São Paulo, sábado, 01 de junho de 2002

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QUESTÃO AGRÁRIA

D. Tomás Balduíno diz que legislação favorece latifundiários ao vetar desapropriação de terras produtivas

FHC só fez "reforminha agrária", diz CPT

EDUARDO SCOLESE
DA AGÊNCIA FOLHA

RUBENS VALENTE
DO PAINEL

Presidente da CPT (Comissão Pastoral da Terra), dom Tomás Balduíno, 79, acredita que só uma mudança na Constituição poderá alavancar a política agrária do governo, classificada por ele como uma "reforminha agrária", "conservadora" e "compensatória".
Segundo ele, ao proibir que terras consideradas produtivas entrem no processo de reforma agrária, as atuais leis brasileiras favorecem os latifundiários. "Terra produtiva pode ser desapropriada para a construção de estradas, hidrelétricas, mas quando se fala em desapropriar essas áreas para reforma agrária, tudo muda, torna-se proibido", disse o presidente da CPT, ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.
Sobre o governo ter inflado os números dos balanços da reforma agrária, como revelou a Folha, d. Tomás alertou que novos dados maquiados podem surgir até a eleição. Leia trechos da entrevista:
 

Folha - De que forma o sr. encara o fato de o Ministério do Desenvolvimento Agrário ter inflado os números de seus últimos balanços? Depois da série de reportagens da Folha, os conceitos de assentamentos e assentados foram alterados.
D. Tomás Balduíno -
Houve uma falha ética ao modificarem os conceitos. Como sempre, se desconhece o social, se desconhece a luta do povo e se desconhece a organização popular. São conceitos burocráticos, frios.

Folha - Qual seria agora o papel das autoridades em relação aos balanços da reforma agrária divulgados pelo governo federal?
D. Tomás -
Eu acho que em primeiro lugar o Congresso não pode ficar ausente nessa questão. Acredito que o Ministério Público também deva participar da apuração das artimanhas desse novo conceito. O governo trabalhou o tempo todo com uma conceituação que é intencionalmente dirigida a responder as eventuais críticas de mentiras e fraudes.

Folha - O presidente Fernando Henrique Cardoso costuma dizer que está promovendo uma reforma agrária revolucionária, a maior da história contemporânea. Que avaliação o sr. faz disso?
D. Tomás -
O governo tem criminalizado os movimentos sociais e privilegiado os latifúndios. Isso não é revolução, e sim conservadorismo. Isso é tratar a organização popular como um grupo de bandidos, violentos e terroristas. O próprio cadastro de famílias na reforma agrária por correios foi uma forma de tirar a estabilidade dos movimentos populares, como o MST. O processo [de seleção" pelos correios é frio, burocrático e visa dispersá-los. Ninguém conhece ninguém. Procura afastar a união dos grupos que lutam pela reforma agrária.

Folha - O governo diz que desapropriou 20 milhões de hectares para reforma agrária. Isso não foi um golpe contra o latifúndio?
D. Tomás -
Não tenho dados precisos, mas sei que o latifúndio cresceu. Entre 1992 e 1998, houve um acréscimo de 56 milhões de hectares. São quatro vezes mais do que a terra que o governo distribuiu. É patente de qual lado ficou o governo nesse conflito.

Folha - O ex-ministro Raul Jungmann e o presidente Fernando Henrique Cardoso afirmam que tomaram de 4 a 5 milhões de hectares de terras dos grileiros. Isso não foi um golpe contra o latifúndio?
D. Tomás -
Olha, foram terras da Amazônia. Eu gostaria de ver isso aqui. Nem tanto no Sudeste, mas principalmente na região Centro-Oeste. Na Amazônia eu acho que haja campo para isso. O governo federal flagrou terras que o Estado ainda não havia vendido a particulares. Eu acho que o governo encontrou uma brecha muito boa para pegar aquelas terras que estavam ocupadas. Então dá para fazer uma bela propaganda.

Folha - Os movimentos sociais, liderados pelo MST, intensificaram as invasões no país. Qual sua opinião sobre essas iniciativas, principalmente considerando o fato de estarmos em um ano eleitoral?
D. Tomás -
O MST deve ter "n" razões para fazer essa programação englobando o país todo. No caso de Buritis [quando o MST invadiu a fazenda dos filhos de FHC", por exemplo, foi um desejo de manifestar uma situação inaceitável de tratamento da problemática agrária e agrícola.

Folha - Ao apresentar números inflados da reforma agrária, a quem o governo está querendo dar uma espécie de resposta?
D. Tomás -
Isso sem dúvida tem um cunho político, dentro de uma fase eleitoreira. A gente também sabe que isso [a divulgação dos balanços" repercute internacionalmente. O Brasil é muito acompanhado em relação aos conflitos de terra. Acho que ainda virão mais dados por aí.

Folha - Quando o sr. diz que virão mais dados, quer dizer então que virão mais dados maquiados?
D. Tomás -
Maquiados. Eu não ficarei admirado se aparecerem dados para chamar a atenção em relação à fome.

Folha - O sr. disse anteriormente que a reforma agrária do atual governo não é revolucionária. Qual seria então o seu conceito sobre uma revolução na reforma agrária?
D. Tomás -
Ela começa nas bases. Houve bons avanços, mas dentro de coisas paliativas e medidas compensatórias. Esse governo usou muitas medidas compensatórias até um certo momento, depois nem isso. Tudo o que aconteceu sobre reforma agrária foi com o instrumento das ocupações. Eu tiro o chapéu, pois tornaram-se assentamentos. Eu chamo isso de uma reforminha agrária, feita como medida compensatória.

Folha - Na prática, como seria a reforma agrária que o sr. espera?
D. Tomás -
Tem de mexer na lei. A lei é um grande aparato estabelecido pela elite para rodear o programa. É como colocar uma pedra do tamanho do "Pão-de-Açúcar" no caminho da reforma agrária. Deveria-se mexer na Constituição, retirar esse obstáculo. Terra produtiva pode ser desapropriada para a construção de estradas, hidrelétricas, mas quando se fala em desapropriar essas áreas para reforma agrária, tudo muda, torna-se proibido. É preciso que se acabe com os latifúndios. Nós temos espaço para manter a produção e aumentar o acesso à terra. O problema é a existência de estoque de terra para especulação.

Folha - O sr. pretende que se mexa em área realmente produtiva?
D. Tomás -
Não. Eu acho que a lei e o legislador devem ter um posicionamento que abra as portas para a reforma agrária. Pode ser que hoje isso seja limitado, mas que não impeça que daqui a cem anos seja de outra forma.

Folha - Como sr. resumiria a situação dos assentamentos do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) hoje no país?
D. Tomás -
Duas coisas: há assentamentos muito precários, que entraram na linha do processo de empobrecimento da agricultura. Isso é um dado reconhecido. Em segundo lugar, tínhamos de reconhecer o sucesso do processo de assentamento. Temos de reconhecer que houve um crescimento educacional, técnico. Assentamento, com o mínimo de apoio, dá certo, pode dar certo.



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