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REFORMA AGRÁRIA
Ministro da Política Fundiária quer ajuda de
movimentos sociais, inclusive o
MST, na vistoria de áreas
País tem excesso de terra, diz Jungmann
VANTAGEM
O Brasil tem a
vantagem do atraso.
Ele pode tirar proveito
da globalização.
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ITR
Se caiu a arrecadação,
também caiu o preço
da terra. Pagaremos
mais barato pela
desapropriação.
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JOSIAS DE SOUZA
Secretário de Redação
Raul Jungmann (Política Fundiária) tem basicamente duas tarefas no governo. A primeira é procurar terra. A segunda é expropriá-la de quem tem em excesso,
para entregá-la a quem não possui
nenhuma. O ministro resolveu
metade dos seus problemas. Ele
tem à disposição um fabuloso estoque de terra. Tem tanta terra que
empacou na resolução da segunda
metade de seus problemas. Não
consegue fazê-la chegar a quem
precisa. "Vivo uma crise de excesso de terra", disse Jungmann, em
entrevista à Folha.
O ministro planeja pedir socorro
aos movimentos sociais, entre eles
o MST. Sua pasta tem algo como 4
milhões de hectares de terra
-uma área quase igual à do Estado do Rio de Janeiro. Daria para
assentar três vezes todas as 55 mil
famílias de sem-terra que se encontram acampadas à beira de estradas ou em terra alheia. O problema é que a máquina do governo não consegue vistoriar e avaliar
todas as propriedades. Daí a idéia
de recorrer até ao MST.
Jungmann não corre mais atrás
de terra. Não é preciso. Ela vem
em seu encalço. O ministro nunca
recebeu tantos telefonemas de fazendeiros. Eles oferecem as próprias propriedades em troca de
TDAs (Títulos da Dívida Agrária).
"Aceitam quase tudo", afirmou.
"O preço da terra caiu 60%."
As terras chegam a Jungmann
por duas outras vias: o Banco do
Brasil e o Ministério da Previdência. Oferecidas como pagamento
de dívidas, as propriedades são
agregadas ao estoque que se destina à realização da reforma agrária.
Leia abaixo os principais trechos
da entrevista do ministro, concedida na última quarta-feira.
Folha - Em que estágio está a reforma agrária no Brasil?
Raul Jungmann - Está concluído o processo de revisão normativa da legislação. Aprovamos o novo ITR, o rito sumário, o Banco da
Terra, a participação do Ministério Público. Isso é tanto mais interessante quando se sabe que a reforma agrária sempre foi bloqueada pelo Congresso. Estamos também iniciando a mudança do modelo institucional centralizador
gerado pela ditadura. O Banco da
Terra possibilita a descentralização.
Folha - Explique, por favor, o que
é Banco da Terra, em linguagem
que um lavrador possa entender.
Jungmann - É um financiamento para que ele possa adquirir
a terra, a sua casa, os equipamentos e os insumos necessários para
produzir. Ele tem 20 anos para pagar, com três anos de carência.
Parte do empréstimo pode ser paga com aquilo que ele produzir.
Folha - Quantos são os sem-terra
acampados hoje no país?
Jungmann - São em torno de 55
mil famílias, aí incluídas as do
MST, as da Contag e as dos demais
movimentos.
Folha - Sua conta bate com a do
MST?
Jungmann - Não. O MST diz
que só ele tem 51 mil famílias
acampadas. Esses dados não batem com os nossos.
Folha - Por que devemos acreditar nos seus números e não nos do
MST?
Jungmann - Todos esses acampamentos sobrevivem à base de
cestas básicas. Eu sei o número de
cestas básicas e posso deduzir o
número de famílias acampadas.
Folha - Quantos hectares de terra
o sr. tem para oferecer às famílias?
Jungmann - Em terras institucionais, que são aquelas ofertadas
por devedores do Banco do Brasil e
do INSS ou aquelas que já são do
Banco do Brasil e do INSS, temos
cerca de 4 milhões de hectares.
Folha - Mas 4 milhões de hectares não seriam mais do que suficientes para assentar as 55 mil famílias?
Jungmann - Dá para assentar
três ou quatro vezes mais do que o
necessário. O problema é que precisamos fazer um encontro entre a
oferta e a procura. E ainda vistoriar, avaliar todas essas terras.
Folha - O que o sr. quer dizer com
encontro entre oferta e procura?
Pode-se deduzir que há famílias
querendo terras em São Paulo e o
sr. quer colocá-las na Amazônia?
Jungmann - Não. Só em São
Paulo, o INSS tem aproximadamente 100 mil hectares. O problema é que precisamos vistoriar e
avaliar as terras. Chego a pensar se
não seria o caso de as vistorias técnicas serem feitas conjuntamente
pelos movimentos sociais, pela
Contag, pelo MST e pelo Incra.
Eles poderiam participar conosco
do próprio processo de vistoria.
Diriam se querem ou se não querem aquelas terras.
Folha - O sr. está dizendo que o
que separa o sem-terra da terra
são meras vistorias e avaliações?
Jungmann -
Além disso, é
preciso fazer
deslocamentos. Não é que
você tenha
uma família
aqui e precise
levá-la para o
Amazonas.
Muitas vezes
você tem uma
família acampada, por
exemplo, numa região oeste de São Paulo
e, mesmo naquela região,
há terras a 15
km, 20 km, 50
km, 100 km
dos acampados. Aí é preciso fazer um encontro. De modo que o nosso
problema não
é mais a terra.
Esse problema
da terra no
Brasil é uma
questão inteiramente resolvida. Há concentração de
terra, mas não
há mais obstáculos que impeçam o acesso
à terra. O problema passa a
ser o investimento sobre a
terra, ou seja, a
educação, a
saúde, o crédito.
Folha - Quanto tempo será
necessário para vistoriar esses 4 milhões
de hectares de
que o governo
já dispõe?
Jungmann - Aí é que está. Em
São Paulo, tenho 109 funcionários,
contra 700 mil do Estado de São
Paulo. Se eu contar com os engenheiros agrônomos e com os técnicos agrícolas do Estado, minha
velocidade se multiplica por dez.
Se eu somar técnicos de fundações, de ONGs e do próprio movimento social a velocidade tende a
ser suficiente para que se resolva o
problema.
Folha - Quanto tempo? Quatro,
cinco anos?
Jungmann - Se você leva em
conta que ao lado das terras institucionais a gente desapropria uma
média de 2 milhões de hectares,
então fica claro que você levaria alguns anos para resolver esse problema com os 6.200 funcionários
do Incra.
Folha - Comparando-se o
sem-terra a um sujeito faminto, é
como se ele tivesse um prato de
comida diante de si e não pudesse
pegá-lo porque o governo e sua
burocracia o impedem de fazê-lo.
Não é isso mesmo?
Jungmann - A imagem é até
procedente, mas uma das alternativas, eu volto a repetir, é convidar
o próprio movimento social, ou
seja, o MST, a Contag, para vistoriar a terra conosco.
O sr. já fez o convite?
Jungmann - Ainda não. Estou
pensando nisso. Podemos fazer isso porque não estamos lidando
com terras particulares, que só poderiam ser vistoriadas pelo governo. Estamos falando de terras institucionais, do INSS, do Banco do
Brasil. Essas podem perfeitamente
ser vistoriadas com a ajuda dos
movimentos sociais. Queremos
assumir com eles o compromisso
de que a média do investimento
por família assentada nessas terras
não ultrapasse R$ 20 mil. Ao assinar o contrato de assentamento, o
assentado aceitará a cláusula de
emancipação. Investiremos um
valor fixo e haverá um tempo necessário para que aquela família fique autônoma e comece a pagar
pela terra, pela casa, por tudo
aquilo que ela recebeu, como
manda o Estatuto da Terra, lei
4.504.
Folha - O sr. tem interlocução
com o MST, a ponto de formular
tal convite?
Jungmann - Claro. O MST está
sempre presente lá no Incra, negociando. Há conflitos, que ocorrem
no momento em que o MST rasura, desrespeita o estado de direito,
invadindo terras e prédios públicos. Aí não há outro jeito.
Folha - O sr. diz que os 4 milhões
de hectares do governo pertencem
ao Banco do Brasil e à Previdência.
Eles não deveriam estar recebendo
de seus devedores dinheiro em lugar de terra?
Jungmann - Eles não recebem
necessariamente a terra. Eles só
aceitam a terra quando o Incra se
dispõe a pagar em TDA por essas
terras. É um bom papel. É um bom
negócio. Eles podem negociar no
mercado secundário. Eles podem
abater as suas dívidas com isso.
Folha - O sr. diria que terra no
Brasil virou uma batata quente da
qual a elite quer se livrar?
Jungmann - Eu diria que uma
parte da elite. A elite que especulava, aquilo que eu chamo do eixo
Morumbi-Marabá. São pessoas
que moram em São Paulo e especulam com terras no Norte do
país. São pessoas que, durante os
anos 70, os anos 80, foram em busca de recursos fáceis da Sudam,
dos grandes projetos agropecuários, madeireiras etc. Esse pessoal
está com um grande mico na mão.
O preço da terra despencou, não
existem mais recursos fáceis. E temos o ITR (Imposto Territorial
Rural).
Folha - Por falar em ITR, o que
levou o governo a prever que arrecadaria R$ 1,6 bilhão com o ITR? A
arrecadação real foi de R$ 250 milhões, não é isso?
Jungmann - Bom, o preço da
terra caiu, em média, 60% em todo
o país. E o preço da terra é a base
para a arrecadação do imposto. Se
um cai, o outro também cai. Em
segundo lugar, nós ainda não tínhamos aprovado o novo imposto. Durante a negociação com o
Congresso, mudamos as alíquotas
das propriedades produtivas. Embora isso seja marginal, também
afetou o resultado final. Em terceiro lugar, é preciso que se diga que o
ITR não tinha uma base de dados
confiável. O processo anterior deixava enormes margens para dúvidas. Agora alcançamos um grau de
efetividade de 97%. Mas, se caiu a
arrecadação do imposto, também
caiu o preço da terra. Pagaremos
mais barato pela desapropriação.
Perdemos de um lado e ganhamos
do outro.
Folha - Ministro, com todo o respeito, se a base de dados da Receita Federal não era confiável, não
teria sido melhor evitar a previsão?
Jungmann - Era a base que nós
tínhamos. O que importa dizer é
que essa base de dados hoje é reforçada por um levantamento digital, feito com ajuda de satélite.
Pela primeira vez o Estado brasileiro abre a caixa preta do latifúndio.
Folha - Com a melhoria da base
de dados, o sr. arriscaria uma nova
previsão de arrecadação para 98?
Jungmann -Não, eu não chego
a fazê-lo. Mas posso dizer o seguinte: também, pela primeira vez,
você vai ter uma fiscalização eficiente. Utilizando todos os dados
digitalizados, vamos começar a
confrontar os dados que foram declarados.
Folha - O sr. diz que o preço da
terra caiu 60%. Há outras evidências de que a agricultura deixou de
ser um bom negócio. Ao mesmo
tempo, o sr. revela a intenção de
exigir do lavrador assentado que
ganhe dinheiro para reembolsar a
despesa que o governo teve com
ele. O que o leva a supor que o
sem-terra, sem instrução e sem
acesso à tecnologia, fará dinheiro
com a terra?
Jungmann - A propriedade familiar está encontrando uma rede
de amparo público. Cada vez mais
o dinheiro público tem que se voltar para a pequena e média propriedade. O setor público deve sair
da produção em grande escala,
que precisa ser bancada pela iniciativa privada. Os programas do
governo estão cada vez mais voltados para a agricultura familiar.
Folha - Pode-se dizer que a crise
agrária brasileira mudou de cara?
O problema não é mais de trabalhador sem-terra, mas de terra sem
trabalhador?
Jungmann - De certo modo pode-se dizer isso. A crise que eu vivo
é uma crise de oferta, de excesso de
terra. Para sair dessa crise, o instrumento é efetivamente o Banco
da Terra e a legislação que aí
está. Quando o
PT fez o seu
programa de
governo, na
campanha passada, o partido
calculava que
seriam necessários R$ 3,3 bi
por ano para
fazer a reforma
agrária. Ora,
eu já tenho no
orçamento R$
2,5 bi. Com
mais R$ 1 bi,
chego aos R$
3,5 bi. Já desapropriamos
quase 5,5 milhões de hectares, o que é um
recorde. A reforma agrária
no México levou 80 anos; na
Europa, cem
anos.
Folha - Nosso
problema é
que começamos tarde.
Jungmann -
Mas aí temos
uma vantagem. Em um
mundo de globalização, onde você tem
uma dificuldade dos setores
secundário e
terciário de gerar empregos,
um país com a
fronteira agrícola que nós temos, com as
terras que nós
temos, você
pode produzir
emprego a baixo custo desde
que o Estado
dê sustentação,
assistência e
crédito pessoal. O Brasil tem a vantagem do
atraso. Ele pode tirar proveito da
globalização.
Folha - E o sr. acha que esse Banco da Terra fornecerá todo o crédito necessário?
Jungmann - Claro. O sistema é
o seguinte: o beneficiado pode recorrer às terras disponíveis no estoque do governo ou negociar diretamente com qualquer proprietário. Ele é livre. É o mesmo modelo da Cédula da Terra, que está
sendo implantado em cinco Estados, com muito sucesso. No Nordeste, ficou demonstrado que o
preço da terra caiu a um terço. Sem
contar que o modelo permite evitar aquele velho sistema viciado de
tráfico de influência.
Folha - O que levará uma pessoa
a entrar em um banco, tomar um
empréstimo e pagar por esse empréstimo se ela pode se filiar ao
MST, invadir uma terra e receber a
propriedade de graça?
Jungmann - Bom, invadir uma
terra, correr o risco de morte, correr o risco de tiro, passar muitas
vezes um período que pode demorar meses embaixo de uma lona,
em condições muitas vezes muito
difíceis e assim por diante.
Folha - Mas o governo estimulou
esse tipo de prática ao desapropriar terras invadidas.
Jungmann -O que estimulou
esse tipo de coisa foi a concentração de terra e a pobreza, não o governo. O governo, historicamente,
tem responsabilidades na medida
em que, gerido por elites, não deu
resposta a essa situação. Houve
uma modernização conservadora
da agricultura, que gerou esse inchaço que nós temos aqui nas cidades, o esvaziamento do campo e
a pobreza.
Folha - Mas saindo da teoria para
a prática, o que há no imaginário
popular é a idéia de que o sujeito
que ingressar no MST e invadir
uma propriedade terá terra de graça. E o que vai levar esse mesmo
sujeito a contrair um empréstimo?
Jungmann -Em primeiro lugar,
a terra não é de graça. Pela lei, ela
tem que ser paga. E nós vamos começar a cobrar de todos os assentados no Brasil: cerca de 300 mil
famílias. Começarão a pagar.
Folha - Isso será uma novidade,
porque nunca foi cobrado.
Jungmann -Sim, nunca foi cobrado, mas é lei e vamos cobrar.
Os acampamentos mais antigos
do Brasil ainda estão pendurados
em verbas oficiais.
Jungmann - Sem dúvida, eu sei
disso. Mas penso que alguns assentamentos devem inclusive ser
erradicados. Não têm viabilidade
econômica. E, se é assim, é preciso
tirar aquelas famílias daquele lugar e colocar em outro. A terra não
será grátis. Além disso, o próprio
governo, em junho do ano passado, baixou o decreto 2.250, que diz
o seguinte: terra invadida não será
vistoriada. A partir daí, criou-se o
rito sumário, o Banco da Terra. E
estamos começando a ultrapassar
o impasse agrário sem que você tenha uma crise institucional. Precisamos agora aprofundar o processo e melhorar os assentamentos,
tornando-os produtivos.
Folha - O sr. foi procurado no ano
passado pelo empresário Olacyr de
Moraes. Ele queria vender a famosa Fazenda Itamaraty. O sr. continua recebendo telefonemas de fazendeiros?
Jungmann -Recebo, recebo, recebo muito. É fácil compreender
por que isso acontece. A terra perdeu valor. Eles dizem que estão
dispostos a negociar, pedem vistorias em suas terras, pedem avaliação. Eles aceitam inclusive entregar a benfeitoria. Pela lei, você teria que pagar a benfeitoria em dinheiro. Mas eles aceitam o TDA.
Eles aceitam até o parcelamento,
aceitam quase tudo. Estão com um
problema de liquidez, não aguentam o ITR.
Folha - O que o sr. diz?
Jungmann - Digo que o diretor
tal está disponível, que a superintendência tal está à disposição. Digo que a gente vai mandar fazer a
vistoria, mas sempre chamo a
atenção para o fato de que é preciso que haja demanda. Não adianta
oferecer uma área isolada, perdida
no meio do mundo.
Folha - O sr. lembra o nome dos
últimos fazendeiros que lhe telefonaram?
Jungmann - Há vários, mas
acho que precisaria ser autorizado
por eles. E, outra coisa, você pode
pegar pela lista do INSS. Há uma
porção de nomes lá de empresas
que têm nos procurado.
Folha - O sr. disse que está sobrando terra, um estoque de 4 milhões de hectares. Por que então o
governo se dispõe a receber terras
de empresas e fazendeiros?
Jungman - A demanda total de
terra para a reforma agrária no
Brasil, considerando aproximadamente 1 milhão de pessoas, está ao
redor de 30 a 35 milhões de hectares. As 55 mil famílias de que falamos são apenas as que estão acampadas. Mas há outras pessoas precisando de terra -o meeiro, o
posseiro, o minifundiário. Os 4
milhões de hectares disponíveis
servem para descomprimir o ambiente. Mas, para fazer a reforma
agrária propriamente dita, precisamos de mais terras e de uns dez
anos de prazo.
Folha - Quando o sr. irá procurar
o MST para propor que ajude a vistoriar as chamadas terras institucionais?
Jungmann - Primeiro devo fechar essa proposta no âmbito do
Incra. Depois, vamos procurar.
Mandarei uma carta convidando a
entidade para sentar e conversar.
Folha - Quando o sr. manda uma
carta para o MST, endereça a
quem?
Jungmann -Geralmente mando
para Brasília, para o representante
que eles têm na capital.
Folha - Qual o nome dele?
Jungmann -Chama-se Gilberto
Portes.
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