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NO PLANALTO
A crise é você
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Li em algum lugar, não me
lembro onde, um caso interessante envolvendo Picasso e o
seu "Guernica", quadro que mostra a destruição da cidade de
mesmo nome durante a guerra
civil espanhola.
Um graduado militar alemão
fez uma visita a Picasso em seu
estúdio. Ao dar de cara com uma
reprodução de "Guernica" na parede, perguntou: "Foi o senhor
que fez?" E Picasso: "Não, não.
Foram os senhores".
O eleitor brasileiro tem mania
de olhar com distanciamento típico dos "scholars" o quadro de
ruína de sua cidade. É notável,
por exemplo, o caso de São Paulo,
essa vistosa Guernica que pende
do mapa do Brasil. O paulistano
age como se não fosse com ele.
Cômodo. Muito cômodo. Mas desonesto.
O eleitor brasileiro, em especial
o morador de São Paulo, deveria
desperdiçar um naco deste domingo eleitoral para fazer uma
introspecção. Pode ser após o despertar, barriga colada à pia do
banheiro, enquanto espalha o
dentifrício pelas cerdas da escova.
Levando a experiência a sério,
depois de bochechar e lavar o rosto, o portador de título eleitoral
enxergará no espelho, no instante
em que erguer os olhos para pentear os cabelos, o reflexo de um
culpado.
Indo mais fundo no processo de
auto-exame, o eleitor verá materializar-se diante de seus olhos o
óbvio: prefeitos e vereadores não
surgem por geração espontânea.
Eles nascem do voto.
E o eleitor talvez levante da mesa do café da manhã convencido
de que a crise na sua cidade exige
dele uma atitude. Um gesto individual e consciente.
No caso de São Paulo, que não é
único no país, a crise não admite
mais que o eleitor se mantenha
exilado no conforto de sua omissão política. Intima-o a retornar
à história de sua cidade, moralizando-a.
O primeiro passo é o abandono
da cômoda e tola retórica de que
os políticos "são todos iguais".
Não são. A igualdade absoluta é
uma impossibilidade genética. É
papel do eleitor distinguir diferenças, não erigir desculpas que,
na prática, o eximem de pensar.
O segundo passo é a caída em
si, a descoberta de que se está
diante de um desses momentos
mágicos. Circunstância única,
em que o poder está nas suas
mãos. Ou, por outra, está na ponta do seu dedo indicador. É com
ele que você irá dedilhar o teclado da urna eletrônica.
A magia desse instante está na
possibilidade de começar tudo de
novo, do zero. Não é todo dia que
se tem uma nova chance. Lembre-se: para o eleito inconsciente,
o eleitor impaciente é um santo
remédio.
Assim, ao abrir o guarda-roupa, escolha um traje especial, à
altura da ocasião. Leve a mão ao
fundo do armário. Desencave
aquela roupa empoeirada, esquecida no canto. Vista-se de cidadão.
Ao ganhar o meio-fio, apague
por um instante de sua mente os
megatemas nacionais, esses assuntos que costumam polvilhar a
primeira página dos jornais. Esqueça Brasília. Risque o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto de seus pensamentos.
Abra o seu espírito para as miudezas que o cercam. Se estiver em
São Paulo, respire com vagar. Absorva cada partícula de poluição
a que tem direito. Aguce o tímpano. Deixe que os ruídos urbanos o
invadam.
Dê uma boa olhada na feiúra à
sua volta. Repare na sujeira das
ruas e dos monumentos. Fixe o
olhar nos buracos da pista. Observe a ausência de transportes
coletivos decentes. Note o lixo
acumulado na quina do asfalto.
Eis a cidade diante dos seus
olhos. É nesse pedaço de universo,
vísceras à mostra, que você come
e passa fome, dorme e perde o sono, trabalha e fica desempregado, ama e odeia, canta e chora,
espolia e é assaltado. É aqui que
você vive e morre a cada dia.
Entrando na cabine eleitoral,
trate de pôr um ar solene na face.
Não tenha pressa. Você é o dono
desse momento. Aproveite-o. Deguste-o. Você tem o poder, lembra-se? Você é o protagonista do
espetáculo. Você...
Faça uma visita ao seu interior.
Encontre-se consigo mesmo. Certifique-se de que não esqueceu a
consciência em casa. Converse
com ela. Questione-a. Depois, estique o dedo e vote com a alma.
Há sempre a alternativa de lavar as mãos e continuar entregando o caso à divina providência. Se preferir esse caminho, tudo bem. Mas não reclame amanhã, quando descobrir que Deus
está morto. Sua omissão o matou. Sente-se e reze. Peça perdão.
Expie os seus pecados. A crise é
você.
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