São Paulo, segunda-feira, 02 de fevereiro de 2009

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ENTREVISTA OSCAR NIEMEYER

Tombamento de Brasília é uma besteira

Para arquiteto, há uma divisão entre ricos e pobres na capital do país; cidades-satélites são "uma grande favela", afirma ele

DENISE MENCHEN
DA SUCURSAL DO RIO

Alvo de críticas desde que apresentou o projeto de construção da Praça da Soberania, em Brasília, o arquiteto Oscar Niemeyer, 101, rebate chamando de uma "besteira" o tombamento da cidade que impede a nova obra. "Isso é uma mentira, uma besteira, porque advogados já disseram que eu tenho todo o direito de fazer uma intervenção. (...) Se o Rio fosse tombado, o [ex-prefeito] Pereira Passos não teria feito essa avenida fantástica [Rio Branco] (...) As cidades sempre acabam sendo modificadas, queira ou não queira."

Niemeyer recebeu a Folha para uma conversa em seu escritório na Avenida Atlântica, zona sul do Rio, anteontem.
Desgostoso com a celeuma criada em torno do projeto, ele parecia ansioso para rebater os ataques de que se viu alvo nas últimas semanas. Acendeu um cigarro, pediu à repórter um tempo "para respirar" e, pouco depois, sem abrir espaço para a primeira pergunta, pôs-se a comentar o último capítulo da polêmica: a proposta de criação de uma comissão de notáveis para assessorar o governo do Distrito Federal nas questões que envolvem a arquitetura e o urbanismo da região.

 

OSCAR NIEMEYER - Eu não quero mexer no Plano Piloto, como dizem por aí. O que nós queremos é tirar de Brasília a ideia de que é uma cidade dividida entre pobres e ricos. Os que moram em Brasília moram confortavelmente, em apartamentos bons, com bons serviços. Mas os que moram nas cidades-satélites estão completamente abandonados. É horrível, uma grande favela. É um contraste que nós, arquitetos que nos interessamos por problemas políticos, não podemos aceitar. A comissão serviria para assessorar o governador sobre o que pode ocorrer em relação ao urbanismo e à arquitetura, para que sejam construídos prédios modernos, com tudo o que falta lá, como escolas, creches, serviços de saúde, centros de diversão e esporte, tudo isso. O Juscelino [Kubitschek, ex-presidente responsável pela construção de Brasília], um homem generoso como era, não permitiria o que está se passando nas cidades satélites. Ele nunca aceitaria uma cidade que parece dividida entre pobres e ricos.
Se o Juscelino estivesse vivo, ele ia ficar do meu lado.

FOLHA - Então, a questão da praça é até secundária nessa discussão?
NIEMEYER
- A praça é indispensável. Toda a cidade tem uma praça mais importante, monumental. Mas isso é secundário.

FOLHA - Porque o senhor considera a praça indispensável?
NIEMEYER
- Falta a Brasília uma praça importante, como em todas as cidades do mundo existe.
Você vai a qualquer capital do mundo e vê isso, mas em Brasília não. E a praça é muito boa.
Primeiro por causa do estacionamento para 3.000 carros. E depois porque ela é bonita, monumental. Tem o projeto do memorial dos presidentes e o triângulo que tem dois andares para uma grande exposição mostrando o desenvolvimento do país e que depois vai se transformando no monumento. Seria tão bonita. E uma cidade tem que ter isso. O sujeito chega e tem que se espantar com a grandeza que ela apresenta. Brasília está um pouco modesta diante desse país que cresce com tanto entusiasmo.

FOLHA - Mas como o senhor vê o argumento do superintendente do Iphan no Distrito Federal, segundo o qual o projeto é ilegal porque fere o tombamento da cidade?
NIEMEYER
- Isso é uma mentira, uma besteira, porque os advogados mais importantes já disseram que eu tenho todo o direito de fazer uma intervenção. E todas as cidades do mundo sofreram modificações. Paris, Barcelona, Nova York, todas sofreram modificações. No Brasil, por exemplo, se o Rio fosse tombado, o [ex-prefeito] Pereira Passos não teria feito essa avenida fantástica [Rio Branco] que o [arquiteto franco-suíço] Le Corbusier elogiou com tanto entusiasmo. As cidades sempre acabam sendo modificadas, queira ou não queira. Sempre aparece uma coisa nova que obriga a modificação.

FOLHA - Então Brasília não foi pensada como uma obra pronta?
NIEMEYER
- Foi. Mas, como todas as cidades, ela é sujeita a modificações. Uma cidade não pode ser tombada, porque sempre aparecem modificações. Se Paris fosse tombada, não existiria a Champs-Élysées nem o Arco do Triunfo. Se Barcelona fosse tombada, a cidade não teria se voltado naturalmente para o mar. Se Nova York fosse tombada, não existiriam os arranha-céus que ocuparam a cidade horizontal que antes existia. Uma cidade tombada é ignorância. As modificações são inevitáveis, e Brasília ainda vai passar por muitas delas. O tempo obriga a isso.

FOLHA - Mas a praça não poderia ser construída em outro local que não o canteiro central do Eixo Monumental?
NIEMEYER
- Não. Ali é o lugar certo, não está perturbando nada e não interfere no plano de Brasília. E eu tive o apoio dos arquitetos mais importantes do país. Bastava o depoimento do Lelé [João Filgueiras Lima], que é o arquiteto mais importante do Brasil, para eu me satisfazer. E teve ainda outros arquitetos mais antigos, inclusive os que trabalharam na parte de urbanismo com o Lúcio [Costa], que se manifestaram a meu favor. O Glauco Campello, o Ítalo Campofiorino, o [José] Leal, o [Luiz] Marçal, o Jayme Zettel, todos foram da equipe mais antiga de Brasília e se manifestaram a meu favor.

FOLHA - Mas o projeto recebeu críticas da filha do Lúcio Costa. Para Maria Elisa Costa, a construção da praça poderia acabar servindo como pretexto para a alteração da legislação de tombamento, o que "abriria a cancela para as bobagens dos mal-intencionados". O senhor acha que esse risco existe?
NIEMEYER
- Eu não quero dizer uma palavra contra ela. Ela pode dizer o que ela quiser, é uma pessoa amiga e amizades antigas eu não costumo ofender.

FOLHA - E o que o senhor acha da crítica de que o projeto atrapalharia a visão da rodoviária?
NIEMEYER
- Começa que a rodoviária não é um prédio importante. O que caracteriza Brasília são os palácios. A rodoviária é o prédio que em geral não está no centro, que fica discreto no canto da cidade. Não precisa ter importância. E, pelo projeto, o prédio mais próximo da rodoviária fica a 400 m de distância.

FOLHA - O senhor acha que o Lúcio Costa apoiaria o projeto?
NIEMEYER
- Lógico. Ele era um homem inteligente. Ia gostar da contribuição, que dá muito mais força a Brasília. Faz falta em Brasília um aspecto de mais força arquitetônica.

FOLHA - Mas a população da cidade parece estar contra o projeto. Numa enquete do "Correio Braziliense", mais de 70% responderam contrariamente à obra.
NIEMEYER
- Ah, isso foi uma enquete ridícula. É tão fácil fazer uma enquete assim. Nem me interessei por isso.

FOLHA - E como o senhor recebeu a crítica do líder do PT na Câmara, Maurício Rands? Ao saber do projeto, ele reclamou da distância que separa o anexo 4 do plenário e disse que o senhor é "ruim de serviço"...
NIEMEYER
- Eu não vou responder para ele. Não me interessa a opinião dele.

FOLHA - O senhor esperava que o projeto suscitasse tantas reações apaixonadas?
NIEMEYER
- Esperava, lógico. O problema é que eles falam sobre o meu trabalho e eu não quero criticar o Plano Piloto.
Eu evito falar, mas podia, porque todo projeto tem coisas para se discutir. O que me interessa é que os arquitetos mais importantes do Brasil ficaram do meu lado, inclusive os que trabalharam no plano do Lúcio. Só que já estou um pouco cansado dessa discussão. Perco muito tempo, e estou com trabalhos por toda parte. Na Itália, na França, até no Cazaquistão...

FOLHA - O senhor ficou decepcionado com os críticos do projeto?
NIEMEYER
- Não, briga é assim mesmo. Não estou com ódio de ninguém. E, quando a pessoa é inteligente e dá para conversar, tudo bem. Agora, quando é ignorante ou tem a petulância que só a falta de conhecimento provoca, aí a gente nem responde. E a briga nos permitiu uma coisa importante, que foi essa proposta de criação de uma comissão de arquitetos de alto nível para se ocupar dos problemas do urbanismo e da arquitetura na cidade. Não tem nada de especial, mas é algo que faltava para o acompanhamento do que está acontecendo e a proposição de soluções mais justas, com planos inteligentes para as cidades-satélites.

FOLHA - E em relação à praça, o senhor acha que ela irá sair do papel?
NIEMEYER
- Não sei. O projeto foi feito. Está bem estudado, com tudo resolvido. Agora não é comigo. Minha obrigação é defendê-lo. Se sair, melhor para mim. Se não, dá no mesmo. Mas ele não compromete o Plano Piloto e dá mais beleza, mais força arquitetônica à cidade.


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