São Paulo, domingo, 04 de junho de 2000


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NO PLANALTO
Um pâncreas no lixo

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

H á em São Paulo 172 doentes esperando por um transplante duplo de pâncreas e rim. São diabéticos, alguns em estado terminal. A lista era maior. Mas 12 não resistiram.
Só duas equipes médicas realizam esse tipo de transplante em São Paulo: uma do HC (Hospital das Clínicas) e outra da Beneficência Portuguesa. Ambas sofrem com a escassez de doadores.
Pois na noite da última quinta-feira um pâncreas pronto para ser transplantado foi parar na lata de lixo do HC. É o segundo pâncreas desperdiçado em menos de três meses. O outro foi para o lixo da Santa Casa de Misericórdia. Por trás dos dois episódios, há um roteiro em que se misturam muita burocracia, um certo descaso e nenhuma punição.
Passava das 20h da quinta-feira. Reunidos ao redor de um cadáver de peito aberto, médicos e enfermeiros estavam prontos para iniciar a retirada dos órgãos.
Aguardava-se apenas pela chegada de Telésforo Bacchella (pronuncia-se Baquela), o médico do HC que, imaginava-se no centro cirúrgico, cuidaria da extração de rins e pâncreas.
Em documento enviado ao HC na tarde daquela quinta, a Central de Transplantes da Secretaria da Saúde de São Paulo informara que o primeiro doente da lista de transplante duplo era do HC. Bacchella não apareceu. Aproveitaram-se o coração, o fígado e os rins. Doentes que estão pendurados na fila do transplante souberam do desperdício do pâncreas. Revoltaram-se.
Não se tratava, para piorar, de um pâncreas qualquer. O doador era jovem e saudável. Tinha cerca de 30 anos. Morrera atropelado. Tinha sangue O positivo, doador universal.
Bacchella soube da existência do doador "por acaso", em conversa com um médico residente do HC. Pediu a uma funcionária do hospital que discasse para a Central de Transplantes.
Soube, então, em caráter "extra-oficial", como diz, que o primeiro paciente da lista era mesmo do HC. Com o nome dele em mãos, Bacchella diz ter telefonado para a UTR (Unidade de Transplante Renal) do HC. Informaram-lhe, segundo conta, que o paciente constava da lista, mas estaria "inativo", jargão que, no mundo dos transplantes, identifica as pessoas cuja operação depende de providências adicionais -exames complementares, por exemplo.
"Disseram-me que o segundo da lista era da Beneficência", diz Bacchella. "Pensei: bom, a Central de Transplantes avisa a outra equipe. Esta é a função deles."
A central não avisou, conforme reconhece o seu coordenador, Luís Pereira. "Foi um erro grave." A versão de Pereira inclui detalhe que contradiz um trecho da história de Bacchella. Segundo Pereira, ao contrário do que diz o colega, o paciente do HC estava em posição "ativa" e era, sim, o primeiro da lista.
Outro médico, Marcelo Perosa, da equipe da Beneficência Portuguesa, reforça: "Só há duas equipes fazendo transplantes de rim e pâncreas, nós e o HC. Não há paciente nosso em primeiro na lista. Logo, é do HC."
Antes que o pâncreas fosse descartado, um enfermeiro ainda ligou para Bacchella. Seguia instruções de Milton Glezer, médico que coordena o departamento de captação de órgãos no HC. Àquela altura, o pâncreas ainda podia ser salvo, informa Glezer.
Bacchella disse ao enfermeiro, porém, que o órgão era do time da Beneficência. Ouvida, a Central de Transplantes autorizou o descarte do pâncreas. E a coisa ficou por isso mesmo.
Marcelo Perosa, da Beneficência, pedirá uma reunião extraordinária das pessoas envolvidas com transplante duplo em São Paulo. "Isso não pode mais acontecer", diz. "É um desrespeito com os pacientes." De fato, de fato.


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