São Paulo, domingo, 3 de janeiro de 1999

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LANTERNA NA POPA
Nostra maxima culpa...

ROBERTO CAMPOS
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"Se conselho fosse bom, não seria dado gratuitamente."Lei de Murphy
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A política econômica do governo FHC, que após três choques externos -o do México, o da Ásia e o da Rússia- nos levou a postular o auxílio do FMI, tem apresentado as seguintes características:
- frouxidão fiscal;
- relativa rigidez cambial;
- instabilidade da taxa de juros;
- volatilidade das reservas.
Seu grande sucesso foi a queda rápida da inflação; seu grande insucesso, a contínua ascensão dos déficits do setor público. Estes criaram um duplo problema: o do fluxo e o do estoque. Para contermos o "fluxo" do endividamento, o requisito mínimo é uma reforma fiscal que gere superávits primários pelo menos suficientes para o pagamento dos juros. Por reforma fiscal se entende tanto o corte de gastos como o aumento da receita. E este deve ser obtido preferencialmente não por tributos ou alíquotas adicionais, e sim pela simplificação do sistema e correção dos vazamentos (sonegação e evasão fiscal).
O problema do "estoque da dívida" não é solúvel por métodos puramente fiscais. Requer-se uma combinação de privatizações (solução patrimonial), as quais deveriam ser aceleradas, e reescalonamento consentido da dívida (sem reincidência no calote, cacoete cultural brasileiro de efeitos suicidas).
Para se julgar da adequação de uma reforma fiscal à nossa circunstância é preciso verificar em que medida ela contribui para (a) desincentivar a informalização da economia, que reduz a receita fiscal e previdenciária; e (b) coibir a sonegação e a evasão fiscal.
À luz desses critérios, a nova proposta de reforma tributária é inadequada por não alcançar nenhum desses objetivos. Seus aspectos positivos são: (a) a redução do número de impostos e contribuições; (b) o deslocamento dos impostos indiretos para a ponta do consumo; e (c) a introdução de um imposto de natureza universal e não declaratória -o IMF- com dupla função: a de arrecadação e a de controle da sonegação.
Em contrapartida, tem contra si os seguintes fatores: (a) mantém a estrutura vigente, baseada em impostos "declaratórios" (IR, ICMS, por exemplo) de administração sabidamente complexa e altamente vulnerável à evasão e sonegação fiscal; (b) desestimula o trabalho formal por manter os encargos patronais sobre a folha de pagamentos; (c) demanda prazo excessivamente longo de implementação (estimado em 12 anos).
A proposta governamental contempla a transformação da contribuição financeira em imposto permanente. Há uma esquizofrênica relação de amor e ódio dos fiscalistas do Tesouro em relação a essa figura fiscal. Odeiam-na como imposto "em cascata". Mas amam-na pela eficiência arrecadadora, tanto assim que propõem a elevação de sua alíquota de 0,2% para 0,38%. A verdade é que há cascatas "benignas" e "malignas". O Cofins e o PIS-Pasep são cascatas malignas, porque as alíquotas são altas, grande o custo burocrático e corriqueira a sonegação, piorando a posição competitiva das firmas honestas. O imposto sobre transações financeiras pode ser considerado uma cascata benigna, por ser desburocratizado e insonegável. A rigor, a incidência sobre o valor adicionado, quando as alíquotas são altas, como no caso do ICMS, tem impacto mais nocivo porque carrega consigo os custos burocráticos e enseja sonegação e corrupção.
A tributação sobre transações financeiras, tão denegrida pelos fiscalistas convencionais, seria vista com mais simpatia se o cascateamento fosse interpretado como "progressividade". Pode-se argumentar, por exemplo, que essa progressividade embutida permitiria usá-la em substituição ao Imposto de Renda, visto que as pessoas e empresas mais ricas sofreriam incidência maior pelo volume e valor das transações. Ou para servir de tributação progressiva de consumo, visto que os bens mais sofisticados consumidos pelas classes de alta renda têm estágios mais longos de produção.
A proposta do governo poderia ser melhorada, atendendo a um dos objetivos da reforma fiscal -o desincentivo à informalização-, se a perenização do IMF, com a alíquota aumentada para algo como 4%, passasse a substituir todas as contribuições patronais sobre a folha de salários, que seriam excluídas do sistema tributário. Essas contribuições, que oneram diretamente a contratação da mão-de-obra, criam um viés tributário contra o emprego no setor formal. Sua substituição por impostos gerais desburocratizados viabilizaria a formalização de um sem-número de contratos de trabalho não escritos ou de gaveta. A arrecadação tanto fiscal como previdenciária cresceria pela recaptura de boa parte da economia informal. O exportador, hoje uma figura aflita, teria a percepção de uma redução do "custo Brasil". E as economias processuais de um imposto automático e não declaratório como o IMF mais do que compensariam as desvantagens da cascata.
Estou convencido de que o outro dos objetivos de uma desejável revolução fiscal, o cerceamento da evasão e da sonegação, não é atingível na moldura dos tributos declaratórios "clássicos", tidos como politicamente corretos -os impostos sobre a renda, consumo e serviços. É que o brasileiro está em permanente rebelião fiscal, pela pífia contrapartida de serviços recebidos, pela complexidade burocrática do sistema e pela corrupção dos fiscais. O Estado, que hoje absorve cerca de 38% do PIB (somando-se a carga tributária e o déficit público), é visto como um Estado predador e não um Estado servidor.
A resultante não é apenas um enorme coeficiente de ineficiência do sistema, medido pela decalagem (estimada em 42%) entre a receita efetiva e a potencial, e sim também uma deformação do ambiente competitivo. É que a arte de sonegar e evadir passa a ser tão importante como a engenhosidade para produzir. Projetos existem no Congresso, que nunca despertaram o interesse do governo (sujeito a pressões dos beneficiários do "status quo"), visando a substituição dos impostos declaratórios por impostos automáticos cobrados eletronicamente na fonte, passando do artesanato fiscal à era do computador.
Realisticamente, temos de admitir a prevalência, empiricamente confirmada, de duas leis. A primeira é a Lei de Reagan: "Todo aumento de receita cria sua própria despesa, deixando o déficit intacto". A outra é a segunda lei da termodinâmica aplicada ao terreno fiscal: "Qualquer ação de aumento de alíquotas ou criação de impostos provoca uma reação compensatória pelo aumento da sonegação ou contração da economia formal".
Dentre as maiores economias da América Latina, a brasileira exibe o mais confuso dos sistemas fiscais e a performance deficitária mais debochada. A culpa é de todos nós. Do governo, que não revelou nem criatividade nem organicidade em suas propostas fiscais. Do Congresso, que esperou passivamente, ao invés de tomar iniciativas autônomas de disciplinamento fiscal. Da população, demasiado paciente em relação aos desmandos do Estado predador. Nostra maxima culpa...
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Roberto Campos, 81, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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