São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NO PLANALTO

Azede o domingo, descobrindo aqui o que é feito do seu dinheiro

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Dinheiro, como se sabe, é aquilo que você se esfalfa para ganhar, a fim de entregar um naco à Receita Federal, que o transfere ao Tesouro Nacional, que se incumbe de fazê-lo chegar às mãos de dois tipos que abundam no Estado brasileiro: as pessoas que, não adestradas para usá-lo, o desperdiçam e as que, adestradas em demasia, o subtraem.
Num ou noutro caso, chega-se ao mesmo resultado: o dinheiro evapora. E você, entre boquiaberto e irritado, mantém os seus botões sob questionamento: "Onde diabos terá ido parar?".
O Tribunal de Contas da União acaba de concluir um trabalho que esboça a resposta. Em 3.000 páginas, listaram-se obras públicas inconclusas ou recém-concluídas, entre elas as que padecem de "irregularidades graves". O calhamaço é, ele próprio, exemplo de desperdício.
Embora tenha custado o trabalho de algumas dezenas de técnicos, é de pouca serventia. Sigiloso, é sonegado ao maior interessado, o "contribuinte". Há coisa de dez dias, foi enviado ao Congresso. Por ora, nenhum parlamentar se dignou a mergulhar nos papéis, com 30 centímetros de profundidade.
A leitura é enfadonha, mas reveladora. Enfrentando-a, descobre-se que grandes imoralidades, tais como o TRT do juiz Lalau e a Sudam de Jader Barbalho, convivem com indecências miúdas, escandalosamente rotineiras nos desvãos da engrenagem pública.
Nem a insuspeita Polícia Federal escapa. Na reforma da Academia Nacional de Polícia, em Brasília, a PF pagou notas fiscais "sem identificar os serviços executados", fechou os olhos para a troca de material mais caro por mais barato (forro de metal por forro de gesso, por exemplo) e engoliu pequenos superfaturamentos. De quebra, torrou R$ 1.097,65 na compra de uma placa para a obra. Como o pessoal do TCU não a encontrou e como placa invisível é coisa que o gênio humano ainda não produziu, suspeita-se que o dinheiro tenha tido outra serventia.
Peca-se até, veja você, na construção e reforma de presídios. Tome-se o exemplo do Amapá, que vem tentando modernizar as suas penitenciárias com dinheiro obtido em Brasília. Numa das obras, gastaram-se, logo de saída, R$ 6.449,20 em serviços de demolição. As marretas puseram abaixo o vento. Não havia no local nenhuma edificação. Medindo-se telhados, lajes e calçamentos, nota-se que há mais material nas notas fiscais do que na obra. Dissiparam-se R$ 26.958,51. Aconselha-se aos responsáveis pela edificação que caprichem um pouco mais nas celas.
Há outros exemplos. A eles:
1) desde 1999, a Eletronorte trabalha num sistema de transmissão de energia com 12 subestações em Mato Grosso. Contrataram-se duas firmas: a Ecomind, para realizar a obra, e a Somel, para fiscalizá-la. O diabo é que ambas possuem os mesmos sócios. O governo ainda planeja lubrificar a obra matogrossense com algo como R$ 17,6 milhões até dezembro próximo;
2) a Universidade Federal do Amazonas iniciou, em dezembro do ano passado, obras de ampliação de suas instalações. Até o último mês de abril, escorregaram dos cofres da universidade R$ 555 mil, o equivalente a 30% de todo o orçamento da construção. Curiosamente, àquela altura não havia uma mísera parede levantada no local. As novas salas de aula eram um sonho ainda nas fundações. De acordo com o TCU, a conclusão do empreendimento ainda custará R$ 2,6 milhões;
3) em 1992, o Ministério da Integração Regional, já extinto, firmou convênio para concluir uma ponte no município maranhense de Timon. A licitação atraiu três empresas: Itapoã, Ciel e Engecol. Um detalhe sinistro as unia: suas propostas exibiam um tipo datilográfico idêntico. Fechada a "concorrência", sagrou-se vencedora a Itapoã. E o funcionário público que conduziu a comissão de licitação passou a acumular as funções de engenheiro da empresa, responsabilizando-se pela obra que, inacabada, ainda consumirá R$ 2,6 milhões;
4) os custos da restauração e duplicação da BR-386, que liga os municípios gaúchos de Lageado e Canoas, foram pavimentados com notas fiscais frias como o clima daquela região. Referem-se à compra de material betuminoso, usado no asfalto. A fraude, praticada entre 1997 e 1998, custou ao contribuinte R$ 116 mil. O que fez o velho e bom DNER? Em vez de reforçar a fiscalização, deixou de exigir notas para o reembolso desse tipo de despesa. Reservam-se R$ 4 milhões para a conclusão da obra;
5) analisaram-se também os preços de outra rodovia, a BR-230, iniciada em 1996. Trata-se de um trecho da Transamazônica. Fica na região conhecida como Bico do Papagaio, entre Mato Grosso e Tocantins. Detectou-se um sobrepreço de singelos 46,3%. Sumiram com R$ 9 milhões. A obra termina em junho de 2002. Até lá, absorverá mais R$ 22,5 milhões;
6) o DNER recupera e amplia a BR-060, na divisa do Distrito Federal com Goiás. Iniciada em 1998, a obra dispõe de projeto sólido como uma porção de gelatina. No trânsito entre o papel e a realidade, um único item -"serviços de proteção ambiental"- saltou de R$ 79 mil para R$ 3 milhões. Até a conclusão, prevista para meados do ano que vem, ainda sorverá R$ 58 milhões.
Há mais, muito mais. Porém, talvez seja melhor parar por aqui. Sob pena de elevar o azedume prometido no título a níveis insuportáveis. O que fazer? Providenciar uma lei que jogue na ilegalidade todos os atos de competência e honestidade. Desrespeitando a nova lei, como faz com todas as outras, o governo brindaria o país com uma onda de capacidade e idoneidade jamais vista.



Texto Anterior: MST diz que pode haver novas invasões em MG
Próximo Texto: Via suspeita: Tribunal suspende licitação do Rodoanel
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.