São Paulo, domingo, 1 de fevereiro de 1998

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ELIO GASPARI
O sonho americano de Bill Clinton e o debate brasileiro

O discurso do presidente Bill Clinton diante do Congresso dos Estados Unidos, feito na última terça-feira, foi uma das maiores peças de oratória política dos últimos tempos. Poucas vezes um governante apresentou ao seu povo uma visão tão audaciosa e possível de um futuro melhor.
À primeira vista, trata-se de coisa sem interesse abaixo do Equador. À segunda vista, vale a pena comparar os desafios administrativos e políticos que Clinton oferece ao povo americano. Alguns de seus propósitos não podem ser transplantados para o Brasil, mas o arcabouço de suas aspirações serve pelo menos para balizar a qualidade do debate por lá e por cá.
Educação
Clinton oferece um futuro no qual cada criança americana terá acesso à universidade: "Meu amigos, isso vai mudar a cara da América do século 21".
No Brasil, persegue-se a meta de colocar nas escolas de primeiro grau todas as crianças com menos de 10 anos.
Isso já foi conseguido pelo governador de Brasília, Cristovam Buarque. Gastando R$ 22 milhões por ano, o equivalente a 1% de seu orçamento, ele garante a escolaridade de 40 mil crianças de famílias pobres. Derrubou a evasão para 0,4% e a repetência para 7%. As famílias com renda de menos de meio salário mínimo por cabeça recebem o equivalente a um salário por mês. Se a criança faltar a mais de duas aulas, perde-se a mesada.
O Congresso aprovou um projeto baseado nessa idéia, com dois furos. Não determina o controle da frequência escolar (o que pode transformá-lo numa simples distribuição de dinheiro) nem define o valor da bolsa (o que pode resultar num caraminguá que desestimule até os necessitados). Vai depender de regulamentação. Se o debate for bem conduzido, acaba tudo bem.
É fato sabido que em muitas regiões pobres as crianças vão à escola para comer. FFHH orgulha-se de lembrar que "a merenda escolar é um dos maiores programas do mundo em termos de assistência direta à pobreza". No seu governo, ela passou a atingir mais crianças e a funcionar melhor. Agora, a ekipekonômica passou a faca nas verbas da merenda. O MEC pediu R$ 934 milhões para este ano, e o ministro Antonio Kandir mandou que se virasse com R$ 634 milhões, R$ 16 milhões a menos do que se gastou no ano passado, quando São Paulo levou um pequeno calote federal.
Clinton oferece um sistema educacional com classes menores. Sugere 18 crianças por sala de aula e vai estimular a reforma e construção de 5.000 escolas. Isso numa rede onde se dão 19,6 horas de aula por semana (contra 40 em Taiwan).
No Brasil, onde a maioria das crianças da rede pública recebe 16 horas de aulas por semana, circula a idéia segundo a qual o problema educacional nada tem a ver com a quantidade de escolas e salas, pois elas seriam suficientes. Em São Paulo, há sorteio de vagas, e em todos os Estados há classes superlotadas. Um mandarim da área informou o seguinte: "O grande problema da educação não é a falta de escolas ou dinheiro, mas a má distribuição de recursos".
Clinton orgulha-se de ter instituído um sistema de testes voluntários para aferir o grau de habilidade de leitura da garotada da 4ª série e de conhecimentos de matemática da 8ª. Ele diz: "Os pais têm o direito de saber como vão os conhecimentos de seus filhos".
No Brasil, existe um sistema de avaliação, por amostragem, das escolas de primeiro e segundo graus. Em matéria de avaliação individual dos estudantes, inventou-se o provão. Ele afere os conhecimentos do sujeito que acabou de se formar. Avalia as faculdades, pois, se a vítima não sabe nada, nada há também a fazer.
Pretende-se criar um exame federal, para os alunos do segundo grau, com o mesmo defeito. Vai avaliar a garotada no último ano, quando a vaca já viu o brejo.
Computadores
Clinton quer que nos próximos anos todas as crianças americanas saibam manusear um teclado e que todas as escolas estejam ligadas à Internet.
No Brasil, onde além da jaboticaba há a Lei da Informática, os computadores custam o dobro do que se cobra nos Estados Unidos. Isso, sabendo que uma família americana tem uma renda quatro vezes superior à média brasileira. Em Pindorama, um computador importado paga uma sobretaxa de 30% sobre seu valor, enquanto a comida de gato paga só 11%.
O Ministério da Educação pretende comprar 100 mil computadores para distribuí-los pela rede escolar pública. Um dos pais da idéia assegurou que eles seriam ligados à Internet, mas não sabia dizer quantas escolas têm duas linhas telefônicas.
Há dois anos, os aviões de Clinton e de FFHH pousaram no mesmo dia no aeroporto de Los Angeles. FFHH tinha ido inaugurar uma cátedra de estudos brasileiros na Universidade de Stanford. Clinton tinha ido ajudar a instalar cabos de conexão com a Internet em escolas públicas.
Clinton avisa que se está criando a segunda geração da rede Internet, mil vezes mais rápida que a atual.
No Brasil, aumentaram-se as tarifas telefônicas em alguns períodos noturnos, encarecendo as conexões com a rede. Um navegador brasileiro da Internet pode chegar a pagar cinco vezes mais que um americano pela sua linha e pelas ligações.
Saúde
Clinton informa que pretende inibir o consumo de cigarros entre os adolescentes. Quer aumentar os preços em US$ 1,50 ao longo dos próximos dez anos e quer punir as empresas que fizerem publicidade dirigida aos jovens. (Os anúncios da marca Camel, por exemplo.)
No Brasil, os fabricantes de cigarros estão brigando para baixar os preços e para vender maços menores.
Clinton orgulha-se de ter conseguido aprovar uma lei que permite ao trabalhador trocar de emprego mantendo o plano de saúde.
No Brasil, há senadores querendo engavetar o projeto de regulamentação dos planos de saúde aprovado pela Câmara. Nele, não se criou a possibilidade do transporte do plano de um emprego para outro, mas pelo menos garantiu-se aos desempregados e aos aposentados a possibilidade de permanência nos planos coletivos, pagando a parcela do empregador.
Memória Nacional
Clinton pediu ao povo americano que resgate, em cada cidade, os documentos da história do país, para preservar a memória do milênio que está acabando.
No Brasil, o prédio principal do Arquivo Nacional está praticamente desativado. Por falta de verbas, só funciona o porão. O Banco Interamericano de Desenvolvimento emprestou US$ 200 milhões ao governo brasileiro para financiar a recuperação de obras históricas. Parte desse dinheiro será usado na recuperação da praça Tiradentes, no Rio. O arquivo, um prédio de 1860, ficou fora da lista de prioridades. Sete capitais não têm arquivos municipais (Curitiba, Recife, Maceió, Manaus, Natal, Teresina e Palmas).
Não seria justo cobrar no Brasil o que Clinton está prometendo aos americanos. Seria até tolo. No entanto, algumas das visões que Clinton oferece ao seu povo são acessíveis aos brasileiros. Em alguns casos, podem dar trabalho, mas estão ao alcance. Basta discutir e perguntar por que aqui os cigarros são mais baratos e a Internet é mais cara, enquanto se incentiva a importação de comida de gato e se persegue quem compra computador.


Ferrovia? É coisa de americano. Nosso negócio é outro

As civilizações são construídas pelas gerações vivas. Não adianta dizer que o Brasil tem um passado diferente do americano. Tem, mas o Brasil da próxima geração será tanto melhor quanto a qualidade do sonho e do debate de hoje. O que vai mal é o debate. Em vez de copiar direito o programa de Cristovam Buarque, repete-se que o problema da educação é a má administração. É, mas a história de que as escolas são suficientes é falsa.
O Brasil e os Estados Unidos não estão em planetas diferentes. Seus donos é que têm propósitos diversos.
Faça-se de conta de que o Brasil de hoje não é o de fevereiro de 1998, mas de fevereiro de 1843. Era uma época em que tanto o Brasil quanto os Estados Unidos tinham escravidão, mas lá se começaram a construir ferrovias.
O Senado estava reunido no Rio quando entrou em discussão um projeto de resolução da Câmara aprovando a compra, pelo governo, de 2.000 ações de uma empresa que pretendia construir uma ferrovia ligando o Rio a São Paulo. O projeto tinha três anos de existência.
Dois senadores relataram contra. Um deles era Bernardo Pereira de Vasconcelos, uma das maiores figuras da época. Derrubaram a idéia.
O poderoso senador Aureliano Coutinho foi contra a ferrovia, argumentando na linha da tipicidade do Brasil:
- Ainda não conhecemos o nosso país e já queremos arremedar nações que existem a uma imensidade de séculos e que não sabem o que hão de fazer com o dinheiro. (Referia-se aos países europeus.)
Aureliano era contra o uso de dinheiro público no empreendimento. Não quis continuar o debate: "É gastar tempo em pura perda". (Duas suspeitas rondam o futuro visconde de Sepetiba: teria sido o introdutor do sorvete no Brasil e teria ganho um por fora na compra da chácara onde se construiu a Casa de Correção.)
O senador Costa Ferreira pediu mais uma rodada de debates. Nesse momento, entra em cena o grande Bernardo e sustenta que o projeto era fraudulento porque só previa um par de trilhos. Como o trem tinha que ir e voltar, seriam necessárias duas bitolas. Não sabia do que falava.
Bernardo sabia do que falava. O negócio dele não era ferrovia. Era o seguinte:
- Há mais de um ano que não entra no Brasil um só africano. (Risadas. Em 1842, tinham sido contrabandeados 17,5 mil, pelo menos.) Todas as grandes fábricas estão ameaçadas da imediata ruína. (...) Vão diminuindo seus produtos. Entretanto teremos estradas de ferro. Façamos despesas excessivas! (...) Estou na convicção de que terra nova e vasta não prospera sem o serviço do escravo.
Costa Ferreira, futuro Barão de Pindaré, respondeu:
- Olhe para a América do Norte e veja quais são os Estados que mais prosperam, se aqueles que têm escravos ou aqueles onde há somente gente livre.
Bernardo não aceita:
- O nobre senador parece que não está bem certo nestas matérias. Se (...) fosse a esses lugares, veria a abundância e a riqueza onde há escravos, e uma população disseminada e semibárbara onde não há escravidão.
Em 1843, o problema estava na qualidade do debate.
Em 1998, também.
Hoje, felizmente, um discurso como o de Clinton pode ser visto ao vivo na televisão. Quanto ao problema da mão-de-obra, Clinton defendeu o aumento do salário mínimo em termos reais e se orgulhou de ter devolvido ao mercado de trabalho 2 milhões de americanos que estavam no seguro-desemprego. Em Pindorama, dizem que discutir o desemprego é gastar tempo em pura perda.
(Os debates de 1843 estão no volume 2 da coleção "Anais do Senado do Império do Brasil", publicado em 1978 pelo Senado.)



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