|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LANTERNA NA POPA
Chegando ao limite
ROBERTO CAMPOS
Um espectro ronda o país -o
espectro da desordem. É verdade
que o nosso público, de tão passado a ferro em matéria de crises, costuma dar desconto. O
Brasil é maior do que o buraco, e
coisas pelo estilo. Infelizmente,
qualquer observador capaz de
filtrar o palavrório dos marqueteiros oficiais pode perceber hoje
que os sinais de perigo estão ficando sérios. Persistente depreciação do Congresso, baixos índices de popularidade do presidente (no primeiro ano do seu
segundo mandato!), aumento
bestial da criminalidade, impressão de iminente falência
múltipla dos órgãos do Estado,
esvaziamento de valores e símbolos, falta de ânimo do povo,
perda de referências, desgaste
das opções de esperança. Em fala acadêmica, traços de anomia,
atimia, acídia.
Não adianta culpar -nem
desculpar- o governo atual.
Que tem a sua parcela de responsabilidade, sem dúvida, mas
não inventou os problemas. Encontrou-os. Por outro lado, assim como o real lhe deu a eleição
de 94 e também a de 98 (quando
o país, anestesiado pelo otimismo oficial, já estava começando
a ser apanhado pelo "tsunami"
financeiro internacional que, a
partir do epicentro do Leste
Asiático, foi levando de roldão
as economias que estavam em
perigo), as frustrações, exacerbadas pelos erros da política
econômica, fazem-no agora alvo natural do rancor do público.
A herança de desordem dos
gastos públicos recebida por Fernando Henrique seria quase
inadmissível, qualquer que fosse
o governo, ainda que não se
houvesse agravado tanto o cenário externo. Não se trata, porém, do governo de FHC, que é
uma figura lúcida, de boa qualidade intelectual e irretocável seriedade diante da coisa pública.
Teria sido uma boa escolha eleitoral para a chefia do Estado em
qualquer parte do mundo. Estado e governo são, no entanto,
coisas diferentes que, no Brasil,
historicamente tendem a atropelar-se de maneira intratável,
constituindo o pior dos obstáculos ao desenvolvimento de uma
sociedade. Os erros do governo
atual têm decorrido muito mais
da quase impossibilidade de
controlar a "máquina" política
e econômica que aí está do que
propriamente de falhas pessoais
do presidente.
Não há mais como adiarmos
uma reforma política radical.
No nosso regime presidencial, os
traumatismos inerentes à rigidez, aos graves sobressaltos de
qualquer transição eleitoral e ao
incontrolável potencial de conflitos entre o Congresso e o governo já provocaram, desde o
início da República, uma sucessão de crises institucionais seriíssimas. Estas foram seguidas
de regimes de baixa legitimidade, oligárquicos ou autoritários,
entremeados de breves períodos
de precária legalidade, durante
os quais enchentes de populismo
ameaçavam aluir as comportas
da ordem pública. Os ministros
costumam ser ou meros favoritos ou comprados no varejo da
máquina política. Um enredo
que não variou muito nos últimos 110 anos.
A situação talvez tenha alguma parecença com a de 1930.
Nesse ano houve uma revolução, seguida de década e meia
de regime de exceção, interrompida por três anos de precária
tentativa de democracia. Quando o mundo todo estava em depressão, 70% da população brasileira vivia no campo, e enquanto as economias industriais
sofriam, o país, por espontânea
substituição de importações,
acabou crescendo a taxas surpreendentes. Hoje, o paradoxo é
estarmos em recessão no meio
de um mundo próspero. Se não
forem mudadas as regras políticas, as próximas eleições gerais,
em 2002, podem precipitar o
país no caos populista, do qual
não se sairá senão a um custo
terrível.
Falta muito ao Brasil em termos de regime verdadeiramente
democrático. Medidas provisórias (instrumento impróprio para um regime presidencialista,
inventado no mais abagunçado
dos parlamentarismos, a Itália,
e adotado nas loucuras de 88,
talvez porque os nossos juristas
tivessem menos dificuldade em
capiscar o italiano do que o inglês); voto obrigatório (constrangimento do eleitor, não praticado em nenhuma grande sociedade democrática); o peso do
voto de cada cidadão variando
conforme o estado da Federação
e por aí afora. A coesão dos partidos torna-se ficção -basta
pensar-se nas dezenas de mudanças de partido após as recentes eleições. E não é para menos.
Em São Paulo ou no Rio, um deputado tem de competir em universos eleitorais de 70 e de 46 vagas, respectivamente. Como estranhar que cada candidato seja
o primeiro natural adversário
dos seus companheiros de partido, salvo dos que "arrastam votos" e geram sobras de legenda?
Que responsabilidade política é
possível esperar em tais condições? Conseguimos fazer o oposto do presidencialismo federativo que nos serviu de modelo republicano, os Estados Unidos.
Lá, os Estados e os municípios
que se endividam têm de se virar
sozinhos -aqui, a conta vai para a Viúva. Por outro lado, enquanto lá os Estados não podem
impor obstáculos entre si ao comércio e à circulação de capitais, aqui vemos Estados tentando proibir, por exemplo, a exportação de matérias-primas
para outros.
A reforma política, por urgentíssima que seja, porém, não é
uma panacéia. Não há regime
político algum capaz de satisfazer a todos igualmente. Até nas
mais sólidas e estáveis democracias do mundo -a Inglaterra,
parlamentarista, e os Estados
Unidos, presidencialista, ambas
com voto distrital- há sempre
gente querendo mudar o sistema. Todos os sistemas têm defeitos. O voto distrital simples é
usado na França, na Inglaterra
(que está para realizar um referendo nacional a respeito), nos
Estados Unidos, no Canadá e
em outros. Formas modificadas,
como o distrital misto, são usadas na Alemanha e em alguns
mais. O voto puramente proporcional, usado em uns quantos,
pode ser em listas abertas dos
partidos ou fechadas ou ainda
"transferível", de escolha livre
(dentro do mesmo partido ou
em vários), com ou sem exigência mínima de votos para o partido ter representação parlamentar (em geral, 3% a 5%).
São inúmeras as combinações
possíveis, e a mais apropriada
sempre depende do contexto histórico, cultural e social específico.
Reforma política não se limita
a essas múltiplas combinações.
No caso brasileiro, contudo, a
indicação é de cirurgia imediata, e a solução mais sensata, do
ponto de vista da legitimidade e
estabilidade, consiste no parlamentarismo baseado sobre o voto distrital misto (o que melhor
combina as virtudes dos vários
sistemas), complementado por
uma legislação eleitoral responsável.
Três enormes vantagens de
um regime parlamentar são:
(1) quem faz as leis é que tem
de cumpri-las, o que limita a demagogia e a irresponsabilidade.
(2) os partidos passam a existir como aglomeradores eficientes das correntes políticas, o que
dá mais legitimidade ao sistema.
(3) as mudanças de governo
tornam-se mais fáceis e menos
traumáticas, o que dá maior poder e segurança ao eleitorado.
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado
federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor
de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
Texto Anterior: Painel Próximo Texto: Venda da Cesp: Advogados questionam privatização Índice
|