São Paulo, domingo, 1 de fevereiro de 1998

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REFORMA AGRÁRIA
Ministro da Política Fundiária quer ajuda de movimentos sociais, inclusive o MST, na vistoria de áreas
País tem excesso de terra, diz Jungmann



VANTAGEM O Brasil tem a vantagem do atraso. Ele pode tirar proveito da globalização.


ITR Se caiu a arrecadação, também caiu o preço da terra. Pagaremos mais barato pela desapropriação.
JOSIAS DE SOUZA
Secretário de Redação

Raul Jungmann (Política Fundiária) tem basicamente duas tarefas no governo. A primeira é procurar terra. A segunda é expropriá-la de quem tem em excesso, para entregá-la a quem não possui nenhuma. O ministro resolveu metade dos seus problemas. Ele tem à disposição um fabuloso estoque de terra. Tem tanta terra que empacou na resolução da segunda metade de seus problemas. Não consegue fazê-la chegar a quem precisa. "Vivo uma crise de excesso de terra", disse Jungmann, em entrevista à Folha.
O ministro planeja pedir socorro aos movimentos sociais, entre eles o MST. Sua pasta tem algo como 4 milhões de hectares de terra -uma área quase igual à do Estado do Rio de Janeiro. Daria para assentar três vezes todas as 55 mil famílias de sem-terra que se encontram acampadas à beira de estradas ou em terra alheia. O problema é que a máquina do governo não consegue vistoriar e avaliar todas as propriedades. Daí a idéia de recorrer até ao MST.
Jungmann não corre mais atrás de terra. Não é preciso. Ela vem em seu encalço. O ministro nunca recebeu tantos telefonemas de fazendeiros. Eles oferecem as próprias propriedades em troca de TDAs (Títulos da Dívida Agrária). "Aceitam quase tudo", afirmou. "O preço da terra caiu 60%."
As terras chegam a Jungmann por duas outras vias: o Banco do Brasil e o Ministério da Previdência. Oferecidas como pagamento de dívidas, as propriedades são agregadas ao estoque que se destina à realização da reforma agrária. Leia abaixo os principais trechos da entrevista do ministro, concedida na última quarta-feira.

Folha - Em que estágio está a reforma agrária no Brasil?
Raul Jungmann -
Está concluído o processo de revisão normativa da legislação. Aprovamos o novo ITR, o rito sumário, o Banco da Terra, a participação do Ministério Público. Isso é tanto mais interessante quando se sabe que a reforma agrária sempre foi bloqueada pelo Congresso. Estamos também iniciando a mudança do modelo institucional centralizador gerado pela ditadura. O Banco da Terra possibilita a descentralização.
Folha - Explique, por favor, o que é Banco da Terra, em linguagem que um lavrador possa entender.
Jungmann -
É um financiamento para que ele possa adquirir a terra, a sua casa, os equipamentos e os insumos necessários para produzir. Ele tem 20 anos para pagar, com três anos de carência. Parte do empréstimo pode ser paga com aquilo que ele produzir.
Folha - Quantos são os sem-terra acampados hoje no país?
Jungmann -
São em torno de 55 mil famílias, aí incluídas as do MST, as da Contag e as dos demais movimentos.
Folha - Sua conta bate com a do MST?
Jungmann -
Não. O MST diz que só ele tem 51 mil famílias acampadas. Esses dados não batem com os nossos.
Folha - Por que devemos acreditar nos seus números e não nos do MST?
Jungmann -
Todos esses acampamentos sobrevivem à base de cestas básicas. Eu sei o número de cestas básicas e posso deduzir o número de famílias acampadas.
Folha - Quantos hectares de terra o sr. tem para oferecer às famílias?
Jungmann -
Em terras institucionais, que são aquelas ofertadas por devedores do Banco do Brasil e do INSS ou aquelas que já são do Banco do Brasil e do INSS, temos cerca de 4 milhões de hectares.
Folha - Mas 4 milhões de hectares não seriam mais do que suficientes para assentar as 55 mil famílias?
Jungmann -
Dá para assentar três ou quatro vezes mais do que o necessário. O problema é que precisamos fazer um encontro entre a oferta e a procura. E ainda vistoriar, avaliar todas essas terras.
Folha - O que o sr. quer dizer com encontro entre oferta e procura? Pode-se deduzir que há famílias querendo terras em São Paulo e o sr. quer colocá-las na Amazônia?
Jungmann -
Não. Só em São Paulo, o INSS tem aproximadamente 100 mil hectares. O problema é que precisamos vistoriar e avaliar as terras. Chego a pensar se não seria o caso de as vistorias técnicas serem feitas conjuntamente pelos movimentos sociais, pela Contag, pelo MST e pelo Incra. Eles poderiam participar conosco do próprio processo de vistoria. Diriam se querem ou se não querem aquelas terras.
Folha - O sr. está dizendo que o que separa o sem-terra da terra são meras vistorias e avaliações?
Jungmann -
Além disso, é preciso fazer deslocamentos. Não é que você tenha uma família aqui e precise levá-la para o Amazonas. Muitas vezes você tem uma família acampada, por exemplo, numa região oeste de São Paulo e, mesmo naquela região, há terras a 15 km, 20 km, 50 km, 100 km dos acampados. Aí é preciso fazer um encontro. De modo que o nosso problema não é mais a terra. Esse problema da terra no Brasil é uma questão inteiramente resolvida. Há concentração de terra, mas não há mais obstáculos que impeçam o acesso à terra. O problema passa a ser o investimento sobre a terra, ou seja, a educação, a saúde, o crédito.
Folha - Quanto tempo será necessário para vistoriar esses 4 milhões de hectares de que o governo já dispõe?
Jungmann -
Aí é que está. Em São Paulo, tenho 109 funcionários, contra 700 mil do Estado de São Paulo. Se eu contar com os engenheiros agrônomos e com os técnicos agrícolas do Estado, minha velocidade se multiplica por dez. Se eu somar técnicos de fundações, de ONGs e do próprio movimento social a velocidade tende a ser suficiente para que se resolva o problema.
Folha - Quanto tempo? Quatro, cinco anos?
Jungmann -
Se você leva em conta que ao lado das terras institucionais a gente desapropria uma média de 2 milhões de hectares, então fica claro que você levaria alguns anos para resolver esse problema com os 6.200 funcionários do Incra.
Folha - Comparando-se o sem-terra a um sujeito faminto, é como se ele tivesse um prato de comida diante de si e não pudesse pegá-lo porque o governo e sua burocracia o impedem de fazê-lo. Não é isso mesmo?
Jungmann -
A imagem é até procedente, mas uma das alternativas, eu volto a repetir, é convidar o próprio movimento social, ou seja, o MST, a Contag, para vistoriar a terra conosco.
O sr. já fez o convite?
Jungmann -
Ainda não. Estou pensando nisso. Podemos fazer isso porque não estamos lidando com terras particulares, que só poderiam ser vistoriadas pelo governo. Estamos falando de terras institucionais, do INSS, do Banco do Brasil. Essas podem perfeitamente ser vistoriadas com a ajuda dos movimentos sociais. Queremos assumir com eles o compromisso de que a média do investimento por família assentada nessas terras não ultrapasse R$ 20 mil. Ao assinar o contrato de assentamento, o assentado aceitará a cláusula de emancipação. Investiremos um valor fixo e haverá um tempo necessário para que aquela família fique autônoma e comece a pagar pela terra, pela casa, por tudo aquilo que ela recebeu, como manda o Estatuto da Terra, lei 4.504.
Folha - O sr. tem interlocução com o MST, a ponto de formular tal convite?
Jungmann -
Claro. O MST está sempre presente lá no Incra, negociando. Há conflitos, que ocorrem no momento em que o MST rasura, desrespeita o estado de direito, invadindo terras e prédios públicos. Aí não há outro jeito.
Folha - O sr. diz que os 4 milhões de hectares do governo pertencem ao Banco do Brasil e à Previdência. Eles não deveriam estar recebendo de seus devedores dinheiro em lugar de terra?
Jungmann -
Eles não recebem necessariamente a terra. Eles só aceitam a terra quando o Incra se dispõe a pagar em TDA por essas terras. É um bom papel. É um bom negócio. Eles podem negociar no mercado secundário. Eles podem abater as suas dívidas com isso.
Folha - O sr. diria que terra no Brasil virou uma batata quente da qual a elite quer se livrar?
Jungmann -
Eu diria que uma parte da elite. A elite que especulava, aquilo que eu chamo do eixo Morumbi-Marabá. São pessoas que moram em São Paulo e especulam com terras no Norte do país. São pessoas que, durante os anos 70, os anos 80, foram em busca de recursos fáceis da Sudam, dos grandes projetos agropecuários, madeireiras etc. Esse pessoal está com um grande mico na mão. O preço da terra despencou, não existem mais recursos fáceis. E temos o ITR (Imposto Territorial Rural).
Folha - Por falar em ITR, o que levou o governo a prever que arrecadaria R$ 1,6 bilhão com o ITR? A arrecadação real foi de R$ 250 milhões, não é isso?
Jungmann - Bom, o preço da terra caiu, em média, 60% em todo o país. E o preço da terra é a base para a arrecadação do imposto. Se um cai, o outro também cai. Em segundo lugar, nós ainda não tínhamos aprovado o novo imposto. Durante a negociação com o Congresso, mudamos as alíquotas das propriedades produtivas. Embora isso seja marginal, também afetou o resultado final. Em terceiro lugar, é preciso que se diga que o ITR não tinha uma base de dados confiável. O processo anterior deixava enormes margens para dúvidas. Agora alcançamos um grau de efetividade de 97%. Mas, se caiu a arrecadação do imposto, também caiu o preço da terra. Pagaremos mais barato pela desapropriação. Perdemos de um lado e ganhamos do outro.
Folha - Ministro, com todo o respeito, se a base de dados da Receita Federal não era confiável, não teria sido melhor evitar a previsão?
Jungmann -
Era a base que nós tínhamos. O que importa dizer é que essa base de dados hoje é reforçada por um levantamento digital, feito com ajuda de satélite. Pela primeira vez o Estado brasileiro abre a caixa preta do latifúndio.
Folha - Com a melhoria da base de dados, o sr. arriscaria uma nova previsão de arrecadação para 98?
Jungmann -
Não, eu não chego a fazê-lo. Mas posso dizer o seguinte: também, pela primeira vez, você vai ter uma fiscalização eficiente. Utilizando todos os dados digitalizados, vamos começar a confrontar os dados que foram declarados.
Folha - O sr. diz que o preço da terra caiu 60%. Há outras evidências de que a agricultura deixou de ser um bom negócio. Ao mesmo tempo, o sr. revela a intenção de exigir do lavrador assentado que ganhe dinheiro para reembolsar a despesa que o governo teve com ele. O que o leva a supor que o sem-terra, sem instrução e sem acesso à tecnologia, fará dinheiro com a terra?
Jungmann -
A propriedade familiar está encontrando uma rede de amparo público. Cada vez mais o dinheiro público tem que se voltar para a pequena e média propriedade. O setor público deve sair da produção em grande escala, que precisa ser bancada pela iniciativa privada. Os programas do governo estão cada vez mais voltados para a agricultura familiar.
Folha - Pode-se dizer que a crise agrária brasileira mudou de cara? O problema não é mais de trabalhador sem-terra, mas de terra sem trabalhador?
Jungmann -
De certo modo pode-se dizer isso. A crise que eu vivo é uma crise de oferta, de excesso de terra. Para sair dessa crise, o instrumento é efetivamente o Banco da Terra e a legislação que aí está. Quando o PT fez o seu programa de governo, na campanha passada, o partido calculava que seriam necessários R$ 3,3 bi por ano para fazer a reforma agrária. Ora, eu já tenho no orçamento R$ 2,5 bi. Com mais R$ 1 bi, chego aos R$ 3,5 bi. Já desapropriamos quase 5,5 milhões de hectares, o que é um recorde. A reforma agrária no México levou 80 anos; na Europa, cem anos.
Folha - Nosso problema é que começamos tarde.
Jungmann -
Mas aí temos uma vantagem. Em um mundo de globalização, onde você tem uma dificuldade dos setores secundário e terciário de gerar empregos, um país com a fronteira agrícola que nós temos, com as terras que nós temos, você pode produzir emprego a baixo custo desde que o Estado dê sustentação, assistência e crédito pessoal. O Brasil tem a vantagem do atraso. Ele pode tirar proveito da globalização.
Folha - E o sr. acha que esse Banco da Terra fornecerá todo o crédito necessário?
Jungmann -
Claro. O sistema é o seguinte: o beneficiado pode recorrer às terras disponíveis no estoque do governo ou negociar diretamente com qualquer proprietário. Ele é livre. É o mesmo modelo da Cédula da Terra, que está sendo implantado em cinco Estados, com muito sucesso. No Nordeste, ficou demonstrado que o preço da terra caiu a um terço. Sem contar que o modelo permite evitar aquele velho sistema viciado de tráfico de influência.
Folha - O que levará uma pessoa a entrar em um banco, tomar um empréstimo e pagar por esse empréstimo se ela pode se filiar ao MST, invadir uma terra e receber a propriedade de graça?
Jungmann -
Bom, invadir uma terra, correr o risco de morte, correr o risco de tiro, passar muitas vezes um período que pode demorar meses embaixo de uma lona, em condições muitas vezes muito difíceis e assim por diante.
Folha - Mas o governo estimulou esse tipo de prática ao desapropriar terras invadidas.
Jungmann -
O que estimulou esse tipo de coisa foi a concentração de terra e a pobreza, não o governo. O governo, historicamente, tem responsabilidades na medida em que, gerido por elites, não deu resposta a essa situação. Houve uma modernização conservadora da agricultura, que gerou esse inchaço que nós temos aqui nas cidades, o esvaziamento do campo e a pobreza.
Folha - Mas saindo da teoria para a prática, o que há no imaginário popular é a idéia de que o sujeito que ingressar no MST e invadir uma propriedade terá terra de graça. E o que vai levar esse mesmo sujeito a contrair um empréstimo?
Jungmann -
Em primeiro lugar, a terra não é de graça. Pela lei, ela tem que ser paga. E nós vamos começar a cobrar de todos os assentados no Brasil: cerca de 300 mil famílias. Começarão a pagar.
Folha - Isso será uma novidade, porque nunca foi cobrado.
Jungmann -
Sim, nunca foi cobrado, mas é lei e vamos cobrar.
Os acampamentos mais antigos do Brasil ainda estão pendurados em verbas oficiais.
Jungmann -
Sem dúvida, eu sei disso. Mas penso que alguns assentamentos devem inclusive ser erradicados. Não têm viabilidade econômica. E, se é assim, é preciso tirar aquelas famílias daquele lugar e colocar em outro. A terra não será grátis. Além disso, o próprio governo, em junho do ano passado, baixou o decreto 2.250, que diz o seguinte: terra invadida não será vistoriada. A partir daí, criou-se o rito sumário, o Banco da Terra. E estamos começando a ultrapassar o impasse agrário sem que você tenha uma crise institucional. Precisamos agora aprofundar o processo e melhorar os assentamentos, tornando-os produtivos.
Folha - O sr. foi procurado no ano passado pelo empresário Olacyr de Moraes. Ele queria vender a famosa Fazenda Itamaraty. O sr. continua recebendo telefonemas de fazendeiros?
Jungmann -
Recebo, recebo, recebo muito. É fácil compreender por que isso acontece. A terra perdeu valor. Eles dizem que estão dispostos a negociar, pedem vistorias em suas terras, pedem avaliação. Eles aceitam inclusive entregar a benfeitoria. Pela lei, você teria que pagar a benfeitoria em dinheiro. Mas eles aceitam o TDA. Eles aceitam até o parcelamento, aceitam quase tudo. Estão com um problema de liquidez, não aguentam o ITR.
Folha - O que o sr. diz?
Jungmann -
Digo que o diretor tal está disponível, que a superintendência tal está à disposição. Digo que a gente vai mandar fazer a vistoria, mas sempre chamo a atenção para o fato de que é preciso que haja demanda. Não adianta oferecer uma área isolada, perdida no meio do mundo.
Folha - O sr. lembra o nome dos últimos fazendeiros que lhe telefonaram?
Jungmann -
Há vários, mas acho que precisaria ser autorizado por eles. E, outra coisa, você pode pegar pela lista do INSS. Há uma porção de nomes lá de empresas que têm nos procurado.
Folha - O sr. disse que está sobrando terra, um estoque de 4 milhões de hectares. Por que então o governo se dispõe a receber terras de empresas e fazendeiros?
Jungman -
A demanda total de terra para a reforma agrária no Brasil, considerando aproximadamente 1 milhão de pessoas, está ao redor de 30 a 35 milhões de hectares. As 55 mil famílias de que falamos são apenas as que estão acampadas. Mas há outras pessoas precisando de terra -o meeiro, o posseiro, o minifundiário. Os 4 milhões de hectares disponíveis servem para descomprimir o ambiente. Mas, para fazer a reforma agrária propriamente dita, precisamos de mais terras e de uns dez anos de prazo.
Folha - Quando o sr. irá procurar o MST para propor que ajude a vistoriar as chamadas terras institucionais?
Jungmann -
Primeiro devo fechar essa proposta no âmbito do Incra. Depois, vamos procurar. Mandarei uma carta convidando a entidade para sentar e conversar.
Folha - Quando o sr. manda uma carta para o MST, endereça a quem?
Jungmann -
Geralmente mando para Brasília, para o representante que eles têm na capital.
Folha - Qual o nome dele?
Jungmann -
Chama-se Gilberto Portes.



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