São Paulo, domingo, 1 de fevereiro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DOMINGUEIRA
Nos tempos do colchão no chão

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo

O sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos, autor, entre outros, do polêmico e "O Príncipe da Moeda", prepara um novo livro.
Conta-me ao telefone que entre outros temas irá comentar o processo de passagem da eletrola, que ficava na sala, para o aparelho de som, que foi para o quarto de dormir. Puxa-me a memória para alguns ambientes dos filmes de Godard: o colchão no chão e o som ali no canto.
É a imagem da casa jovem de uma época, que foi apagada pelos neons da década de 80. O estilo, digamos assim, decorativo, era inspirado no "aparelho", aquele apartamento de subversivos que o Dops "estourava": Livros, revistas empilhadas, almofadão, colchão no chão, fogão e a impávida geladeira, fria e desértica.
A geração 70 conhece bem esse "world of interiors". E não apenas os filhos mais duros da classe média. Muitos meninos e meninas de famílias ricas moraram assim. Era uma opção, uma vontade de independência, um desejo de fugir ao convencional.
Havia naquela época uma "guerrilha" em curso, não apenas estritamente política. Combatia-se também no campo dos costumes, sobrevivia a idéia de que era preciso encontrar formas alternativas de vida etc, etc.
Certamente a ingenuidade também morava sob o teto do "aparelho", mas com ela vivia o inconformismo. Talvez hoje, os pais, possivelmente mais liberais, tenham conseguido apaziguar os ânimos ou enfrentem o mesmo conflito com sinais trocados -os filhos é que regulam.
O fato, já demonstrado por pesquisas, é que cada vez mais a garotada fica em casa. Há quem diga que é pelas dificuldades do mercado de trabalho. Pode ser, mas algo me diz que a acomodação tem um lugar nessa história.
O conforto doméstico transformou-se num valor para os jovens. A idéia de pegar aquele velho navio foi trocada pelos pacotes para Miami. O garotão e a Patrícia preferem ficar na casa do papai com microondas, vídeo, celular, ar condicionado, assistindo o "H" ou o "Programa Livre" e cantando "Hoje é Sexta-Feira" nos fins-de-semana.
É de prever um boom de venda de babadores.

Sobre a mudança do som da sala para o quarto, posso estar enganado, mas imagino o tema do ensaísta: o fenômeno que transformou a música pop num intermitente fundo musical da vida moderna.
Coloca-se música para comer, para ler, para dormir e -incrivelmente- para conversar. Os brasileiros, que já falam todos alto e ao mesmo tempo, acrescentaram ao barulho o último CD de fulano. No meio da gritaria alguém pára e avisa: "Ouve isso que é muito bom". Pausa de alguns segundos, pequenos comentários e volta a gritaria.
Será que não daria para fazer um pouco mais de silêncio -já que melhor do que ele só mesmo João?



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.