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São Paulo, quinta-feira, 06 de fevereiro de 2003

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CELSO PINTO

O truque da inflação e os juros

Um dos vários males provocados por uma inflação alta é criar ilusões com os valores. Não há quem não repita que o Brasil é lider mundial de taxas de juros, ou algo muito próximo disso. Prova da insensibilidade monetarista teria sido o enorme aumento do juro básico, a Selic, de 18% para 25%, no final do ano passado.
O que muitos esquecem é que o último trimestre de 2002 foi marcado por uma enorme aceleração da inflação. Só nestes três meses, o IPCA somou 6,5%, mais do que a meta original para todo o ano, enquanto o IGP-DI chegou a 13,3%. Com o salto nos preços, veio a confusão com os números.
A história contada pelos números fiscais do final do ano pode surpreender a muitos. O fluxo de pagamentos de juros reais, em doze meses, que estava em R$ 49,3 bilhões ao final de maio de 2002, antes do confusão pré-eleitoral, foi caindo sem parar. Em dezembro, o juro real pago pelo setor público foi negativo em R$ 1,5 bilhão. Juro real é o valor do juro descontada a inflação, neste caso medida pelo IGP-DI.
É claro que, neste mesmo período, a inflação fez crescer o que o Banco Central chama de "atualização monetária" (equivalente à correção monetária) da conta de juros, de R$ 29,2 bilhões, em doze meses encerrados em maio, para R$ 98,5 bilhões, em dezembro. Só que, a mesma inflação fez crescer o PIB nominal estimado de R$ 1,268 trilhão em maio, para R$ 1,558 trilhão em dezembro.
O indicador mais sensível para o mercado financeiro é a evolução da dívida líquida do setor público em relação ao PIB. Como a inflação faz subir o denominador (o valor do PIB) o que pesa no numerador são os índices em termos reais, ou seja, já descontada a inflação.
O BC publica um quadro onde destrincha os fatores que explicam a variação da dívida líquida. Ela subiu 3,32% do PIB ao longo de 2002, para 55,9% do PIB. Entre os fatores propriamente fiscais que pressionaram a dívida, os juros nominais consumiram 7,23% do PIB. No entanto, o efeito do aumento do PIB nominal, que ajudou a reduzir a dívida líquida, foi maior, de 10,65% do PIB. Para se ter uma idéia, em 2001 esta ajuda da inflação havia sido de 3,98% do PIB e, em 2000, de 3,95%.
Quer dizer, o impacto negativo nominal dos juros, em 2002, foi mais do que compensado pelo impacto positivo do aumento inflacionário do PIB. E isto se deu, em boa medida, porque os juros reais praticados em boa parte de 2002 foram muito baixos, ao contrário do que se imagina.
Olhando pelo retrovisor, comparando o CDI de 19,1% com o IGPM de 25,3%, o juro foi negativo em 4,95% no ano. O IGP-M é o índice inflacionário que o mercado costuma usar como parâmetro para este tipo de cálculo. Deflacionando o CDI pelo IPCA de 12,5%, o juro real foi positivo em 5,9%, o que se compara com juros reais de 9% nos anos pós-crise cambial e de mais de 20% no período do câmbio controlado.
Quando o BC elevou a Selic de 18% para 25%, estava apenas tentando correr atrás da inflação, procurando recompor o nível do juro real esperado para frente. Entre 2000 e 2002, o juro real médio projetado para os doze meses seguintes foi de 12% (deflacionando a Selic pela inflação esperada pelo mercado). Em novembro, ele havia caído para 8,1%. Com o aumento de dezembro, ele subiu para 12,6% e, apesar do novo aumento da Selic de 25% para 25,5% em janeiro, o juro real projetado continuou nos mesmos 12,6%, porque a expectativa de inflação futura subiu. Para se ter uma idéia, em 2001, ano de sucessão de crises, o juro real projetado superou 13% durante meio ano, enquanto no ano mais tranquilo de 2000, girou em torno de 11%.
Alguém pode lembrar, corretamente, que 12% para o juro real esperado é uma taxa muito alta. Mas é bom lembrar também que o juro real pago pelo governo em 2002 (olhando para trás) foi bastante baixo, qualquer que seja o país a comparar.
O que, de fato, fez a dívida líquida subir, ano passado, foi o impacto de 9,34% do PIB do câmbio sobre o estoque. Foi um efeito contábil da desvalorização, já que a dívida vence ao longo do tempo e não de uma só vez. A cada 10 centavos de alta (baixa) da cotação do dólar a dívida líquida sobe (baixa) 0,8% do PIB. A subida (redução) de 1% do juro mantida por um ano eleva (reduz) a dívida em 0,3% do PIB.
Se o uso de uma política monetária mais agressiva, temporariamente, trouxer confiança e permitir um ganho no câmbio, a conta final líquida em termos fiscais pode ser positiva e não negativa para o governo. Ou seja, no limite, pode sobrar mais reais para a política social.
Mas, se a inflação pode ajudar tanto, porque não repetir o truque? Porque ele só funciona quando há uma aceleração rápida, inesperada dos preços. Contar com novos saltos na inflação para ajudar a conta fiscal seria como apostar nos benefícios à saúde do uso de doses crescentes de heroína.

E-mail: CelPinto@uol.com.br


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