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São Paulo, domingo, 02 de março de 2003

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ELIO GASPARI

A aula do doutor Maniglia

Uma história que dá gosto contar. Nos anos 50, Antonio Maniglia tinha um sonho: estudar medicina. Vivia em Franca, no interior de São Paulo, onde seu pai ganhava a vida como pedreiro. No Brasil do ensino público gratuito o garoto passou no vestibular e foi estudar na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto. Viveu numa república da rua Quintino Bocayuva e se virava dando aulas à noite num colégio da cidade. Formou-se em 1962, entre os três primeiros da turma. Foi para os Estados Unidos, e lá ficou. Tornou-se um grande cirurgião de cabeça e pescoço, lecionando e trabalhando em grandes hospitais de Cleveland, Nova York e Miami.
A repórter Renata Cafardo descobriu que Antonio Maniglia voltou a Ribeirão Preto. Tem 65 anos. Examinou os projetos de sua faculdade e resolveu doar US$ 85 mil para a construção do prédio de uma Unidade de Virologia. Sua doação vai se juntar a recursos da universidade e da Fapesp. É a maior doação em dinheiro já recebida pela USP, uma das maiores já feitas a uma faculdade pública. Isso acontece ao mesmo tempo em que um ex-presidente brasileiro associa-se a um centro de estudos de uma universidade estrangeira. Fernando Henrique Cardoso vai para o Watson Institute, da universidade Brown. O instituto foi criado à custa de Thomas Watson Jr. (turma de 1937), o empresário que transformou a IBM na maior empresa de computadores do mundo. Ele doou em torno de US$ 50 milhões à Brown.
Pode-se estimar que, da matrícula ao canudo, um aluno de curso superior custe à Viúva algo como R$ 50 mil. A USP deve ter cerca de 150 mil ex-alunos. Há dois anos sua reitoria botou uma página (precária) na Internet, aceitando doações. Arrecadou nada. Graças a uns poucos doadores ela recebe, no máximo, R$ 100 mil por ano. (O banqueiro Olavo Setúbal dá 10 salários mínimos por mês, para ajudar estudantes de engenharia). Todas as outras universidades públicas brasileiras devem ter pelo menos um milhão de ex-alunos. Sabe-se de uma doação anônima de uns US$ 100 mil, mas o resto é silêncio. A legislação nacional não diferencia uma doação de R$ 10 para uma universidade ou para um flanelinha. O incentivo tributário é zero.
A aversão do andar de cima a doar dinheiro para estimular o ensino superior é tão funda que há poucos anos a PUC de São Paulo achou que podia arrecadar uns cobres mandando cartas aos seus ex-alunos. O retorno não cobriu as despesas com a postagem dos pedidos.
Maniglia deu uma aula de generosidade e reconhecimento às universidades públicas e aos seus ex-alunos. Em 2002 o primeiro colocado na turma da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto foi o estudante Gustavo Maciel, filho de um caminhoneiro. O diretor da escola, professor Ayrton Moreira, tem a sua fotografia em cima da mesa de trabalho. Moreira, por sua vez, é filho de um escriturário de centro de saúde com uma costureira. Sem as universidades públicas gratuitas, Maniglia, Maciel e Moreira dificilmente teriam se tornado médicos. Felizmente, o filho do pedreiro de Franca voltou a Ribeirão e devolveu, com juros de Henrique Meirelles (ex-aluno da Politécnica da USP), tudo o que recebeu da Viúva.
É comum ouvir-se que a filantropia não faz parte da cultura brasileira. Lorota. Buscar doações (e submeter-se ao escrutínio dos filantropos) é que não faz parte da administração nacional. O Museu de Arte de São Paulo é um monumento à capacidade de Assis Chateaubriand de obrigar a plutocracia nacional a doar algo do que é seu. A Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz nasceu de uma doação. A Fundação Estudar, mantida por empresários, doou US$ 3,7 milhões em doze anos, bancando 249 bolsas para estudantes qualificados em escolas brasileiras e estrangeiras. Cada bolsista tem seu desempenho monitorado.
No mundo das soluções criativas que podem fazer a beleza de um governo, professores, alunos e ex-alunos poderiam se juntar, criando pelo menos alguns casos exemplares de melhoria dos orçamentos das universidades por intermédio das doações. Não é o caso de se esperar que apareça um Thomas Watson para doar US$ 50 milhões, mas deve-se sempre lembrar que um taberneiro chamado John Harvard deixou seus livros para que a partir deles se fizesse uma universidade. Pode-se mostrar que além de palmeiras e sabiás, Pindorama tem muitos Antonio Maniglia. É só procurá-los.

Exército na rua: Carnaval e demagogia

É demagógica e inepta a decisão de colocar o Exército nas ruas do Rio de Janeiro para reforçar a luta contra o crime. Demagogia e inépcia semelhante à do helicóptero que o Exército usou para sobrevoar as greves do Lula em 1981.
Usado para policiar a cidade durante uma reunião de chefes de Estado, o Exército mostrou-se força competente. Usado para subir favelas em 1995, felizmente foi tirado de campo. No lance sumiu Marco Antonio Rufino da Cruz, um negro de 34 anos, funcionário da Biblioteca Nacional. Usado para policiar o Carnaval, a iniciativa tem um toque de ridículo, minorada pelo seu aspecto transitório.
Como ensinou o general Leônidas Pires Gonçalves, ex-ministro do Exército, "nós não fomos treinados para colocar algemas". Exército não é polícia. Mais que isso. Os soldados são recrutados por um serviço militar obrigatório. Não vão aos quartéis para morrer num tiroteio de favela.
Dona Rosangela Matheus tem uma polícia que deixa entrar cem celulares e um laptop em Bangu 1. Esse é o nome do problema. O Exército não é o nome de sua solução.

O mico vai para o assalariado do setor formal

Chegou ao PFL uma cópia de um estudo no qual estima-se que a inflação de 2003 fique entre 12% e 18%. Número para tirar sono de qualquer ekipekonômica.
A inflação está se comportando como o mico dos anúncios dos tubos Tigre. Ela pula do ombro de um para o ombro de outro até que se acomoda no assalariado do setor formal.
A ekipekonômica tucano-petista acreditou que uma estabilização do dólar provocaria um recuo da inflação. Essa expectativa subestimou o grau de indexação da economia. O mico pulou do ombro dos senhorios, dos concessionários de serviços públicos, da turma que mama nos juros (todos protegidos pela indexação). Quem trabalha fora do setor formal procurou se proteger aumentando seus preços. O mico foi para cima do assalariado do setor formal, e o supermico ficou com os servidores públicos.
Coisa tão amarga que até Lula já reclamou do seu salário. Sua receita líquida diminuiu.

A Era FFFHH

Durante os 71 anos que já viveu, o professor Fernando Henrique Cardoso passou pela Era Vargas (aquela cujo legado prometeu encerrar), pelos Anos JK e pelo Milagre Econômico. Por conta do progresso desse período, a renda de sua ilustre capita sextuplicou. Se era de 100 em 1931, foi a 200 em 1954, a 400 em 1971 e chegou a 600 em 1993.
O IBGE divulgou na semana passada os números do crescimento do PIB (1,52%) e da renda per capita (0,21%) em 2002, permitindo que se calcule o desempenho da Era FFHH. O aumento médio do PIB foi de 2,37%. A renda per capita cresceu 0,9% ao ano.
Com esse resultado, um neto de FFHH precisará de 78 anos para dobrar sua renda per capita. Se o avô sonhasse com um país onde a renda de seu neto sextuplicasse, como aconteceu com a sua, ou teria feito outra política ou teria estudado um meio de fazê-lo viver 200 anos. É o tempo necessário para sextuplicar a renda dos brasileiros a taxas médias tucanas.

Crise de rico

Está dura a vida em Nova York. No andar de baixo, há 124 mil pessoas comendo à custa dos cupons do Fome Zero local. No andar de cima, os afortunados da banca tiveram um corte de US$ 4,7 bilhões na remuneração de 2002. Os desafortunados de Wall Street perderam 23 mil empregos, equivalentes a 12% da força de trabalho antes do 11 de Setembro.
Muitos deles receberam boas indenizações das empresas onde trabalhavam, obrigando-se a manter a transação em segredo, para não jogar urucubaca no antigo empregador. Uma empresa abriu uma vaga de US$ 60 mil anuais, exigindo diploma em administração. Recebeu 1.300 currículos. Uma gerente de circulação de revista, desempregada há 18 meses, não conseguiu emprego nem em café. Foi considerada excessivamente qualificada para o lugar. Para não ficar sem ter o que fazer, alistou-se num serviço que serve sopa para os necessitados. Continua alistada, inclusive para comer de graça.

Revoada

O tucanato de Brasília prepara-se para acordar cedo em São Paulo daqui a poucas semanas. Vão a Cumbica buscar o professor Cardoso. Não querem vê-lo empurrando carrinho de bagagem no aeroporto.

Distância

Com muita habilidade, a liderança parlamentar do governo evitou que o ministro Luiz Fernando Furlan, do Desenvolvimento, e o economista Carlos Lessa, do BNDES, fossem convocados para a mesma sessão de debates. Assim, cada um deles exporá sua política separadamente, desobrigando o outro de concordar com ela.

ENTREVISTA

Arthur Virgilio

(56 anos, líder do PSDB no Senado)
- Depois de oito anos de poder, o PSDB está propondo um novo regime para as agências reguladoras. Isso numa hora em que Lula acusa o tucanato de ter terceirizado o Estado brasileiro. Não teria sido melhor que a mudança tivesse sido feita antes?
- O Brasil não foi nem será fundado pelo Lula, nem a roda estava esperando a chegada dos petistas para ser inventada. A lógica das agências é uma das necessidades do Estado brasileiro. O governo do PSDB fez privatizações que foram bem e outras que vão mal. Há agências que vão bem e agências que vão mal. O que eu proponho é que trabalhemos para melhorar as coisas. No setor de telecomunicações tivemos um grande êxito. Hoje há telefones, concorrência e serviços. No setor elétrico e no de ferrovias temos problemas. O Lula sugere que elas são um estorvo. Um dia o Lula vai perceber que sua mania de falar mal do governo tem de chegar a um paradeiro, a menos que ele pretenda ficar quatro anos falando mal do governo dele.
- O que é que o senhor propõe?
- Hoje as agências têm atribuições definidas e diretores com mandato, mas estão soltas no ar. Não é razoável que elas sejam subordinadas aos ministros. Todo governo sonha com isso, mas só o de Fernando Henrique Cardoso teve a coragem de reduzir os poderes da presidência. Quando um ministro manda numa agencia o que se está fazendo é subordinar os interesses do Estado aos interesses do governo. Eu proponho que as agências respondam a uma comissão do Congresso, formada por membros das comissões de infra-estrutura do Senado e da Câmara, mais os líderes da maioria e da minoria em cada Casa. O PT deve aceitar a lógica das agências, como já aceitou a lógica das reformas. Sem essa definição não vamos a lugar algum.
- O que o senhor propõe em matéria de tarifas? O senhor acha razoável a persistência das remarcações indexadas e, em certos casos, dolarizadas?
- As privatizações que foram modeladas com calma estão com políticas tarifárias razoáveis. Quando a modelagem foi apressada, tivemos imperfeições. Elas deverão ser aperfeiçoadas desde que não se monte um jogo destinado apenas a impressionar a platéia. Os contratos devem ser respeitados, entendendo-se que as concessionárias precisam ser rentáveis. Veja o caso da energia. Há reajustes que são consequência do aumento do preço da energia produzida por Itaipu, que é paga em dólares. Tem jeito? Talvez tenha. Vamos conversar com o Paraguai, que é nosso sócio na hidrelétrica. Toda vez que alguém reclama da energia dolarizada de Itaipu está enganando a platéia. Em vez de dizer isso, deve dizer que devemos começar a conversar com os paraguaios. Essa é a conversa séria. O Brasil já foi fundado há muito tempo, a roda já foi inventada. Temos que trabalhar com seriedade para consertar o que pode ser melhorado.

Ócio

Concluindo o usufruto do abuso adquirido das férias anuais, o signatário ausenta-se por dois domingos.


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