São Paulo, domingo, 3 de janeiro de 1999

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CELSO PINTO
A Coca-Cola e a reforma agrária

Neste mês, a Coca-Cola assinará, com grande alarde, um contrato de fornecimento de açúcar para sua fábrica em Manaus. A razão: o açúcar virá de um assentamento da reforma agrária que terá tecnologia, assistência técnica, sementes e compras garantidas pela Coca-Cola.
Prova de que os assentamentos da reforma agrária podem dar certo. Existem vários outros exemplos positivos ao redor do Brasil, como a produção de melão para exportação no Rio Grande do Norte.
No entanto, o próprio Incra, responsável pela reforma agrária, calcula que só 15% dos assentamentos podem ser considerados pleno sucesso. Outros 15% estão falidos, e 70% estão numa zona cinzenta.
O presidente do Incra, Milton Seligman, é o primeiro a defender a idéia de que não só o programa de reforma agrária deve ser repensado, mas toda a política de desenvolvimento rural. Seligman assumiu o Incra em junho de 97 e deve ir para a secretaria-executiva do programa Comunidade Solidária no segundo mandato.
Sugestão sobre o que fazer existe e está inscrita no programa do candidato Fernando Henrique Cardoso com o nome ambicioso de "Novo Mundo Rural". A essência da idéia é unir os esforços da reforma agrária, que já assentou perto de 400 mil famílias, com as políticas dirigidas à agricultura familiar, que atingem 4 milhões de famílias.
Da integração dos esforços, surgiriam programas de desenvolvimento rural em áreas definidas, com um esforço múltiplo, envolvendo de tecnologia e crédito a programas de educação, saúde, cultura e lazer.
Além disso, seria criado um Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural e Reforma Agrária, com participação de membros da sociedade civil. Ele se desdobraria em conselhos estaduais e locais (pode ser uma microrregião), que operariam a partir de programas locais de desenvolvimento rural. Quer dizer, além de descentralizar a operação, haveria participação direta dos interessados nas discussões e decisões.
Soa como uma boa nova idéia para um novo mandato, mas, até agora, não decolou. Do ponto de vista institucional, um programa como esse precisaria unir num teto dois instrumentos.
De um lado, o Pronaf, o bem sucedido programa de investimento na agricultura familiar, administrado pelo Ministério da Agricultura. De outro, o ministério que administra a reforma agrária e seus instrumentos, como o Procera, programa de crédito subsidiado para assentamentos. Juntos, os dois teriam um orçamento inicial expressivo, de R$ 4,5 bilhões, dos quais R$ 3 bilhões em créditos.
Do ponto de vista político, trata-se de unir parte da Agricultura, ocupada pelo PPB de Maluf, com a Reforma Agrária, presidida pelo ex-comunista, hoje PPS, Raul Jungmann. Só funcionaria com um comando unificado por cima, talvez ligado diretamente à Presidência, mas nada foi feito na montagem do segundo mandato.
Seligman admite que a reforma agrária não pode ser um fim em si mesmo. Tem de ser um instrumento para integração econômica sustentável. Isso, ela jamais foi. O primeiro assentamento foi feito há 14 anos, mas nem um único assentamento foi "emancipado", porque a emancipação significaria fim do acesso a crédito altamente subsidiado.
A idéia de concentrar esforços na agricultura familiar foi inspirada em estudos de vários economistas, como José Graziano (do PT), José Eli da Veiga, Ricardo Abramovai e Renato Maluf. Nos países desenvolvidos, diz Seligman, a agricultura familiar, integrada à agroindústria competitiva, é a base do setor e da formação de uma classe média robusta.
No Brasil recente, a agricultura dominante foi a "patronal", com muita tecnologia e pouco emprego. Mesmo assim, num estado desenvolvido, como Santa Catarina, a agricultura familiar, integrada ao mercado, responde por metade do produto agrícola.
O Incra, sozinho, não tem "expertise" em nada que fuja da agropecuária, diz Seligman. E o sucesso de um programa de desenvolvimento rural familiar depende também do esforço em ampliar rendas não agrícolas, como turismo, preservação ambiental, serviços etc.
Além disso, o Incra, a seu ver, teria que repensar os mecanismos de obtenção da terra. A desapropriação acaba ficando cara demais, porque gera indenizações que o Judiciário, com frequência, aumenta em três ou quatro vezes.
Ele defende um maior uso do Banco da Terra, que financia grupos que queiram comprar terras e dá apoio posterior. Ou os projetos "casulo", onde prefeituras entram com a terra, e o Incra, com o apoio. Até mesmo alternativas de arrendamento poderiam ser interessantes.
Importante é que a reforma agrária se apóie em contratos por tempo determinado. O objetivo deve ser o da integração produtiva, não o da dependência eterna.
A agenda de mudanças existe. Falta saber se haverá vontade política para implementá- la.




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