São Paulo, quinta, 7 de janeiro de 1999

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JANIO DE FREITAS
Um símbolo

A decisão judicial que restabeleceu os três salários de parlamentares, para que compareçam ao Congresso uns dois dias em cada semana de janeiro, não atenuou, antes fortaleceu esse privilégio de senadores e deputados como o melhor símbolo do pacto de improbidade que domina o Brasil.
Três meses de férias para os parlamentares já são, por si sós, um privilégio despudorado. Atividade mesmo, na Câmara, só existe durante a semana para deputados estimáveis em 20% a 30% do total, uns cem. Do restante, os que comparecem o fazem assim, quase todos: chegada na terça-feira, mais para o fim do dia, e saída na quinta, tão cedo quanto possível.
Os dois dias de descanso remunerado para os brasileiros, em geral, invertem-se para os deputados, que têm um e meio a dois de comparecimento ao lugar de trabalho e cinco de disponibilidade remunerada. Nesse sistema, suas férias só podem ser para descansá-los de tanto descanso.
Dois meses no verão, um mês no meio do ano, junto com as férias escolares. Enquanto permanecer essa diferenciação dos parlamentares, em relação aos cidadãos que trabalham, estará ainda por ser iniciada a moralização do Congresso. Argumentam os defensores da inatividade remunerada que a duração das férias, assim como as ausências nas semanas falsamente úteis, é necessário para o contato com as bases. A falsidade é dupla.
Antes que deputados e senadores recebessem a abundância de passagens aéreas e, como complemento, o sistema de comparecimento semanal mínimo, Câmara e Senado eram muito mais eficientes e, nem se compara, respeitáveis. Além disso, o comportamento da grande maioria dos parlamentares não tem relação com o esperado pelas bases eleitorais, mas com as transações em que apoio e voto são moedas valiosas. Raros são os casos que fogem a essa regra -e o da cobrança aos inativos é um, por seu excesso anti-social.
A grande vantagem dos três meses de férias oficiais é a convocação extraordinária. Para manter o mesmo esquema de escassa presença e muita omissão, os parlamentares convocados recebem o triplo do que lhes é pago em dinheiro (não esqueçamos que, aos "pequenos vencimentos" de R$ 8.000, somam-se apartamento ou auxílio moradia, serviços de gráfica, verba extra dita de gabinete, passagens aéreas, combustível de carros e auxiliares na terra natal.
O ganho triplo depende da convocação pelo presidente da República. E Fernando Henrique Cardoso não deu aos parlamentares, nos últimos quatro anos, o presente de duas convocações anuais, no verão e a meio do ano. Desde junho passado, porém, a "reforma" administrativa estabeleceu que nenhum servidor pode receber mais, nem por acúmulos, do que os ministros do Supremo Tribunal Federal. Logo, como sentenciou o juiz Eugênio Rosa de Araújo, confirmado pelo juiz Theophilo Antonio Miguel, do Tribunal Regional Federal do Rio, o novo item da Constituição, aprovado pelo próprio Congresso, tornou inconstitucional o pagamento do vencimento triplo. Ou mesmo duplo.
Com a recusa de grande número de parlamentares a aceitar a convocação extraordinária, caso não tivesse o ganho, esse sim, verdadeiramente extraordinário, o governo entrou com um desses expedientes esquisitos, que têm resultado sempre em vitória sua, mesmo quando não o seja também da lei e da Constituição. E ganhou outra vez: os parlamentares podem receber, de novo, o presentinho que Fernando Henrique encontra, para mimoseá-los, nos cofres públicos refratários aos problemas da Saúde, da Educação, do saneamento, ao que a população necessita.
Um juiz federal já me ensinou na prática, quando de uma inconsequente ocorrência de trânsito, que é estúpido referir-se a magistrados, em jornal, senão para o aplauso. Pode acontecer de que seja um dos que aliam prepotência e temperamento vingativo, e de repente o acaso ou a Lei de Imprensa põe, frente a frente, juiz e comentarista. São esses cuidados que explicam a presença tão exígua do Judiciário no jornalismo brasileiro.
Mas o presidente do TRF, Alberto Nogueira, emitiu uma sentença que suponho absolutamente inovadora. Dado que o "Congresso Nacional não tem conseguido quórum", por motivos "que não me (a ele) cabe apurar", Sua Excelência concluiu ser isso "o quanto basta" para autorizar "o Congresso Nacional a pagar os jetons", que são os dois salários adicionais.
Nenhuma referência ao texto constitucional que limita, ou melhor, pretende dar um limite aos vencimentos dos servidores. Mas deputados e senadores estão autorizados, teoricamente, a pedir da próxima vez, não vencimento triplo, mas quintuplicado, decuplicado. Se "o quanto basta", para que recebam o valor citado em qualquer decreto legislativo sobre sua desejada remuneração, é só se recusarem a comparecer ao Congresso.
E viva a democracia em que os Três Poderes, apesar de um ou outro juiz atravessado, acabam se entendendo tão bem.



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