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São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2003

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ELIO GASPARI

O governo gosta do atraso

O presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, pagou na quarta-feira, em Nova York, um dos maiores micos dos últimos tempos. Viajou na véspera para assistir à instalação, na Organização das Nações Unidas, de um "Diálogo de Alto Nível", marcado para as 10h do dia seguinte. Atrasou-se e, quando chegou ao plenário da ONU, ele estava vazio.
João Paulo explicou-se. Ele e sua comitiva chegaram ao hotel (Morgans, US$ 300 de diária, pela tabela), com seis horas de antecedência, e não havia quartos disponíveis. Estavam na ONU pouco antes das 10h. Perderam alguns minutos credenciando-se, mais uns 20 conversando e admirando os painéis "Guerra e Paz", de Cândido Portinari. Subiram ao plenário e tiveram a surpresa: o evento durara uns dez minutos e já acabara. Mais tarde, a caravana encontrou-se com o secretário-geral da ONU, Kofi Annan.
Os senhores de Brasília aprenderam, numa só manhã, que há cidades regidas pela pontualidade. Nelas não se chega antes da hora aos hotéis (a menos que se pague) nem se entra 20 minutos depois num evento. O atual governo não dá sorte com Nova York. Em setembro, Lula chegou em torno das 9h45 para uma palestra no Council on Foreign Relations e foi tomar um tranquilo café, pois o Cerimonial da Presidência dizia que aquele chegara 15 minutos adiantado para compromisso das 10h. Engano. Chagara 15 minutos atrasado ao das 9h30.
O Serviço Secreto estava enlouquecido, pois fechara a rua 68 (uma rota de ônibus) pouco antes da hora combinada. No salão, à espera do retardatário, viam-se David Rockefeller, George Soros e o ex-secretário do Tesouro americano Robert Rubin. O episódio embaçou o prestígio de Mr. da Silva na Maison Rockefeller.
Poder e relógios raramente se acertam. Apesar de Luís 18 ter ensinado que "a pontualidade é a gentileza dos reis", Bill Clinton foi capaz de chegar com quatro horas de atraso a um compromisso de campanha (José Serra, campeão nacional de atrasos, também), e FFHH só aderiu à hora certa em 1994, quando foi nomeado ministro da Fazenda.
Lula já conseguiu chegar com duas horas de atraso a um compromisso no Palácio do Planalto, onde estava. Na quinta-feira, chegou à Paraíba com 40 minutos de atraso e saiu com uma hora e meia. Apareceu para um jantar na casa de José Sarney, em Brasília, às 23h, quando os convidados se preparavam para sair. Na sexta, atrasou-se uma hora e meia para o almoço com a presidente da Finlândia. Seu estouro médio na agenda está entre 30 e 60 minutos. É a mesma faixa do comissário José Dirceu.
Os retardatários sempre obrigam suas vítimas a ouvir tediosas e inúteis explicações. Poucos são os que têm humor de Marilyn Monroe: "Eu chego no dia certo. Erro só a hora".
São dois os principais tipos de retardatários. Um manipula o tempo alheio para mostrar o seu poder. O patrono dessa espécie é Fidel Castro. No Brasil, seu imitador foi Leonel Brizola, quando havia gente disposta a esperar por ele. O argentino Carlos Menem era capaz de chegar atrasado, contar que demorara no cabeleireiro e sair antes da hora. É o tipo "Poderoso Retardatário". Lula tornou-se sócio desse clube.
Lula também está no segundo tipo, que estoura a agenda porque abarrotou-a.
Winston Churchill identificou a espécie no sujeito que atrasa todos os compromissos em meia hora porque não quis desmarcar dois deles. Nesse grupo estão muitos profissionais liberais, sobretudo médicos, que embutem nos atrasos uma discreta exibição de poder. Esse tipo não gosta de ser cobrado.
É o gênero Sarah Bernhardt. A atriz detestava ser advertida, até que um jovem assistente disse-lhe: "Madame, quando a senhora quiser, serão oito horas".

Aprendizado
Mesmo alguns dos amigos mais fiéis de FFHH acham que ele foi grosseiro e impertinente criticando Lula numa entrevista ao jornal "El País" coincidindo com a chegada do presidente à Espanha.
Depois dos 70, pouco se aprende, mas um dia Averell Harriman, um dos patriarcas da política americana, deu uma entrevista a um garoto brasileiro e, deixando sua alma falar, atacou o presidente Richard Nixon.
À saída, o respeitado octogenário pediu: "Por favor, não publique o que eu disse do Nixon. É o que eu acho dele, mas não fica bem criticar o presidente dos Estados Unidos num jornal estrangeiro". Lula não é Nixon, mas, se FFHH chegar a Averell Harriman, fará um grande negócio.

Os amigos mais próximos de Lula ainda não começaram a mostrar-lhe que chamar seus antecessores de "covardes" é falta de educação.
Dificilmente haverão de convencê-lo de que não deve dizer mais que "lamentavelmente, neste país, durante muitos anos o governo não investiu em saneamento básico, porque investir em saneamento básico é colocar dinheiro embaixo da terra, é colocar areia em cima da manilha e não dá para colocar nome de parente numa manilha. Por isso, saneamento não era tratado com decência e dignidade".
Até hoje, o governo que menos investiu em saneamento foi o dele. Pode-se sustentar que Lula deixou de investir com decência e dignidade, sem covardia. Melhora o blábláblá, mais nada.

EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota. Adora assistir às sessões do Senado. Na quarta-feira o idiota viu o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) cobrar do seu colega Aloizio Mercadante (PT-SP) a previsão de aumento da carga tributária durante o ano de 2004.
O líder do PT rebateu: "2004 não aconteceu ainda".
O senador tucano lembrou-lhe de que o Orçamento enviado pelo governo ao Congresso prevê o aumento de carga.
Mercadante respondeu: "Orçamento autorizativo. E nunca se cumpre".
Por idiota, Eremildo acreditava que pelo menos o líder do PT estivesse interessado em fazer de conta que aquilo que Lula chama de "peça orçamentária" vale alguma coisa.

Força inútil
Grandes são os poderes dos poderosos. O deputado Chico Alencar (PT-RJ) encaminhou à Mesa da Câmara um pedido para que o ministro Antonio Palocci Filho explique por que o auditor Deomar de Moraes foi exonerado da coordenação do Serviço de Inteligência da Receita Federal. (Menos de um mês depois de ter sido confirmado no cargo.)
Até hoje Palocci não contou à choldra nem a Deomar por que ele capotou. O deputado Inocêncio Oliveira, vice-presidente da Câmara, indeferiu o pedido de Alencar. Nem perguntar pode.

A pontualidade, por dois economistas
Os economistas Kaushik Basu (Universidade Cornell) e Jorgen Weibull (Escola de Economia de Estocolmo) estudaram a lógica da pontualidade. Eles ensinam:
- A falta de pontualidade pode ter uma base na cultura de um povo, mas não lhe é inata. (Não existe uma propensão dos latinos ao atraso.)
- Aquilo que parece efeito de uma cultura pode ser o resultado de escolhas lógicas. (Lula atrasa uma audiência em uma hora porque sabe que o seu interlocutor não vai para casa. Cuidado: o ministro alemão Hjalmar Schacht, grão-vizir do 3º Reich e quindim de um pedaço da ekipekonômica, deixou a ante-sala do presidente francês Raymond Poincaré.)
- As pessoas associam a sua pontualidade à dos outros. (João Paulo Cunha achou que podia atrasar na ONU porque pode-se atrasar 20 minutos na Câmara que ele preside.)
- Salvo para o romancista inglês Evelyn Waugh ("A pontualidade é a virtude dos entediados"), ela tem um custo. Se uma pessoa sabe que vai ter que esperar pelo retardatário, ela tende a se atrasar.
- Os homens atrasam mais que as mulheres. As mulheres, quando atrasam, tomam mais tempo que os homens.

A clarividência de Manoel Bomfim
O jornalista Rodrigo de Almeida estava lendo "A América Latina - Males de Origem", de Manoel Bomfim, quando ficou com a impressão de que lia os jornais de hoje.
Vale conferir o trecho:
"(...) Mesmo os mais ousados entre os homens públicos, os mais revolucionários, são tão conservadores como os conservadores de ofício. (...) Mesmo revolucionários hoje, a sua aspiração mais viva é ver, no dia seguinte, toda a gente conforme com os seus atos, é ver que todos vêm aderir a eles. E a adesão se faz efetivamente; não há nada que se oponha a isso; amanhã será tudo como ontem. Na véspera, era de vê-lo, apóstolo, inflamado, radical, incitando as gentes ao combate; no dia seguinte, a voz se amansa, arrasta-se sensata nos conselhos da sabedoria e da ponderação (...).
"Armam rebeliões, assaltam o poder, mas, uma vez plantados no governo, tais políticos dirigem todas as suas prevenções contra os próprios revolucionários. Agora, o seu papel é "conservar". (...)
Parece um paradoxo, tão estranho é: pouco importa a luta, os conflitos, levantes e revoluções que tenham trazido o indivíduo ao poder; uma vez ali, "sentindo as responsabilidades do governo", o verdadeiro homem se revela; tudo parou, o revolucionário de ontem desaparece, as gentes ponderadas e graves podem aproximar-se -ficarão encantadas de verificar que mundos de sensatez nele se encerram ali; a vida vai continuar tal qual era; "o período de agitação acabou, as responsabilidades etc impõem o dever de não criar dificuldades novas".
Bomfim era sergipano, publicou esse texto em 1904, em Paris, e morreu em 1932, aos 64 anos. Poucos estudiosos do Brasil defenderam o seu povo com tanta valentia. Bomfim está naquele grupo de escritores que as pessoas adoram (e citam) quando estão na oposição. Quando chegam ao poder, esquecem-no. Prova: o governo federal, emérito editor de irrelevâncias, nunca publicou uma só linha de Bomfim.

ENTREVISTA

Evaristo de Moraes Filho

(Sociólogo, autor de "Medo à Utopia" e de "Quinze ensaios", que sai ano que vem.)

- O senhor já escreveu milhares de páginas desancando a elite brasileira. Como vê o governo de um ex-sindicalista que faz uma política semelhante à dos antecessores?
- Eu tenho esperança no Lula. O Fernando Henrique Cardoso não tinha vindo do meio sindical, mas era um ex-marxista. Seu governo também foi fortemente influenciado pela elite. A política é a arte do possível. O Jânio, que era doido, superou-se em matéria de loucura quando achou que podia governar contra o Congresso. Deu no que deu. Lula está fazendo o possível, mas ao mesmo tempo está exercitando a nossa velha política de conciliação. É na conciliação que está a marca da elite. O Raymundo Faoro já nos ensinou que, desde 1500, a elite brasileira nunca soltou o poder. Eu ocupo a cadeira 40 da Academia Brasileira de Letras. Antes de mim, sentaram-se nela Eduardo Prado, Afonso Arinos (tio), Miguel Couto e Alceu Amoroso Lima. Todos eram filhos da elite e todos denunciaram a elite. Eu também. Em 1969 fui preso e posto para fora de duas cátedras. Acusavam-me de divulgar idéias subversivas. Hoje aquelas idéias estão em todos os lugares, tornaram-se conversa fiada. Essa elite imbecil nunca tirou das costas do nosso povo o manto de chumbo da miséria que surgiu com a escravidão e prossegue nas injustiças que vemos a cada dia. Estão tentando usar o Lula para que continuemos carregando o manto. Espero que fracassem.

- O que o Lula deveria ter feito e não fez?
- Ele não pode esquecer o tamanho da sua promessa de gerar empregos. Como candidato, falava em obsessão. Se você olha para os desempregados de cima para baixo, a falta de trabalho parece uma inevitabilidade. Ele deve procurar olhar o desemprego de baixo para cima. Estou certo de que com essa mudança de ponto de vista podem aparecer idéias novas, tanto a ele quanto aos seus colegas de governo. Lula também deveria ter prestado mais atenção ao preço dos remédios. A verdade é que os remédios subiram mais do que no tempo do José Serra. Em vez de examinar o preço dos remédios com as lentes dos laboratórios, ele deve olhá-los com a saúde de quem não tem dinheiro para comprá-los.

- O que é que o Lula fez e não deveria ter feito?
- Antes de tudo, vamos acrescentar um item: o que ele fez e deveria ter feito. Refiro-me à posição corajosa que ele tomou na discussão da Alca. Se Lula ceder, os americanos vão tomar conta do nosso mercado. Apesar disso, ele vem sendo tímido quando se trata de afirmar o poder do Estado brasileiro na economia. Essa timidez estimula os aumentos de tarifas e dos gêneros alimentícios. O Estado brasileiro não pode ser colocado na condição de mero assistente da construção da miséria nacional. O meu medo é que ele esteja começando a entender o argumento da elite. Não se esqueça: falar mal da elite e das desigualdades tornou-se um modo de agir da elite.


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