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ENTREVISTA OSCAR NIEMEYER
Tombamento de Brasília é uma besteira
Para arquiteto, há uma divisão entre ricos e pobres na capital do país; cidades-satélites são "uma grande favela", afirma ele
DENISE MENCHEN
DA SUCURSAL DO RIO
Alvo de críticas desde que apresentou o projeto de
construção da Praça da Soberania, em Brasília, o arquiteto Oscar Niemeyer, 101, rebate chamando de
uma "besteira" o tombamento da cidade que impede a
nova obra. "Isso é uma mentira, uma besteira, porque
advogados já disseram que eu tenho todo o direito de
fazer uma intervenção. (...) Se o Rio fosse tombado, o
[ex-prefeito] Pereira Passos não teria feito essa avenida fantástica [Rio Branco] (...) As cidades sempre acabam sendo modificadas, queira ou não queira."
Niemeyer recebeu a Folha
para uma conversa em seu escritório na Avenida Atlântica,
zona sul do Rio, anteontem.
Desgostoso com a celeuma
criada em torno do projeto, ele
parecia ansioso para rebater os
ataques de que se viu alvo nas
últimas semanas. Acendeu um
cigarro, pediu à repórter um
tempo "para respirar" e, pouco
depois, sem abrir espaço para a
primeira pergunta, pôs-se a comentar o último capítulo da
polêmica: a proposta de criação
de uma comissão de notáveis
para assessorar o governo do
Distrito Federal nas questões
que envolvem a arquitetura e o
urbanismo da região.
OSCAR NIEMEYER - Eu não quero
mexer no Plano Piloto, como
dizem por aí. O que nós queremos é tirar de Brasília a ideia de
que é uma cidade dividida entre
pobres e ricos. Os que moram
em Brasília moram confortavelmente, em apartamentos
bons, com bons serviços. Mas
os que moram nas cidades-satélites estão completamente
abandonados. É horrível, uma
grande favela. É um contraste
que nós, arquitetos que nos interessamos por problemas políticos, não podemos aceitar. A
comissão serviria para assessorar o governador sobre o que
pode ocorrer em relação ao urbanismo e à arquitetura, para
que sejam construídos prédios
modernos, com tudo o que falta
lá, como escolas, creches, serviços de saúde, centros de diversão e esporte, tudo isso. O Juscelino [Kubitschek, ex-presidente responsável pela construção de Brasília], um homem
generoso como era, não permitiria o que está se passando nas
cidades satélites. Ele nunca
aceitaria uma cidade que parece dividida entre pobres e ricos.
Se o Juscelino estivesse vivo,
ele ia ficar do meu lado.
FOLHA - Então, a questão da praça
é até secundária nessa discussão?
NIEMEYER - A praça é indispensável. Toda a cidade tem uma
praça mais importante, monumental. Mas isso é secundário.
FOLHA - Porque o senhor considera
a praça indispensável?
NIEMEYER - Falta a Brasília uma
praça importante, como em todas as cidades do mundo existe.
Você vai a qualquer capital do
mundo e vê isso, mas em Brasília não. E a praça é muito boa.
Primeiro por causa do estacionamento para 3.000 carros. E
depois porque ela é bonita, monumental. Tem o projeto do
memorial dos presidentes e o
triângulo que tem dois andares
para uma grande exposição
mostrando o desenvolvimento
do país e que depois vai se
transformando no monumento. Seria tão bonita. E uma cidade tem que ter isso. O sujeito
chega e tem que se espantar
com a grandeza que ela apresenta. Brasília está um pouco
modesta diante desse país que
cresce com tanto entusiasmo.
FOLHA - Mas como o senhor vê o
argumento do superintendente do
Iphan no Distrito Federal, segundo o
qual o projeto é ilegal porque fere o
tombamento da cidade?
NIEMEYER - Isso é uma mentira,
uma besteira, porque os advogados mais importantes já disseram que eu tenho todo o direito de fazer uma intervenção.
E todas as cidades do mundo
sofreram modificações. Paris,
Barcelona, Nova York, todas
sofreram modificações. No
Brasil, por exemplo, se o Rio
fosse tombado, o [ex-prefeito]
Pereira Passos não teria feito
essa avenida fantástica [Rio
Branco] que o [arquiteto franco-suíço] Le Corbusier elogiou
com tanto entusiasmo. As cidades sempre acabam sendo modificadas, queira ou não queira.
Sempre aparece uma coisa nova que obriga a modificação.
FOLHA - Então Brasília não foi pensada como uma obra pronta?
NIEMEYER - Foi. Mas, como todas as cidades, ela é sujeita a
modificações. Uma cidade não
pode ser tombada, porque sempre aparecem modificações. Se
Paris fosse tombada, não existiria a Champs-Élysées nem o
Arco do Triunfo. Se Barcelona
fosse tombada, a cidade não teria se voltado naturalmente para o mar. Se Nova York fosse
tombada, não existiriam os arranha-céus que ocuparam a cidade horizontal que antes existia. Uma cidade tombada é ignorância. As modificações são
inevitáveis, e Brasília ainda vai
passar por muitas delas. O tempo obriga a isso.
FOLHA - Mas a praça não poderia
ser construída em outro local que
não o canteiro central do Eixo Monumental?
NIEMEYER - Não. Ali é o lugar
certo, não está perturbando nada e não interfere no plano de
Brasília. E eu tive o apoio dos
arquitetos mais importantes do
país. Bastava o depoimento do
Lelé [João Filgueiras Lima],
que é o arquiteto mais importante do Brasil, para eu me satisfazer. E teve ainda outros arquitetos mais antigos, inclusive
os que trabalharam na parte de
urbanismo com o Lúcio [Costa], que se manifestaram a meu
favor. O Glauco Campello, o
Ítalo Campofiorino, o [José]
Leal, o [Luiz] Marçal, o Jayme
Zettel, todos foram da equipe
mais antiga de Brasília e se manifestaram a meu favor.
FOLHA - Mas o projeto recebeu críticas da filha do Lúcio Costa. Para
Maria Elisa Costa, a construção da
praça poderia acabar servindo como
pretexto para a alteração da legislação de tombamento, o que "abriria
a cancela para as bobagens dos mal-intencionados". O senhor acha que
esse risco existe?
NIEMEYER - Eu não quero dizer
uma palavra contra ela. Ela pode dizer o que ela quiser, é uma
pessoa amiga e amizades antigas eu não costumo ofender.
FOLHA - E o que o senhor acha da
crítica de que o projeto atrapalharia
a visão da rodoviária?
NIEMEYER - Começa que a rodoviária não é um prédio importante. O que caracteriza Brasília são os palácios. A rodoviária
é o prédio que em geral não está
no centro, que fica discreto no
canto da cidade. Não precisa ter
importância. E, pelo projeto, o
prédio mais próximo da rodoviária fica a 400 m de distância.
FOLHA - O senhor acha que o Lúcio
Costa apoiaria o projeto?
NIEMEYER - Lógico. Ele era um
homem inteligente. Ia gostar
da contribuição, que dá muito
mais força a Brasília. Faz falta
em Brasília um aspecto de mais
força arquitetônica.
FOLHA - Mas a população da cidade parece estar contra o projeto. Numa enquete do "Correio Braziliense", mais de 70% responderam contrariamente à obra.
NIEMEYER - Ah, isso foi uma enquete ridícula. É tão fácil fazer
uma enquete assim. Nem me
interessei por isso.
FOLHA - E como o senhor recebeu a
crítica do líder do PT na Câmara,
Maurício Rands? Ao saber do projeto, ele reclamou da distância que separa o anexo 4 do plenário e disse
que o senhor é "ruim de serviço"...
NIEMEYER - Eu não vou responder para ele. Não me interessa a
opinião dele.
FOLHA - O senhor esperava que o
projeto suscitasse tantas reações
apaixonadas?
NIEMEYER - Esperava, lógico. O
problema é que eles falam sobre o meu trabalho e eu não
quero criticar o Plano Piloto.
Eu evito falar, mas podia, porque todo projeto tem coisas para se discutir. O que me interessa é que os arquitetos mais importantes do Brasil ficaram do
meu lado, inclusive os que trabalharam no plano do Lúcio. Só
que já estou um pouco cansado
dessa discussão. Perco muito
tempo, e estou com trabalhos
por toda parte. Na Itália, na
França, até no Cazaquistão...
FOLHA - O senhor ficou decepcionado com os críticos do projeto?
NIEMEYER - Não, briga é assim
mesmo. Não estou com ódio de
ninguém. E, quando a pessoa é
inteligente e dá para conversar,
tudo bem. Agora, quando é ignorante ou tem a petulância
que só a falta de conhecimento
provoca, aí a gente nem responde. E a briga nos permitiu uma
coisa importante, que foi essa
proposta de criação de uma comissão de arquitetos de alto nível para se ocupar dos problemas do urbanismo e da arquitetura na cidade. Não tem nada
de especial, mas é algo que faltava para o acompanhamento
do que está acontecendo e a
proposição de soluções mais
justas, com planos inteligentes
para as cidades-satélites.
FOLHA - E em relação à praça, o senhor acha que ela irá sair do papel?
NIEMEYER - Não sei. O projeto
foi feito. Está bem estudado,
com tudo resolvido. Agora não
é comigo. Minha obrigação é
defendê-lo. Se sair, melhor para mim. Se não, dá no mesmo.
Mas ele não compromete o Plano Piloto e dá mais beleza, mais
força arquitetônica à cidade.
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