São Paulo, Domingo, 05 de Dezembro de 1999


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ELIO GASPARI

A oposição garantiu a modernidade do atraso


O tucanato sabe mas não diz: seu projeto de modernidade está com o pé direito atolado no atraso. O resultado da votação, pela Câmara, da emenda constitucional que acabou com o anacronismo da existência dos juízes classistas produziu os números que retratam o paradoxo que lhe envenena o mandarinato e pode arruinar a biografia de seu príncipe.
Foi uma votação rara. Como o governo podia contar com votos da oposição, não precisava passar o trator sobre sua bancada, nem abrir o balcão de compra de votos. De um e do outro lado agiu-se como se quis.
A emenda precisava de 308 votos e foi aprovada com 350. A surpresa começa na decomposição desse resultado. Os quatro partidos oposicionistas (PT, PDT, PPS e PC do B) deram-lhe 76 votos. Ou seja, sem eles (e sem balcão), os juízes classistas teriam sobrevivido.
No PT, 54 deputados votaram a favor e só um contra. O PPS, com sua pequena bancada de 11 votos, deu 100% de apoio à emenda. No PSDB, o resultado foi menos decidido (72 x 13). No PFL houve 8 votos contra e 21 deputados se abstiveram ou não compareceram. Se os blocos partidários estivessem congelados, a bancada governista, com seus 55 votos contrários, teria derrubado a proposta.
Cortando-se a votação por critérios geográficos, a coisa piora. A bancada paulista dividiu-se (41 x 13), enquanto a da Bahia desceu unida (33 x 1). Piauí e Mato Grosso deram à emenda todos os 18 votos que tinham. Santa Catarina deu-lhe apenas 5, numa bancada de 16 cadeiras (4 votaram contra, 2 se abstiveram e 5 não compareceram.) Desprezando-se as divisões partidárias, os quatro Estados mais desenvolvidos (SP, RJ, MG e RS) aprovaram a emenda por 128 x 40. Os mais pobres (AC, PI, AP e RR) deram um banho (29 x 2).
Reformas como essas vêm sendo feitas em nome do que FHC chamou em seus discursos de posse de "ritmo da modernidade". Ele andou gostando dessa palavra, mas nos últimos anos abandonou-a. Desde junho não a usa. Enquanto esteve na moda, entrou na letra da escola de samba Estácio de Sá em 1996 e no samba-enredo da plataforma da reeleição. Durante o período de populismo cambial, confundiu-se modernidade com cuecas belgas. Na recessão, o conceito perdeu o charme. Pode ser associado à administração microcéfala do governador de Brasília, Joaquim Roriz. Ela usa o que há de mais moderno (balas de borracha) para fazer o que há de mais antigo (cegar os outros).
Se a modernidade sumir do vocabulário haverá uma melhora na higiene pública. Parece novidade, mas é coisa velha. Foi usada pela primeira vez em 1863, quando o Brasil ainda tinha epidemias de febre amarela (mas não tinha Joaquim Roriz). Seu criador foi o poeta francês Charles Baudelaire. Usou-a para alavancar a obra de um desenhista amigo, cujos trabalhos colecionava. Havia malandragem na modernidade de Baudelaire, como há esperteza no reformismo tucano.

FFHH deu ao papa uma santa que não podia sair do Brasil


FFHH meteu-se numa encrenca. Na visita que fez ao papa João Paulo 2º, no início de novembro, presenteou-o com uma imagem setecentista de Santa Ana, esculpida em madeira. Pela aparência, é coisa média.
Mesmo assim, de acordo com a lei 4.845, de 19 de novembro de 1965, o presente do monarca tucano ao pontífice romano envolveu um delito. Diz o seu artigo 1º:
"Fica proibida a saída do país de quaisquer obras de artes e ofícios tradicionais, produzidas no Brasil até o fim do período monárquico, abrangendo não só pinturas, desenhos, esculturas, gravuras e elementos de arquitetura, como também obras de talha, imaginária, ourivesaria, mobiliário e outras modalidades."
O caso pode resultar num processo contra o chefe do cerimonial do Planalto, mas é de fácil solução. O papa se apieda de seus visitantes, manda a santa de presente a uma paróquia brasileira e fica todo mundo feliz. (Fará melhor que Paulo 6º, que ganhou de João Goulart uma santa enorme, belíssima, e a deu a uma igreja romana.)
Se os cortesãos das viagens presidenciais não respeitam as leis que impõem aos outros, o Planalto podia, pelo menos, cuidar melhor do patrimônio histórico que está sob sua guarda.
Há pouco tempo, o ministro Aloysio Nunes Ferreira mandou tirar do seu gabinete um quadro de d. Pedro 1º (na condição de Pedro 4º, de Portugal). Ele lhe atribuía maus fluídos, emanados desde os anos 70, quando a sala era ocupada pelo general Golbery do Couto e Silva.
Tudo errado. O quadro morou no gabinete presidencial. Foi para lá ao tempo do general Médici e ficou até a chegada de Itamar Franco. Também não dá peso. Esse atributo era de outra pintura, o retrato de uma velha encarquilhada, feito por Eliseu Visconti, do qual Golbery livrou-se (tardiamente, a seu juízo).
O retrato de d. Pedro pertence ao acervo do Museu Imperial. É uma cópia de época, de uma pintura que está em Portugal, mas nem por isso deve ficar zanzando pelos gabinetes de funcionários. Se doutor Aloysio não o aprecia, que o devolva ao museu, antes que vá parar num banheiro.

Dívida fantasma



Coisas da burocracia. A Caixa Econômica Federal, administradora dos recursos do FGTS, cismou que a Editora Paz e Terra lhe devia R$ 0,40 por conta de um pagamento insuficiente feito em 1983.
Somadas as multas, juros e correção monetária, ela se transformou numa dívida de R$ 5.000.
A editora provou que nunca deveu os R$ 0,40, a Caixa já reconheceu isso verbalmente, mas ainda não conseguiu expedir a certidão negativa que a empresa lhe pede.
Parece rigor mas é inépcia. Os cem maiores (e verdadeiros) devedores do FGTS desviaram R$ 2,7 bilhões e até hoje nada lhes aconteceu.

Era um golpe de mestre, mas falhou


A tentativa da Embratel de se livrar, por meio de "soluções discretas", da pendência de R$ 1 bilhão que tem com a Viúva pode vir a se transformar num excelente estudo de caso de como as coisas se resolvem no andar de cima.
A empresa negociou seus interesses junto a diversos órgãos públicos, argumentando que estava isenta do pagamento de impostos que lhe cobravam sobre as ligações telefônicas internacionais.
Se estava ou não estava, é problema a ser decidido na devida esfera de competência. A novidade surgiu no final do ano passado, quando apareceu (vinda do Gabinete Civil da Presidência) uma proposta que revogava a isenção tributária que, em tese, beneficiava a Embratel. À primeira vista tratava-se de um erro, pois não havia lei alguma concedendo essa isenção. À segunda vista, era um erro neutro, pois, se o governo resolve revogar uma coisa que não existe, mal nisso não há.
À terceira vista, de um velho burocrata do Fisco, percebeu-se uma genial manobra. Caso a isenção fosse revogada, a Embratel poderia sustentar até o fim dos tempos que, como não se revoga o que não existe, a isenção existia. Portanto, a empresa estaria dispensada de pagar pelo menos uma parte do que a Viúva lhe cobrava.
Desmontado o ardil, o texto foi ao lixo.
Vão aqui os parabéns à argúcia de quem o concebeu. Infelizmente, vai também o registro de que o funcionário que teve a capacidade de fazer a terceira leitura decidiu deixar o serviço público. Aposentou-se, por cansaço, há poucos meses. Ganhava R$ 4.000. Só nesse episódio ajudou a Viúva a coletar mais do que ela lhe pagou por 38 anos de trabalho.

Licença histórica


O poder faz coisas incríveis com a cabeça das pessoas. Para se livrar dos índios pataxós que estão infernizando a vida dos organizadores das festas dos 500 anos da chegada de Cabral a Porto Seguro, o ministro Rafael Greca chegou a pensar em proclamar que os navios portugueses aportaram em outra praia, perto da cidade do Prado, dezenas de quilômetros ao sul. Seria a embocadura do pequeno rio onde Caminha registra que a armada passou a noite do temporal de 24 de abril de 1500.
Greca desistiu, mas, se deixassem, acabaria sugerindo que os portugueses desembarcaram em Curitiba.

ENTREVISTA

Paes Landim



(62 anos, deputado federal pelo PFL-PI, no seu quarto mandato)

- O senhor relatou da infortunada conversão da medida provisória das mensalidades escolares. Seu texto desorganizou os parâmetros que regiam os aumentos, porque lhes acrescentou um absurdo "entre outros". Além disso, previa que os alunos poderiam ser expulsos das escolas a partir do 60º dia de inadimplência. Levou o ministro da Educação, num primeiro momento, a admitir essas expulsões. O que o senhor tem contra os estudantes?
- Nada. Tenho contra o caloteiro que se matricula, não paga as mensalidades e ao final do ano pega seus documentos, vai a outro colégio e aplica o mesmo golpe. Ele encarece os custos das mensalidades. O texto que preparei foi publicado no "Diário do Senado" no dia 19 de outubro, mais de um mês antes da votação. No dia em que ele foi a voto todos os parlamentares receberam o texto avulso. Não propus a expulsão ao fim de 60 dias, mas o início do processo judicial, que nunca dura menos de três meses. Aceitei uma proposta do PT, e o prazo ficou em 90 dias. O texto aprovado foi negociado por todas as bancadas. Só o PDT enunciou o seu voto contrário, durante o encaminhamento da questão. Leia as páginas 160, 161 e 162 das notas taquigráficas da sessão. Ninguém se manifestou contra a aprovação do texto. A expressão "entre outros" foi incluída pela minha assessoria. Tinha argumentos a seu favor, mas não me dei conta das razões contrárias. O presidente fez muito bem em vetá-lo. Se alguém tivesse me pedido para tirar a expressão, eu a teria tirado. Eu achava que o PT ia fazer uma grita contra o texto. Foi uma surpresa a posição que sua liderança tomou.
- O senhor é a favor da expulsão dos alunos inadimplentes antes do fim do ano letivo?
- Sou contra, mas acho que eles devem pagar pelo serviço que receberam. O ministro Paulo Renato mostrou-se favorável à exigência do fiador. Acho que é boa idéia. Estão falando em cadastro. É utopia. Como é que se vai fazer cadastro nas escolas do interior? Uma coisa dessas só funcionaria onde há grandes e ricas universidades. Assim como não ouvi uma só palavra contra o "entre outros" na sessão do Congresso, também não a ouvi nas conversas que tive com representantes do Executivo.
- Comparando o texto que o senhor aprovou no Congresso com o da medida provisória que o presidente assinou na segunda-feira, qual o senhor acha melhor?
- O meu texto poderia ter sido melhorado, mas o do presidente deixou mal as escolas, enquanto ajudou as faculdades. Ele facilita a exclusão semestral nos cursos superiores, mas a proíbe no ensino fundamental e médio. Ou facilitava nos dois, ou a restringia em ambos. Puxou o pedaço mais fraco da corda, o das escolas pobres. O governo poderia ter levado todos esses pontos de vista ao Congresso. Houve conversas, e muitas. Nada foi votado de afogadilho. Tanto o Planalto quanto o PT conheciam o meu texto desde o dia 20 de outubro, com a expressão "entre outros". Eu acatei todas as sugestões que recebi. Acatei as do governo e acatei as da oposição.


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