São Paulo, domingo, 03 de dezembro de 2000

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NO PLANALTO

Até fantasma belisca a Viúva nos corredores da $udam

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A $udam não é mais uma repartição pública. Virou um álibi. Álibi de si mesma. Sabe-se que ali se malversa. Sempre se soube. Mas o óbvio nunca gerou maiores consequências.
Sai governo, entra governo, mantém-se o entendimento de que a $udam, como o DNER, é um desses nacos da administração em que uma certa maleabilidade moral é consentida.
O tucanato gostaria que a algaravia atual não ultrapassasse a fronteira que separa o constrangimento do escândalo. O problema é que o tapete ficou pequeno. A sujeira em volta talvez ponha fim ao pouco-caso. Ainda que a contragosto.
Deve-se ao procurador Ubiratan Cazetta, em associação com a Receita e auditores do Tesouro, a descoberta de mais um robusto lote de malfeitorias praticadas na $udam, dessa vez no Estado do Pará.
Na ponta do lápis, chegou-se, por ora, a desvios de R$ 57,7 milhões, em valores corrigidos monetariamente. É quase seis vezes o caixa-dois reeleitoral do tucanato.
Incluindo-se os casos ainda pendentes de investigação, estima-se que a conta possa bater na impressionante casa dos R$ 300 milhões. Estão sob análise 25 casos. Só não há mais porque a estrutura do Ministério Público não comporta. Falta até digitador para lançar dados bancários em planilhas de computador.
O monturo de provas impressiona e dá nojo. Alguns exemplos:
A CMA (Cia. de Mecanização da Amazônia) arrancou dos cofres da $udam o equivalente a R$ 12,5 milhões. Uma peculiaridade marca a trajetória da empresa: ela só existe no mundo de faz-de-conta dos arquivos da $udam. Na vida real, é um fantasma.
De acordo com os registros da $udam, a CMA teria dois endereços. O escritório funcionaria no número 1.066 de uma avenida de nome sugestivo: Conselheiro Furtado. Logo se verá que o conselheiro não é o único furtado dessa história.
O dono do imóvel, Paulo Sérgio Teixeira de Oliveira, disse que costuma cedê-lo a várias empresas, a pretexto de proporcionar-lhes um alívio nos custos de instalação. Coabitam sob o mesmo teto, por exemplo, a Xinguara Indústria e Comércio S/A, o Curtume do Pará S/A , a Fazenda Alto Bonito e a Alya Agroindústria S/ A. Além do endereço, esses empreendimentos têm em comum a compulsão pela tunga. Paulo Sérgio admite ter tido vínculos com a CMA, mas só até 1996. E diz não ter idéia de onde a empresa estaria instalada hoje.
Descobriu-se que Paulo Sérgio era procurador de todas as empresas. Operava-lhes as contas no Banco da Amazônia, agência Belém-Centro.
As instalações industriais da CMA deveriam funcionar no distrito de Coaraci, em Belém. Os arquivos da $udam não fazem menção a detalhes como nome de rua ou número de prédio. Acionada, a Prefeitura de Belém disse que já havia tentado fiscalizar a CMA em 30 de abril de 1984. Bateu à porta do número 2.888 da avenida Almirante Barroso, endereço que a empresa informara ao município. O termo de fiscalização anota que a firma não foi localizada.
Para a prefeitura, a CMA está "inativa". Ouvido, Geraldo Francisco Simões, um dos entes de carne e osso que se escondem atrás da assombração, disse que ela funcionaria no município de Xinguara, à rua Xingu, 557. Há no local uma outra empresa, a Rio Grande Participações e Administração Ltda. Depois de suar em vão a camisa, auditores do Tesouro e fiscais da Receita concluíram que a CMA não existe. Seu único vínculo com o mundo dos vivo$ é a conta corrente que mantém no Banco da Amazônia, para receber o dinheiro mole da $udam.
As prestações de contas que a CMA entregou à $udam dão à fantasia um aspecto rocambolesco. Há extratos bancários falsos, alterações contratuais que jamais passaram pelo protocolo da Junta Comercial de Belém, relação de investidores que dizem nunca ter tido contato com o ectoplasma (entre eles a indústria de roupas íntimas Hope e os bancos Bozano, Simonsen e Boavista, hoje incorporados respectivamente ao banco Santander e ao banco Espírito Santo). Há, de resto, notas fiscais frias. Uma enormidade delas.
Em 1996, a CMA informou à $udam a aquisição de 13 caminhões. Apresentou 13 notas da firma Concórdia Veículos Ltda. que, contactada, disse jamais ter efetuado operação comercial com o fantasma. Como as notas registrassem os números dos chassis dos caminhões, foi-se ao Renavam, o cadastro nacional de veículos. Descobriu-se que são, também eles, fantasmas.
Os arquivos da $udam guardam ainda nota da Consinc Construções Ltda., que teria erguido um almoxarifado para a CMA. No suposto endereço da construtora há um condomínio, Edifício Continental. Ali, ninguém jamais ouviu falar em Consinc. Outra firma, a Alge Ltda., teria fornecido três tratores à CMA. Coisa de mais de R$ 350 mil, a preços de hoje. No endereço estampado na nota da Alge, encontrou-se uma residência. Seu proprietário, Fernando da Silva Pereira, disse que ela está vazia desde 1990.
Graças às quebras de sigilos bancários autorizadas pela Justiça, pôde-se reconstituir o caminho dos milhões que a $udam entregou à CMA. O ervanário escorregava para uma conta no Banco da Amazônia e dali para as contas dos sócios do fantasma. O principal deles é o desconhecido Geraldo Francisco Simões. Entre os beneficiários aparece também Paulo Sérgio Teixeira de Oliveira, aquele cujo escritório serviu de sede para uma penca de empresas.
Outra descoberta: a grana da $udam passeia pelas contas das empresas que dividem o generoso teto de Paulo Sérgio (CMA, Alya, Xinguara, Curtume do Pará e Fazenda Alto Bonito). Antes de liberar dinheiro novo, a $udam precisa confirmar a contrapartida das empresas. Cada real de incentivo fiscal deve corresponder a outro real investido pela empresa beneficiária. Daí o trânsito do dinheiro entre os diversos empreendimentos. Montou-se uma ciranda da felicidade: o dinheiro da $udam perambulava entre as contas, apenas para gerar falso saldo em favor das empresas, viabilizando novas liberações. Em outras palavras: usava-se o dinheiro do contribuinte para arrancar mais dinheiro do próprio contribuinte. Um maná.
Assim como no caso da CMA, a contabilidade das outras empresas esconde fraudes grosseiras. O esquema é o mesmo de sempre: extratos falsos, alterações contratuais fraudulentas e uma penca de notas frias. A novidade é a insistência com que uma empresa paulista salta dos processos da $udam como fornecedora de notas fraudulentas às empresas. Chama-se Tecmafrig Máquinas e Equipamentos S/A. Funciona à avenida Francisco Monteiro, 1.941, em Ribeirão Pires (SP). Está em estado falimentar, reconhecido pela Justiça.
A Tecmafrig figura, por exemplo, como maior fornecedora de máquinas e equipamentos ao projeto Xinguara, que beliscou o equivalente a R$ 12,6 milhões na $udam. Uma das notas arquivadas na autarquia registra a compra de R$ 860 mil em equipamentos. Em diligência à sede da empresa, em Ribeirão Pires, a Receita apreendeu a quarta via da mesma nota. O documento registra valor bem inferior: R$ 536. Há várias outras notas geladas da Tecmafrig. Só em 1996, as notas somam R$ 4,084 milhões, contra uma receita bruta declarada pela empresa à Receita de R$ 3,7 milhões. Descobriu-se que uma pessoa chamada Ricardo Zanchetta Briso era, ao mesmo tempo, acionista da Xinguara e diretor-superintendente da Tecmafrig. Ele estava nos dois lados do balcão. Paulo Sérgio Teixeira de Oliveira, aquele do escritório, era diretor da Xinguara, administrava-lhe a conta e, simultaneamente, assinava grande parte dos cheques da Tecmafrig, na conta número 74.301-0, mantida na mesma agência Belém-Centro do Banco da Amazônia.
Também a contabilidade do projeto Curtume do Pará contém uma leva de notas da Tecmafrig. Uma delas foi levada aos arquivos da $udam com o valor de R$ 1,06 milhão. A quinta via da mesma nota, obtida pela Receita, anota a irrisória importância de R$ 499. O Curtume emitiu em favor da Tecmafrig cheques que somam R$ 6,3 milhões. De novo, o diretor-superintendente da Tecmafrig, Ricardo Zanchetta Briso, figura como acionista do Curtume. Era, novamente, vendedor e comprador. Paulo Sérgio, o do escritório, é diretor do curtume e gestor das contas das duas empresas.
Ouvidos, os envolvidos negam o que parece ser uma evidência: a formação de quadrilha. Atacam-se mutuamente, para tentar descaracterizar a atuação como um grupo uniforme.
Há ações propostas também contra empresas que nada têm a ver com o grupo: Comavel Motomecanização S/A (R$ 2,065 milhões arrancados da $udam), Apiacás Hotéis e Turismo S/A (R$ 2,65 milhões).
Obteve-se ainda a quebra de sigilo bancário de três empresas: a Agropecuária Hakone S/A, a Fazenda Agropastoril São Pedro S/ A e a Frango Norte Agroindustrial S/A. Só essa última pescou R$ 23 milhões nas arcas da $udam.
O caso corre em segredo de Justiça. Quando vier por completo à tona, pode resvalar em personagem muito bem posicionado no Senado. O Planalto diz que o vozerio em torno da $udam é mais uma jogada de ACM contra Jader. Quem quiser entender o que se passa deve ignorar essa bobagem.
Fica entendido que, nessa matéria, a velha raposa baiana faz o papel de tambor, não de percussionista. Os verdadeiros donos da baqueta devem se reunir nesta semana em Brasília.
São procuradores da República -um deles, Pedro Taques (Cuiabá) está há quatro anos na trilha do dinheiro malversado- e funcionários da Receita. Junto com auditores da Secretaria Federal de Controle, eles dão o tom das investigações. Lançar as provas recolhidas no balaio da discussão política brasiliense, contaminada pela disputa à presidência do Senado, é um desrespeito ao trabalho dessa gente.



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