São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ELIO GASPARI


Ou escancaram-se as negociações, ou vem aí o Propress

Diz o doutor José Dirceu que as dívidas que as empresas de mídia carregam nas costas devem ser tratadas "como assunto de interesse nacional". Mais claro: "Temos de tratar isso como assunto de Estado".
Até as pedras sabem que quase todas as grandes empresas de mídia brasileiras vão mal das contas. Na semana passada, a Globopar, holding com participações da Net Serviços (a falecida Globocabo) e da editora Globo de livros e revistas, bem como de outras empresas, suspendeu o pagamento de suas dívidas por 90 dias. Coisa de US$ 1,5 bilhão no total e de US$ 100 milhões em vencimentos. A Globopar pertence à família Marinho, dona do jornal "O Globo" e da TV Globo que, por sua vez, não são controlados pela Globopar e vão bem, obrigado.
Algumas empresas vão pior que outras, e todas as que passam por um inverno financeiro deram-se mal porque endividaram-se em dólares. Quando o dólar estava a R$ 1,20, a banca, o tucanato e boa parte da imprensa defendiam o realismo e a necessidade dessa cotação. Muitos diretores dessas empresas acreditaram no noticiário que publicavam.
Empresas de mídia em dificuldades financeiras podem até ser um problema de interesse nacional. Tudo depende do que se considera "interesse nacional" e da extensão que se dá à sua sombra protetora. Nos anos 60, incomodados com a concorrência, os Diários Associados brandiam o fantasma do interesse nacional para cercear duas empresas que surgiam no mercado: a TV Globo e a Editora Abril.
Quando o governo interfere nas relações do mercado com as empresas de mídia, a choldra paga contas amargas. Se um grupo de açougueiros panamenhos tivesse comprado os Diários Associados, os brasileiros teriam se livrado de pagar suas contas por quase 20 anos. Se os alfaiates búlgaros tivessem comprado a Manchete, o Banco do Brasil poderia ter emprestado milhões ao plantio de pepinos, com resultados muito superiores aos que conseguiu dando créditos à empresa jornalística.
Por mais compreensível que seja a preocupação do governo petista com a fome de créditos, quando se abre uma fresta na porta, não há burra capaz de atender donos de empresas jornalísticas. Um teve, o outro pede e o terceiro também quer. Quem vê o seu pedido negado denuncia a lisura do pleito atendido.
O estabelecimento de uma afinidade financeira entre o governo e empresas de mídia soprará uma fogueira de maledicências e insinuações. É fácil ouvir algumas:
1) O PT está comprando a mídia. De uma hora para outra, Lula virou um ursinho de pelúcia;
2) A mídia não noticia as suas dificuldades. Falam mal de todo mundo, menos deles;
3) A mídia não noticia as suas facilidades. Estão armando um ProPress.
Se há empresas jornalísticas dispostas a recorrer lisa e legitimamente a financiamentos públicos e se o governo quer tratar essa matéria como "assunto de Estado" à luz do "interesse nacional", isso deve ser feito de forma assumida, escancarada. Se o contribuinte ficar em dúvida a respeito de uma vírgula, pensará que estão malbaratando seu dinheiro. Se um leitor deixar de entender um único parágrafo do que lhe contam, achará que o estão enganando.
Sente-se no ar o cheiro da transformação (já ocorrida) do BNDES num grande hospital. Nada melhor para justificar charlatanismos financeiros vindouros do que internar naquela velha e boa casa alguns logotipos da imprensa.
Governantes adoram emprestar o dinheiro do contribuinte para jornais, revistas ou emissoras que falem bem deles ou, pelo menos, mal não falem. Quem paga a conta é o público, quase sempre duas vezes.

Perda de tempo
Um curioso dedicou-se a coletar nomes que circulam como prováveis ministros de Lula. Teve o cuidado de listá-los em dois grupos. Num ficaram os que fazem muito sentido. Noutro, os que fazem algum sentido.
Muito sentido:
Casa Civil, José Dirceu.
Planejamento, Antônio Palocci.
Justiça, Márcio Thomaz Bastos.
Relações Exteriores, Rubens Ricupero.
Secretaria da Fome, José Graziano.
Algum sentido:
Previdência, Luiz Gushiken.
Fazenda, Aloizio Mercadante.
Banco Central, João Sayad.
Defesa, José Genoino.
Ciência e Tecnologia, Newton Lima.
Quando terminou, olhou a lista e deu-se conta: todos dez são políticos paulistas, são homens e nenhum é negro. A partir daí, passou a brincar de tirar paulistas da lista.

Nicholas Brady para presidente do BC

Pena que Lula não possa indicar Nicholas Brady para a presidência do Banco Central brasileiro. O ex-secretário do Tesouro americano lastimou que os mercados vivam na teta dos títulos do governo brasileiro, convidou os investidores a botar dinheiro na produção nacional e aconselhou seus pares a confiar no novo governo. Ensinou que os fundos de pensão americanos investem em papéis do governo só 5% de suas aplicações. No Brasil, os fundos fazem 60% de seus negócios com os juros da Viúva. Disse mais: "A principal atividade dos bancos brasileiros é emprestar ao governo". Poderia ter lembrado que a principal atividade do governo é recolher impostos da choldra para pagar juros aos bancos.
Com tanto brasileiro dizendo coisas que só interessam aos banqueiros americanos, foi preciso que aparecesse um banqueiro americano, e dos bons, (republicano) para dizer coisas que passaram a soar como heresias em Pindorama. Brady tem 72 anos e foi secretário do Tesouro entre 1988 e 1993. Antes, dirigia a casa Dillon Read, uma das mais tradicionais de Wall Street.
Foi ele quem empurrou goela abaixo da banca americana um plano de renegociação da dívida de US$ 1,3 trilhão do Terceiro Mundo. "Uma vez ele ligou para mim. Estava em Paris e falava tão alto que eu podia ouvi-lo com o telefone a meio metro de distância", contou John Reed, então presidente do Citibank.

A inexperiência é geral

Fim de ano movimentado o de 2002. O PT ainda não aprendeu a ser governo, e a coligação tucano-pefelê ainda não aprendeu a ser oposição. As brincadeiras dos deputados Inocêncio Oliveira (PFL) e Jutahy Magalhães (PSDB) diante do arrependimento petista no cálculo do salário mínimo são indicativas da inexperiência. Em vez de saudarem a conversão dos petistas à causa dos R$ 211, preferiram divertir-se apresentando-se como defensores do piso de R$ 240. Entre a oposição e a piada, ficaram com a piada, que é ótima, mas não resolve problema de ninguém.
Na tucanagem a falta de experiência oposicionista é tão grande que circulou no início da semana uma armação destinada a fazer dos deputados paulistas Aloysio Nunes Ferreira e Alberto Goldman presidentes da Câmara e do PSDB. A proposta foi abatida em vôo, mas parece ter sido concebida por alguém que ainda não soube do resultado da eleição.

Debate dietético
Com a finalidade de ilustrar o debate em torno dos cupons para brasileiros que precisam de ajuda para comer, importa registrar que essa iniciativa, surgida em 1939 no governo Franklin Roosevelt, destinava-se muito mais a aumentar a lucratividade da agricultura do que a dar de comer aos famintos.
Daí o cupom. O governo queria que o dinheiro fosse gasto na compra de produtos agrícolas.
De uma hora para outra, o Brasil tem 170 milhões de especialistas em combate à fome, incluindo a população faminta.
Parece o fim do século 19. Todos os brancos eram especialistas em abolição gradativa da escravidão. Como era um assunto sério, a turma ficou discutindo, discutindo, e assim o Brasil tonou-se o último país livre fora da África a libertar seus escravos. Havia até quem dissesse que libertar os negros seria uma malvadeza, pois eles não teriam para onde ir.

Entrevista

Benedito Tadeu César
(49 anos, autor de "PT: A Contemporaneidade Possível - Base Social e Projeto Político, 1980-1991", professor de ciência política da UFRS)

-Para onde vai Lula?
-Para onde sempre foi: a mesa de negociação. O Lula é o primeiro caso de líder de esquerda no Brasil que cresceu na oposição, negociando. Numa esquerda com tradição de golpes, confrontos ou adesões, ele criou e conduziu o PT como parte de um processo político em que a negociação é peça essencial. Dentro do partido e fora dele. Lula negocia mais hoje do que negociaria em 1989, quando estava muito mais à esquerda. Ele vai buscar um acordo para trazer para dentro da nossa sociedade o pedaço que ficou de fora. Com o tempo, a elite perceberá que ele está falando sério e que é improvável que venham a convencê-lo de que é um pop star.

-Para onde vai o PT?
-Para o centro. Historicamente, o PT segue um movimento pendular. Agora ele está no centro, e esse centro ainda tem muito chão para ser percorrido. A ala de esquerda acabará se conformando com isso, sem abandonar suas posições. A vitória do dia 27 de outubro coincidiu com a derrota do PT no Rio Grande do Sul, onde ele tinha o seu maior governo de Estado. O desempenho administrativo de Olívio Dutra tinha sido bom. Diversos indicadores melhoraram na sua administração. O que desandou foi a política. O PT assumiu o governo achando que tinha feito uma revolução, que podia mexer em tudo, comprar todas as brigas. Com isso cevou uma oposição ferrenha e ressentida e uma imprensa raivosa. Terminou derrotado. Foi uma experiência útil, para saber quais erros devem ser evitados em Brasília.

-O que o PT terá a oferecer? Queda nos juros, o doutor Palocci já disse que não dá. Salário mínimo de R$ 240, o doutor Mercadante já disse que é coisa perigosa. Falar em crescimento econômico de 3% para 2003 já é falta de educação.
-Nos próximos 12 a 18 meses, o Lula vai andar no fio da navalha. Você pode levar os primeiros seis meses conversando, consumindo o crédito de confiança. Depois disso, começarão as cobranças. O governo será influenciado pelo formato que terá a oposição. Ainda não se sabe como ela será nem de onde virá o seu pedaço mais agressivo. Lula precisará de duas coisas: uma agenda mínima, e rápida, e poder de pressão. Quando eu falo em poder de pressão, não me refiro ao velho recurso de botar o povo na rua, que traz enfrentamentos e não resolve nada. A satisfação que saiu da vitória pode se transformar num clima de entendimento. Pode-se chegar a acordos que reduzam a informalidade no trabalho e o desemprego, sobretudo dos jovens. Pode-se melhorar os serviços públicos, reativar a construção civil. Pode-se fazer pouca coisa, mas mesmo assim pode-se mostrar a muita gente que o governo está ao seu lado. É isso, ou o PT fica na posição do cachorro que corre atrás do automóvel. Corre, late, faz um barulho danado. Quando o carro para, ele o alcança, cheira o pneu traseiro e vai embora.



Texto Anterior: Os outros Enéas: Só 33 se elegeram com os próprios votos
Próximo Texto: No planalto: Tudo sobre o novo Brasil em uma frase
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.