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NO PLANALTO
Um pâncreas no lixo
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
H á em São Paulo 172 doentes esperando por um
transplante duplo de pâncreas e
rim. São diabéticos, alguns em
estado terminal. A lista era
maior. Mas 12 não resistiram.
Só duas equipes médicas realizam esse tipo de transplante em
São Paulo: uma do HC (Hospital das Clínicas) e outra da Beneficência Portuguesa. Ambas
sofrem com a escassez de doadores.
Pois na noite da última quinta-feira um pâncreas pronto para ser transplantado foi parar
na lata de lixo do HC. É o segundo pâncreas desperdiçado em
menos de três meses. O outro foi
para o lixo da Santa Casa de Misericórdia. Por trás dos dois episódios, há um roteiro em que se
misturam muita burocracia, um
certo descaso e nenhuma punição.
Passava das 20h da quinta-feira. Reunidos ao redor de um cadáver de peito aberto, médicos e
enfermeiros estavam prontos
para iniciar a retirada dos órgãos.
Aguardava-se apenas pela
chegada de Telésforo Bacchella
(pronuncia-se Baquela), o médico do HC que, imaginava-se no
centro cirúrgico, cuidaria da extração de rins e pâncreas.
Em documento enviado ao
HC na tarde daquela quinta, a
Central de Transplantes da Secretaria da Saúde de São Paulo
informara que o primeiro doente da lista de transplante duplo
era do HC. Bacchella não apareceu. Aproveitaram-se o coração,
o fígado e os rins. Doentes que
estão pendurados na fila do
transplante souberam do desperdício do pâncreas. Revoltaram-se.
Não se tratava, para piorar, de
um pâncreas qualquer. O doador era jovem e saudável. Tinha
cerca de 30 anos. Morrera atropelado. Tinha sangue O positivo, doador universal.
Bacchella soube da existência
do doador "por acaso", em conversa com um médico residente
do HC. Pediu a uma funcionária do hospital que discasse para
a Central de Transplantes.
Soube, então, em caráter "extra-oficial", como diz, que o primeiro paciente da lista era mesmo do HC. Com o nome dele em
mãos, Bacchella diz ter telefonado para a UTR (Unidade de
Transplante Renal) do HC. Informaram-lhe, segundo conta,
que o paciente constava da lista,
mas estaria "inativo", jargão
que, no mundo dos transplantes,
identifica as pessoas cuja operação depende de providências
adicionais -exames complementares, por exemplo.
"Disseram-me que o segundo
da lista era da Beneficência", diz
Bacchella. "Pensei: bom, a Central de Transplantes avisa a outra equipe. Esta é a função deles."
A central não avisou, conforme reconhece o seu coordenador, Luís Pereira. "Foi um erro
grave." A versão de Pereira inclui detalhe que contradiz um
trecho da história de Bacchella.
Segundo Pereira, ao contrário
do que diz o colega, o paciente
do HC estava em posição "ativa" e era, sim, o primeiro da lista.
Outro médico, Marcelo Perosa, da equipe da Beneficência
Portuguesa, reforça: "Só há duas
equipes fazendo transplantes de
rim e pâncreas, nós e o HC. Não
há paciente nosso em primeiro
na lista. Logo, é do HC."
Antes que o pâncreas fosse descartado, um enfermeiro ainda
ligou para Bacchella. Seguia instruções de Milton Glezer, médico que coordena o departamento de captação de órgãos no HC.
Àquela altura, o pâncreas ainda
podia ser salvo, informa Glezer.
Bacchella disse ao enfermeiro,
porém, que o órgão era do time
da Beneficência. Ouvida, a Central de Transplantes autorizou o
descarte do pâncreas. E a coisa
ficou por isso mesmo.
Marcelo Perosa, da Beneficência, pedirá uma reunião extraordinária das pessoas envolvidas com transplante duplo em
São Paulo. "Isso não pode mais
acontecer", diz. "É um desrespeito com os pacientes." De fato,
de fato.
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