São Paulo, quinta-feira, 06 de maio de 2004

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JANIO DE FREITAS

O mínimo dever

De repente, a cúpula do governo ficou muito preocupada. Difícil é saber se a súbita idéia fixa decorre, de fato, dos problemas implícitos no déficit da Previdência ou expressa a zonzeira com a péssima repercussão do espetáculo do salário mínimo. Certo é que, supondo adotar uma saída para suas aflições, a cúpula do governo se afasta ainda mais da realidade.
Lula só fala na impossibilidade de reajustar melhor o mínimo por força do "déficit de R$ 31 bilhões da Previdência". O PT recebeu ordem de difundir ao máximo a mesma defesa. José Dirceu até produziu uma sugestão para o déficit previdenciário, com a desvinculação do salário mínimo e o reajuste das aposentadorias -uma ferroada nos idosos, é claro.
O argumento do governo é falso. Não foi o déficit atual ou futuro da Previdência que levou ao reajuste grotesco do salário mínimo. Entre a posse e o reajuste recente, passaram 16 meses, mas o governo não dedicou nem um dia, nem um minuto à criação e ao exame de possíveis medidas atenuadoras do déficit que atribui às aposentadorias e às pensões dos (ex-)assalariados e autônomos. Passou o primeiro ano cuidando de impor uma pretensa reforma destinada a tomar 11% dos funcionários públicos aposentados, enquanto reduzia o recolhimento do INSS, com o aumento do desemprego.
O déficit não foi causa, também ele é efeito. Efeito continuado de uma causa primordial e evidente: a ausência de dedicação dos governos sucessivos, inclusive o atual, aos problemas da Previdência. O presidente metafórico sabe que a morte de uma pessoa atirada do décimo andar tem como causa final o choque com o solo, mas a causa primordial foi o empurrão. O governo empurrou a Previdência e o reajuste obrigatório do salário mínimo para o choque.
O senador Aloizio Mercadante merece, em reconhecimento à sua transfiguração, uma paródia do comentário, corrosivamente verdadeiro, que fez ao salário mínimo de 2000: "De R$ 151 para R$ 159 dá um reajuste de R$ 0,28 por dia. E o mínimo é prioridade absoluta neste país" (lembrado pelo "Globo"). De R$ 240 para R$ 260, o reajuste petista é de R$ 0,66. Com o PT, o mínimo deixou de ser prioridade absoluta neste país. Perdeu o lugar para os credores, os juros e o lucro dos bancos. Mas ficou caracterizada a distância entre o governo passado e o atual: vale R$ 0,38.
Passadas duas semanas da sua afirmação de que um governo ou faz justiça social ou não é governo, José Dirceu sugere que "o Brasil tenha a coragem de desvincular o salário mínimo da Previdência". Propõe, portanto, mais uma sarrafada na Constituição, que é a maneira instituída pelo governo Fernando Henrique e mantida por Lula de solucionar qualquer coisa sem solucionar coisa alguma. A Constituinte introduziu a vinculação para sustar, e depois corrigir, a injustiça social e a perversidade humana que, em nome das contas da Previdência, reduziam à penúria crescente os aposentados do setor assalariado. A sugestão de José Dirceu é, portanto, restabelecer as ferradas no trabalhador que não foi alçado à liderança sindical, ao Congresso, ao governo e, portanto, ao alto nível socioeconômico pelas greves que ele próprio integrou quando ativo. José Dirceu diz que os aposentados teriam a correção do INPC. Mas, se isso não representasse perda, sua sugestão não existiria.
O que importa, porém, está assegurado: os balanços trimestrais dos bancos estão exibindo lucros fenomenais, um grande êxito do governo.


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