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São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

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ELIO GASPARI

O FMI mostrou como o Brasil fez papel de bobo

Foi necessário que o Fundo Monetário Internacional contratasse uma equipe de pesquisadores para descobrir a extensão do papel de bobo que a ekipekonômica do tucanato impôs ao Brasil entre o final de 1997 e o início de 1999. Para quem não lembra, era a época em que os doutores Gustavo Franco (presidente do Banco Central), Pedro Malan (ministro da Fazenda) e Fernando Henrique Cardoso garantiam que um dólar valia R$ 1,20.
FFHH orgulhava-se de sua empregada ter passado as férias na Grécia. Diante da explosão da crise asiática, em outubro de 1997, Franco defendeu sua cotação do real levando os juros para 43%. Era aquilo que ele chamava de "saco de maldades". Veio a custar estagnação e a perda de US$ 14 bilhões em apenas dois dias, em janeiro de 1999, quando o mercado desvalorizou o real.
É o próprio Fundo quem informa: desde 1995, sua equipe técnica calculava a sobrevalorização do real em 33%. Em março de 1997, um diretor do FMI propôs que o real flutuasse. Colegas seus argumentaram que isso assustaria o mercado. Em outubro, durante a crise asiática, um funcionário do Fundo fez a seguinte profecia: "A atual estratégia é arriscada. Pior que uma contração fiscal um ano antes da eleição [o pleito no qual FFHH se reelegeu] é uma crise cambial um mês depois da eleição". O FMI tentou convencer a ekipekonômica, mas reconhece que foi tímido.
Hoje o FMI sustenta que, se tivesse advertido publicamente para os riscos da supervalorização da moeda brasileira, a teimosia da ekipekonômica poderia ter sido vencida. Queixa-se do sigilo imposto em Washington a todos os papéis relacionados com o Brasil. Durante todo o ano de 1998, o FMI estimou que a sobrevalorização do real estivesse em 15%. Estava no dobro.
No Brasil, José Serra, Paulo Nogueira Batista e Delfim Netto eram amaldiçoados pela ekipekonômica por combaterem esse câmbio artificial. Foi Serra quem definiu o que se estava fazendo com o país: "populismo cambial". Entre o início e fim de janeiro de 1999, foi dólar foi de R$ 1,20 para R$ 1,96.
Tudo isso seria pura história se não houvesse um aspecto ameaçador, atual. Em três momentos os pesquisadores contratados pelo FMI indicam que o problema da economia brasileira está na sua capacidade de gerir a dívida pública. Mostraram como as previsões feitas pelo Fundo e pelas ekipes oscilaram entre o descalabro e a empulhação.
Vale transcrever a conclusão do trabalho, para que os sábios petistas saibam o que lhes pode acontecer daqui a cinco anos, quando o FMI contar o que está fazendo hoje:
"Com uma composição da dívida pública altamente vulnerável aos riscos das taxas de câmbio e de juros, o Brasil continuou vulnerável a choques internos ou externos que afetam o humor do mercado. Essas vulnerabilidades nunca foram erradicadas, e a preocupação com a sustentabilidade do fardo da dívida pública brasileira levou a novas dificuldades em 2002".
Hoje, a dívida pública equivale a 56% do PIB. Pelas contas de 1996 dos sábios do FMI e de Brasília, deveria estar em 30%. Em março passado, novos sábios disseram que ela estaria em 50%. Serviço: O documento do FMI tem 278 páginas e trata também da Coréia e da Indonésia. Pode ser baixado em formato PDF no seguinte endereço:
Para a íntegra: http://www.imf.org/external/np/ieo/2003/cac/index.htm
Para o Apêndice do Brasil, de 45 páginas: http://www.imf.org/external/np/ieo/2003/cac/pdf/bra.pdf

O Pronex era um programa que funcionava. Pau nele

O Ministério da Ciência e Tecnologia destruiu uma das jóias da coroa da comunidade acadêmica brasileira. Transformou o Programa de Apoio a Núcleos de Excelência, o Pronex, em algo semelhante a uma franquia de galinha frita. Um bonito caso de opção preferencial pelo velho.
O Pronex foi criado em 1996 para financiar projetos de primeira linha dos cientistas brasileiros. Gastou R$ 188 milhões em 206 trabalhos de 43 instituições, juntando 3.500 pesquisadores. Estimulou um em cada dez doutores brasileiros. Seus participantes obtiveram três vezes mais citações em publicações academicamente reconhecidas que a média dos registros nacionais.
Graças ao Pronex o professor Moacir Palmeira dirigiu um projeto de antropologia da política que envolveu três instituições e publicou em torno de 20 livros, tratando de coisas como campanhas políticas ou as minúcias de organização de uma marcha do MST. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul hospedou 20 projetos que envolveram 33 instituições de nove Estados e sete países. Foi o Pronex que permitiu a instalação dos laboratórios de ótica quântica do professor Luiz Davidovitch, na UFRJ. Dele saiu uma das mais citadas pesquisas sobre a resistência dos pacientes com Aids às drogas anti-retrovirais, coordenada pelo professor Adauto Castello Filho. Onde o Pronex pôs o dedo aconteceram coisas boas que dificilmente aconteceriam se ele não existisse.
O segredo de seu sucesso foram o rigor e a complexidade do seu processo de seleção e da avaliação dos projetos. Uma proposta levada ao Pronex passava pela analise de pelo menos seis especialistas e duas comissões, em três etapas diferentes.
Habitualmente, uma proposta desse tipo é examinada em duas etapas, por dois ou três especialistas, no máximo.
Num discurso em que revelou não saber nem sequer o nome do programa, o ministro Roberto Amaral anunciou que ele será mudado. Vão untá-lo com duas pomadas da farmacopéia burocrática: descentralização e parceria.
As verbas do Pronex irão para as fundações de amparo à pesquisa dos Estados, que se tornarão parceiras na escolha dos projetos e pagarão uma parte dos financiamentos. Algo como dizer que D. Maria I determinou a descentralização do alferes Joaquim José da Silva Xavier. A providência mata e esquarteja o Pronex. Se o novo sistema dará bons frutos, não se sabe. O que se sabe é que a árvore existente foi abatida, sem discussão nem justificativas dignas da qualidade da comunidade científica brasileira. Os projetos continuarão levando o nome do programa, o que sugere a idéia de o MCT propor o lançamento de um MacPronex para os bares das universidades.
O que o Pronex tem de essencial e eficiente é o processo de seleção. Esse vai à breca.

A vida das presas na afetuosa (e seca) narrativa de um voluntário

Está chegando às prateleiras um bom livro. É "Cela Forte Mulher", do jornalista Antonio Carlos Prado. Ele conta seus sete anos de experiência como voluntário em prisões femininas. Desde 1996, Prado passa parte dos seus fins de semana e feriados nas piores canas de mulheres de São Paulo. Conheceu o Carandiru e conhece o Manicômio de Franco da Rocha. É um lobo solitário. Entra e sai sozinho, sem ONG, projeto de pesquisa ou plano de regeneração. Nas 190 páginas do livro, raros são seus juízos. Prefere descrever: "Nas penitenciárias não há mão de mãe sem calo". Uma em cada três presas dorme com chupeta na boca. Quando sugere, é prático: há relação entre a decadência da dentição e a agressividade das presas.
O livro é escrito em voz baixa. Há a campeã de skate que gosta da adrenalina dos sequestros e das mutilações de suas vítimas. Está condenada a 48 anos, quer ser dentista, mas avisa que continuará sequestrando, pelo prazer. Há a matadora carioca que trabalhou dos 9 aos 19 anos "tombando" encomendas a R$ 2.000 ou R$ 5.000: "Nunca ofendi uma vítima, não pronunciava uma só palavra. Atirava, só".
Um livro sem histórias de sorte e casos de muito azar, como o da presa que ganhou a liberdade condicional, deu um jeito de ser mandada de volta para o presídio. Queria reencontrar a namorada, mas ela fora transferida.
O que dá qualidade ao livro de Prado é o próprio Prado. A sua seca curiosidade, associada a uma doce vontade de ajudar quem precisa. Ele entra nas celas, conversa coisas que as mulheres não contam a ninguém. Sabe o que ninguém sabe. Sabia, por exemplo, que Diamantina, com 13 anos de cadeia, voltaria a matar quando fosse solta. A presa teve tamanho desempenho diante da psicóloga que conseguiu a liberdade condicional. Duas semanas depois morreu durante um assalto.

Armou-se a eletrotunga das estatais e dos nordestinos

Chegou a conta do despreparo e da ganância que presidiram o desmanche de um pedaço do Estado no mandarinato tucano. Está em curso um processo de reestatização do setor elétrico. A desordem provocada pela privataria é tamanha que o setor deve algo como R$ 44 bilhões à banca, a Eletropaulo não pagou sua promissória de R$ 1,5 bilhão ao BNDES, e a Light atrasa suas contas com a banca credora. Tudo isso sob a certeza de tarifas mais caras e a ameaça de racionamento em 2007, para uma população que já pagou o mico do apagão de 2001.
O governo projetou uma nova organização do setor elétrico que passa por tristes soluções, como o velho e bom dinheiro do BNDES (coisa de R$ 6,5 bilhões). Começou também a negociar uma nova relação com as empresas elétricas. É de justiça reconhecer que isso era necessário porque o tucanato transformou o mercado de energia numa desordem maldita. Deve-se ressalvar que as propostas apresentadas pelo governo estão no campo das sugestões, num clima de sincero debate.
As cartas que o Ministério de Minas e Energia já baixou centralizam e estatizam as políticas tarifárias e o poder de planejamento, criando uma entidade que decidirá onde, como e por que serão construídas novas hidrelétricas. Talvez isso seja necessário, pois o setor pede R$ 12 bilhões em investimentos anuais e ninguém quer botar dinheiro nesse abacaxi.
Num aspecto, a proposta do governo é grotesca. Ele quer que os Estados cujas empresas não foram privateadas vendam barato a energia que produzem, recomprando-a mais adiante, por um preço mais alto. Trata-se de tungar empresas exemplares como a Cemig (MG), a Copel (PR) e a Chesf, que vende energia para o Nordeste.
Gracinha. A Paranapanema (SP) venderá sua energia ao governo por R$ 90 o megawatt-hora. A Eletropaulo comprará esse mesmo MWh por R$ 70, para vendê-lo aos paulistas. Já a Cemig venderá o seu megawatt por R$ 50, obrigando-se a comprá-lo por R$ 70. As empresas estatais comprarão caro e venderão barato. As companhias privadas comprarão barato e venderão caro. Como se isso fosse pouco, os Estados mais pobres, do Nordeste, pagarão mais pelo MWh, e os ricos, como São Paulo, pagarão menos.
A proposta do governo já produziu um resultado: continua suspenso todo e qualquer investimento no setor de energia.



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