São Paulo, domingo, 5 de julho de 1998

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ELIO GASPARI
Se todos comem, vira bagunça

Assim como acontece às pessoas, há momentos em que as estruturas de poder de numa sociedade entram em surto. O andar de cima de Pindorama surtou durante a crise dos saques ocorridos em abril e maio no Nordeste. Surtaram o presidente da República, o ministro da Justiça, vários governadores e um punhado de notáveis. Os saques causaram tamanho impacto que até hoje o PFL roda na televisão um anúncio lembrando que os "sem-terra sequestraram 13 caminhões", abrindo uma "temporada de saques". "Não é com desordem e baderna que esses problemas (sociais) serão resolvidos", ensina o pefelê, no poder há 34 anos, sempre resolvendo os problemas que julga urgentes.
Cada saque tinha uma mesma essência: as pessoas tomavam, no peito, uma coisa que não lhes pertencia. Em muitos casos, comida armazenada pelo governo. Nuns poucos (menos de dez) atacaram mercearias. Os saques que mais impressionaram o PFL foram os das estradas. Num cálculo grosseiro, 300 caminhões foram parados em barreiras. Uns perderam toda a carga de farinha ou de feijão, a maioria deixou para trás algumas centenas de laranjas ou pacotes de rapadura. Para fixar uma cifra, pode-se supor que todas as mercadorias saqueadas aos caminhões valeram, no máximo, R$ 2 milhões.
Esse valor equivale ao faturamento de apenas três dias de serviço das quadrilhas que saqueiam cargas nas cidades e estradas do país. São quase R$ 300 milhões por ano. Em 1996, os roubos de carga foram 727 (dois por dia). Foram poucos os dignatários nacionais que saíram por aí denunciando essa anomalia.
Estranha situação. Quando quadrilhas de assaltantes ligadas ao crime organizado saqueiam caminhões, o assunto não acorda os defensores da lei e da ordem. Quando alguns milhares de famintos saqueiam comida, começam a desordem e a baderna. Poucas vezes se tornou tão clara a demofobia do andar de cima.
A coisa fica mais interessante quando se vê como funciona o negócio do roubo de cargas. A delinquência é tão estruturada que os métodos habituais de tortura da polícia brasileira mostraram-se inócuos para a descoberta das suas conexões internas. O assaltante não sabe para quem trabalha e o dono do depósito não conhece o receptador. Não é unidade de negócios de morto de fome.
As cargas preferidas são as de tecidos. Em segundo lugar, vêm as de remédios (109 roubos em 1996). Até 1995, quando as companhias de seguro passaram a recusar o risco das cargas de medicamentos, era mais negócio para um laboratório ter a sua mercadoria roubada do que vendê-la. Recebia da seguradora 100% do valor de venda e se ressarcia do ICMS e de uma parte das comissões comerciais. Depois vendia os remédios pela segunda vez. Uma carreta de medicamentos pode conter de R$ 300 mil a R$ 1,5 milhão em mercadorias. Na mão dos receptadores, a carga vale em torno de 20% disso.
O negócio ficou tão bom que nasceu uma rede de comércio de remédios roubados. Daí ao surgimento de outra rede, a de remédios falsificados, foi um passo.
É o caso de se perguntar como a indústria farmacêutica acabou vulnerável a esse tipo de praga. Coisa da reengenharia. No tempo em que os bichos falavam e farinha não era Microvlar, os laboratórios tinham vendedores que percorriam as farmácias, tomando encomendas. No mundo da nova racionalidade, os laboratórios repassaram a comercialização à rede atacadista de distribuição (20 empresas controlam metade do mercado). Pelo sistema antigo, se uma farmácia que comprava mensalmente dez caixas de um remédio suspendesse suas encomendas, o vendedor percebia que algo de estranho estava acontecendo. Pelo atual, como o laboratório perdeu boa parte do contato com a ponta final do mercado, a farmácia pode estar vendendo remédio roubado, ou mesmo falso, e ele não terá sequer como desconfiar. Se houver (e há) distribuidor comprando mercadoria roubada ou falsa, aquilo que em tese é a uma rede de comercialização transforma-se, na prática, numa rede anexa de concorrência, contrafação e crime.
Os saqueadores das estradas nordestinas (noves fora o MST sequestrando carretas) produzem baderna e desordem, enquanto os saqueadores de cargas, associados a empresas que lhes revendem os butins fazem parte daquilo que se convencionou chamar de ordem. Se a coisa continuar desse jeito, virá o dia em que um atacadista metido com roubo de remédios acabará se associando a um político de renome, daqueles que defendem a repressão imediata aos saques.
A ordem do andar de cima não chega a ser uma ordem pública, mas um tipo peculiar de desordem privada. Os saques dos famintos foram assustadores porque a turma da desordem estabelecida sabe que, se todo mundo quiser comer, a coisa vira bagunça.

Viva o mercado

Está acontecendo na Bolsa de Valores de Nova York um bonito e didático episódio de fé na capacidade dos empreendedores.
Em 1995, um sujeito chamado Jeffrey Bezos teve uma idéia: vender livros pela Internet. Fundou a Amazon Books (http://www.amazon.com) e foi à luta. No primeiro ano, suas vendas foram irrelevantes. Em 1996, ficaram em US$ 16 milhões e, no ano passado, subiram para US$ 150 milhões. Ela já vendeu 2,5 milhões de livros para clientes felizes em 160 países e seu catálogo tem 3 milhões de títulos.
Apesar desses números, a Amazon fechou 1997 com US$ 28 milhões de prejuízo e uma dívida de US$ 120 milhões (amenizada pelo fato de ter US$ 124 milhões em caixa).
Olhada pelo desempenho financeiro, seria um sucesso de público e um fracasso de bilheteria. Nessa hora entra em ação o vigor de uma economia na qual se acredita na inovação e se aposta no sucesso do empreendedor. O valor das ações da Amazon na Bolsa fazem com que a empresa valha US$ 6 bilhões, ervanário equivalente ao valor do controle de duas Vale do Rio Doce.

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota e acredita em tudo o que o governo diz. Brigou com vários amigos por causa do Proer. Ele dizia que se tratava de um programa de emergência, temporário. Passaram-se dois anos, a Viúva emprestou R$ 23,3 bilhões à banca, só recebeu de volta R$1,3 bi e o programa continua à disposição da seleta parte do público a que se destina.
O idiota acha que isso aconteceu porque alguém se esqueceu de revogá-lo. Chegou a suspeitar da possibilidade de ele vir a ser usado para socorrer bancos que compraram bancos com a ajuda do Proer, mas afastou esse mau pensamento da cabeça e voltou a reler seu livro predileto de ficção cientifica: o "Mãos à Obra Brasil - Proposta de Governo", do professor Fernando Henrique Cardoso.
Por idiota, Eremildo acha que FFHH vai fazer uma grande festa no dia 3 de novembro (às vésperas do segundo turno, caso ele aconteça). Será o terceiro aniversário do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional, nome completo do Proer. Pode usar o mesmo cenário da festinha das novas moedas do Real.

O leitor tem razão

O armador Claudio Decourt, vice-presidente do Sindicato Nacional das Empresas de Navegação, rebate a opinião aqui publicada segundo a qual é impróprio que essas companhias peçam juros diferenciados ao BNDES.
O coração do seu argumento é o seguinte: se dois armadores, um alemão e outro brasileiro, pedirem ao BNDES um financiamento para a construção de um navio num estaleiro nacional, o brasileiro pagará 6% ao ano de juros. O alemão, cujo barco será exportado, terá direito a um rebate de 3,8%. Se ia pagar 6% ao ano, pagará 2,2%. Terá merecido o incentivo que o governo dá às exportações.
Essa diferença não faz sentido no caso da navegação internacional quando se leva em conta que os dois navios podem acabar operando numa mesma linha (Santos-Roterdã, por exemplo). Desse jeito é mais negócio o armador brasileiro se mudar para a Alemanha.

Lula precisa arrumar um povo melhor

Luiz Inácio Lula da Silva, um vendedor de tapioca que morava nos fundos de um bar em São Paulo antes de se tornar torneiro mecânico, fenômeno político e candidato a presidente da República, saiu-se com a seguinte pérola para criticar o Plano Real: "O povo tem que aprender que ninguém pode viver de fantasia o tempo inteiro".
Era só o que faltava, Lula chamando o povo de despreparado. Logo ele, que é chamado de incapaz porque, em vez de se projetar pelos caminhos da elite, produziu-se pelo caminho da rua. Lula deu-se à venda da velha lorota segundo a qual o povo brasileiro padece de algum tipo de ignorância congênita, que o torna incapaz de distinguir o certo do errado, a fantasia da realidade.
O que há de mais intrigante nesse raciocínio é que, pretendendo excluir o povo da fraternidade dos sábios, acaba excluindo quem o propaga. Se os petistas já aprenderam a distinguir o real da fantasia e o povo ainda não conseguiu semelhante proeza, isso significa que os adoradores de Lula desligaram-se do povo.O povo não tem que aprender o que já sabe. Lula é quem tem que aprender que, se o seu verbo é escasso para vencer uma eleição, o problema é dele, não do povo. Se não gostar, tem que trocar de povo.
Se o Brasil fosse formado por iluminados que sabem o que é certo, obrigados a conviver com uma escumalha incapaz de saber que não existem fantasias eternas, a escolha dos governantes deveria ser feita por concurso de títulos.
Nesse caso, FFHH, "poligogóglota", tem uma mala de diplomas que lhe dá direito a ficar no poder até o ano 2222.

O MEC usa regras de disciplina de presídio

Ficou feia a posição do MEC no processo de reavaliação dos livros didáticos para o ano letivo do ano que vem. Depois de décadas de tolerância, monstruosidades e maracutaias, o ministro Paulo Renato Souza resolveu virar o jogo, fazendo uma faxina no pedaço (um mercado de 60 milhões de exemplares). Determinou a reclassificação dos livros a partir de um critério de qualidade.
Deu-se a limpeza, mas alguns autores reclamaram das classificações recebidas. A comissão que os avaliou jamais lhes fez perguntas nem lhes deu oportunidade para esclarecer dúvidas. Além disso, o edital da Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação continha um dispositivo pelo qual os interessados se obrigavam a não contestar as conclusões dos avaliadores.
Os criminosos presos em flagrante têm direito de defesa. Não fica bem negá-lo a autores de livros. Mesmo que não se quisesse empanturrar o FND com recursos, custaria pouco obrigar os avaliadores a rebater contraditas.
Pode-se entender que a Polícia Federal faça isso numa licitação para a compra de algemas, mas o Ministério da Educação trabalhando com regulamentos disciplinares de presídio já é coisa mais difícil de aceitar.

Entrevista
José Clemente de Oliveira
(61 anos, economista)
Segundo FFHH, é possível que no ano que vem a economia brasileira mude para melhor, crescendo numa taxa de 4% . O sr. concorda?
De jeito nenhum. A economia não está travada porque o presidente é malvado nem vai destravar se ele for bonzinho. Nosso progresso tem hoje três travas: o desequilíbrio das contas externas, os juros e o déficit público. O presidente não mostra interesse em alterar pelo menos as duas primeiras travas. Desse jeito, não adianta querer crescer, porque não pode. Essa política terá fôlego enquanto o governo puder vender o patrimônio do Estado. Estamos vivendo uma situação muito pior do que a de uma família que gasta mais do que ganha e tapa o buraco vendendo os móveis. Inventamos um processo de privatizações desordenadas e irracionais que prejudicarão o desenvolvimento do país mesmo depois da venda de todos os móveis.
Por quê?
A primeira resposta é óbvia. Se uma empresa estrangeira pagar hoje US$ 100 milhões por uma companhia que gera US$ 10 milhões de lucros ao ano, ela terá recebido seu capital de volta em 2008. A partir daí, até o fim dos tempos, vai drenar nossas divisas. Há desordem porque a política de privatizações não diferencia as empresas que podem exportar daquelas que não podem. Num exemplo abstrato, se a Companhia Siderúrgica Nacional exportar US$ 100 milhões, a economia brasileira tirará proveito disso, apesar dos seus sócios internacionais terem remetido US$ 10 milhões de lucros para o exterior. Já a Light, que não pode exportar luz para a França, vai remeter lucros, e só. Virará um outro tipo de dreno, mais severo. Além disso, quando o governo diz que as privatizações estão trazendo capital externo enuncia meia verdade e esconde meia mentira. O BNDES está financiando os empresários que compram o patrimônio do Estado. É um absurdo que um banco de desenvolvimento financie coisas que já existem. As empresas privatizadas, financiadas pelo governo, com dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador, passaram anos orgulhando-se do enxugamento de seus quadros de pessoal. Enchiam a boca e falavam em "downsizing". Agora, com o desemprego batendo recordes, apareceu o verdadeiro rosto dessa obra: nós financiamos empresas estrangeiras com o dinheiro dos nossos trabalhadores para gerar desemprego no Brasil e empregos no exterior.
O que o sr. propõe para corrigir essa situação?
Primeiro temos que qualificar o que vamos vender. A privatização de companhias que exportam deve ser feita de um jeito, sabendo-se que elas trarão divisas para nossa economia. A das que só exportam lucros, de outro. Depois, temos que tirar o BNDES da ciranda de financiamento dessas operações. O dinheiro do BNDES é um bem público. Ele não se destina a ajudar empresas estrangeiras a comprar o patrimônio do Estado brasileiro. Vamos voltar ao caso da família que vendia os móveis para cobrir o buraco de suas contas. Do jeito que a coisas estão, ela está usando a poupança que ia para o pagamento do plano de saúde para financiar o comprador do sofá de sua sala.
Real felicidade
Mesmo tendo jogado fora o salto alto, FFHH voltou a acreditar serenamente na possibilidade de se reeleger no primeiro turno.
Faz isso porque se convenceu, com números, de que o anabolizante usado contra sua crise de impopularidade fez efeito. Depois de comer o amargo caviar do exílio, FFHH entrou numa dieta baseada no doce pão com manteiga do poder.



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