se a deixar o andar de baixo sem A nem B.
Por falar em cotas, o primeiro-ministro Ariel Sharon determinou que toda empresa estatal israelense tenha pelo menos um representante da comunidade árabe em sua diretoria. Até 2007, o serviço público e as estatais de Israel deverão adotar uma cota de 8% para árabes, drusos e beduínos. Depois, a cota subirá para 15%.
Se o doutor Tarso Genro não se cuidar, presidirá as festividades comemorativas da ocasião em que a porcentagem de árabes no Estado judeu terá superado a de negros nas universidades públicas brasileiras.

De novo: vão leiloar a matemática

O ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, já tem uma proposta para sua agenda na tarde do dia 12 de fevereiro. Poderá abrilhantar a cerimônia de leilão público do prédio do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, no Rio. É provável que encontre por lá a alma do professor Mário Henrique Simonsen, que foi um dos mestres a trabalhar no edifício.
Por conta de um processo de indenização trabalhista iniciado em 1986 por oito físicos e do costume de se cozinhar os direitos alheios, a Viúva deve R$ 1,4 milhão. O edifício está avaliado em R$ 10 milhões.
Numa demonstração do que é a coordenação do governo do PT Federal, vale lembrar que o prédio ia a leilão no dia 13 de novembro passado. No dia 20, o presidente da República foi informado pelo ministro da Ciência e Tecnologia de que ordenara "a realização de depósito judicial no Banco do Brasil".
Cadê? Talvez o superávit primário tenha comido.

Lenda do mercado
É lorota a história segundo a qual o Banco Central não baixa os juros porque teme a inflação. O Brasil não paga os juros reais mais altos do mundo porque isso é necessário para segurar a inflação. O governor Meirelles sustenta os gatos gordos porque, do contrário, a banca tira o seu dinheiro de Pindorama.
A renda da patuléia declina desde 1998. Numa economia estagnada, juro alto não é remédio estabilizador. É um dinheiro que se confisca ao andar de baixo para adoçar a vida do andar de cima.

Sopa do Saddam
Documentos liberados no Iraque mostraram que a tirania de Saddam Hussein passou 4,5 milhões de barris de petróleo ao MR-8 para vendê-los no mercado internacional. A operação durou alguns anos e foi encerrada em 2001.
A venda do petróleo de Saddam pode ter rendido US$ 90 milhões e uma comissão, por baixo, de US$ 500 mil.
É muito difícil que exista algum registro desse ervanário na contabilidade da Viúva. Felizmente, os arquivos iraquianos poderão trazer mais novidades mostrando as tenebrosas transações de políticos, empresários e governantes de Brasília com Saddam Hussein.

Pressa na Cúria
Aconteceu uma coisa estranha com a substituição de dom Aloisio Lorscheider na arquidiocese de Aparecida. Desde 1999, quando ele completou 75 anos, o papa tinha a sua carta de renúncia na gaveta. Às vezes o pedido é aceito na hora, como aconteceu com o cardeal Arns, de São Paulo. Às vezes fica anos sem resposta, como sucedeu ao cardeal Salles, do Rio. Em todos os casos, quando o papa resolve aceitar a renúncia, deixa passar um pouco de tempo até anunciar a escolha do substituto. O tempo necessário para que as forças terrenas se mexam e o pontífice estude o quadro.
O que sucedeu com a substituição de Lorscheider indica que a Cúria Romana tem pressa. E também que o papa afastou-se dessas questões.

Dirceu manda
O comissário José Dirceu disse o seguinte ao repórter Lourival Sant'Anna:
"Se você olhar o que o Parlamento brasileiro aprovou em 2003 e olhar os do mundo inteiro -eu mandei o presidente Sarney fazer esse estudo comparativo-, você cai de costas".
Dirceu parece convencido de que manda em Sarney, mas aí está uma das muitas lições que o comissário ainda não aprendeu.
Quando Dirceu achava que Sarney era seu adversário político, houve uma reunião de 12 pessoas que em algum momento de suas vidas acharam que mandavam no atual presidente do Senado. Resultou no maior encontro de otários já ocorrido neste e noutros mundos.

Entrevista

Leonarda Musumeci
(52 anos, professora do Instituto de Economia da UFRJ e co-autora -com Julita Lemgruber e Ignacio Cano- do livro "Quem Vigia os Vigias - Um Estudo sobre o Controle Externo das Polícias no Brasil")

- Seu livro traz uma pesquisa sobre o funcionamento das ouvidorias de polícia em São Paulo, Rio, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Pará. No balanço, resulta que as polícias não se deixam controlar, mas, ainda assim, vocês acham que se deve manter o otimismo. Por quê?
- A simples existência das ouvidorias é um grande avanço. Já há nove no Brasil e elas foram percebidas pela sociedade. Os cidadãos começam a procurá-las. Em São Paulo, por exemplo, entre 1998 e 2001, chegaram à ouvidoria 12,5 mil denúncias. É verdade que temos casos de instituições esvaziadas, como aconteceu no Rio em 2000 e em São Paulo mais recentemente. Mesmo nesses casos, cria-se pelo menos o constrangimento. As ouvidorias precisam ser fortalecidas, de forma a criar mecanismos alternativos de controle. Hoje uma denúncia que envolve policiais de um batalhão ou de uma delegacia é investigada pelo próprio batalhão ou pela delegacia onde estão os denunciados. A pesquisa que fizemos, no Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Candido Mendes, comparou experiências internacionais e mostrou que as ouvidorias não são utopia de malucos. Tome o exemplo da ousadia da África do Sul, que dá grande independência e autoridade aos seus sistemas de controle.

- Em termos de malfeitorias que pedem mais controles da sociedade sobre as polícias, o que sua pesquisa revelou?
- Para os cariocas, o maior problema é a corrupção. Em São Paulo e no Pará, o item que lidera as reclamações é a violência. Em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul é o abuso de autoridade. Tomando-se um índice baseado na relação entre o número de denúncias e o tamanho das corporações, vê-se que em São Paulo há mais queixas contra oficiais da PM e delegados da Polícia Civil do que contra praças e investigadores. Quando se vai ver a estatística do resultado das investigações, as punições recaem mais sobre os investigadores e praças (65%) e menos sobre os oficiais e delegados (45%). A PM pune mais que a Polícia Civil. No Pará, de cada duas denúncias mandadas pelo ouvidor à Corregedoria da PM, 30% resultaram em punição. Para a Polícia Civil a percentagem fica em 12%. O fato de a sociedade saber disso já é um avanço. O menor índice de punições veio do Rio de Janeiro (7,4%). O maior, com números de 1998 a 2001, de São Paulo (26%).

- Cite três providências capazes de melhorar o controle da sociedade sobre as polícias.
- Os controles aperfeiçoam-se quando as ouvidorias ganham independência e autoridade.
1) As ouvidorias devem ter autonomia orçamentária e de pessoal. Devem ficar livres da asfixia por falta de recursos, como disse um ouvidor durante a pesquisa.
2) O ouvidor deve ter independência para obter informações. Em Los Angeles, ele tem a senha da rede de computadores e do banco de dados da polícia.
3) A ouvidoria deve ter poder para investigar. Na Inglaterra, se há uma denúncia de má conduta numa cidade, o ouvidor tem poder para determinar a ida de uma equipe de investigadores de outra região.



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