São Paulo, Domingo, 07 de Novembro de 1999
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ELIO GASPARI

Uma reforma que gratifica os ineptos


Finalmente, chegou à Casa Civil da Presidência da República a minuta da regulamentação da gratificação dos auditores fiscais da Receita Federal e do INSS. É divertimento para o domingo.
Ela estabelece que os auditores podem ganhar um adicional de até 50% sobre os seus vencimentos e divide a gratificação em duas partes. Uma, equivalente a 20 pontos percentuais, depende do desempenho da instituição. Se ela cumprir as metas fixadas pelo governo, todo mundo a leva.
O segundo pedaço, de 30 pontos percentuais, deverá ser distribuída da seguinte forma:
Só 10% dos auditores poderão receber integralmente essa fatia. Em tese, os melhores. Outros 30% poderão ganhar o equivalente a 90% desse pedaço. Até aí, tudo bem.
A coisa fica divertida quando se estabelece que, obrigatoriamente, 2% dos auditores devem ser avaliados com nota zero, perdendo o direito à segunda fatia da gratificação. Tomando-se a Receita Federal por exemplo, isso significa que 300 auditores devem ser considerados ineptos. É provável que o número de fiscais com um só neurônio ligado seja superior a 300, mas é difícil aceitar que, obrigatoriamente, eles devam ser 2% de qualquer coisa.
A mesma minuta que manda dar zero a 2% dos auditores lhes dá o direito absurdo de receber integralmente a primeira fatia da gratificação, de 20% do salário.
Disso resulta o seguinte:
Admitindo-se que Fernando seja o mais competente dos funcionários já admitidos na Receita e que seu salário seja de R$ 2.000, ficará com uma gratificação de R$ 1.000.
Admitindo-se que Henrique tenha (merecidamente) ficado com zero na avaliação, receberá R$ 400.
Assim, a distância entre a competência e a inépcia será de R$ 600. Como o incorrigível Henrique jamais conseguiria seus R$ 400 sem que o competente Fernando suasse a camisa, o bom desempenho acabou valendo apenas R$ 200 mais que a inépcia.
Proposta: quem tirar zero não leva nada.

A aluna era brilhante, mas plagiou a professora


Estão nas livrarias duas obras de Ana Cristina Cesar, refinada poeta carioca da geração dos anos 70. O primeiro -"Correspondência Incompleta"- é uma seleção de cartas que escreveu a quatro amigas, entre 1976 e 1980. É um lindo livro, retrato da alma de uma jovem camaleônica, absorvida num projeto intelectual severo e erudito. O segundo -"Crítica e Tradução"- reúne ensaios e artigos de Ana C. (como se faria chamar), bem como poemas traduzidos.
A poesia é coisa fina. Na parte ensaística, inclui um trabalho de mestrado que Ana entregou à Escola de Comunicação da UFRJ em junho de 1979. Dele perderam-se as primeiras páginas da introdução e as notas bibliográficas. Pena, porque a autora morreu em 1983, aos 29 anos, e agora não se consegue justificar as colagens que assemelham esse trabalho a outro, de sua professora e amiga Heloísa Buarque de Holanda.
O trabalho de Ana C. transcreveu parágrafos inteiros da tese de doutorado da professora, defendida um ano antes na Faculdade de Letras da UFRJ e publicada em 1992 com o título "Impressões de Viagem - CPC, Vanguarda e Desbunde: 1960/1970". Trata-se de brilhante percepção de uma reviravolta na cultura nacional.
Às páginas 65 e 66 do livro de Heloísa Buarque de Holanda (3ª edição, da Editora Rocco) lê-se o seguinte a respeito do clima cultural que se seguiu ao tropicalismo:
"O tema da liberdade, da desrepressão, da procura de "autenticidade", nesse grupo, substitui progressivamente os temas diretamente políticos. Ser marxista, no fim de algum tempo, passa a ser visto como um estigma, principalmente se vem acompanhado de alguma preocupação de participação política mais efetiva, constituindo-se em demonstração insofismável de "caretice"."
À página 216 do livro de Ana C., lê-se a mesma coisa, com a inexpressiva supressão de quatro palavras:
"O tema da liberdade, da desrepressão, da procura de "autenticidade" nesse grupo, substitui progressivamente os temas diretamente políticos. Ser marxista, no fim de algum tempo, passa a ser visto como um estigma, principalmente se vem acompanhado de algum engajamento político mais efetivo, constituindo-se em demonstração insofismável de "caretice"."
É plágio, e não é o único. A "cleptomania estilística" de Ana C. já foi registrada, num comentário virtuoso. No ensaio, os trechos e os exemplos plagiados passam da dezena e nada têm a ver com estilo, mas com conteúdo. À época, ela contou a um amigo que, com pressa de viajar para a Inglaterra, daria "uma colada" no trabalho da professora. Viva, talvez não o publicasse em livro.
O mais interessante é que em alguns momentos a jovem estudante de 26 anos extremou, para melhor, algumas observações do original. Ela capturou um comentário sobre a rejeição ao "discurso militante do populismo" e trocou "populismo" por "esquerda". Ana C. anteviu, e botou no papel, uma rejeição ao esquerdismo, embrionária até mesmo entre os radicais da época. Nesse trecho, fez melhor que Pedro Américo, que plagiou para pior o quadro a Batalha de Friedland (em exposição no Metropolitan de Nova York) do pintor francês Georges Meissonier e transformou-o no Grito do Ipiranga.

ENTREVISTA

Renan Calheiros


(44 anos, senador pelo PMDB-AL e ex-ministro da Justiça)
O que aumentou? O banditismo ou o medo?
- Aumentou a criminalidade. A impunidade está apavorando os brasileiros. Em São Paulo, são esclarecidos apenas 1,7% dos crimes praticados por pessoas que não foram apanhadas na hora. O sistema de segurança paulista é hoje muito pior que o do Rio. Em dois anos, fugiram 3.600 menores da Febem. O governador Mário Covas, de uma maneira meio cínica, disse que o problema não é dinheiro. Se não é dinheiro, é governo. A menos que seja o povo, mas ele não pode trocar de povo.
Como ministro da Justiça, o senhor emperrou a liberação de verbas para o governo de São Paulo?
- Liberei cerca de R$ 100 milhões para a construção dos presídios que deveriam permitir a desativação do Carandiru. Foram feitas obras, mas o governo paulista me convidou, durante a campanha eleitoral, para a inauguração de penitenciárias inacabadas. Não aceitei. Estavam tão inacabadas que depois pediram uma extensão do prazo dos convênios para concluir as obras inauguradas.
O senhor não acha que se fala demais em mudar as leis existentes e se trabalha pouco para aplicá-las?
- Há coisas que devem ser mudadas e é necessário repensar o sistema de segurança pública brasileiro. O Orçamento federal não tem um só centavo destinado à segurança dos Estados. Apesar disso, desastres como o da Febem não acontecem só porque a estrutura está errada. Derivam da falta de interesse do administrador. Uma das coisas de que mais me orgulho de ter feito no Ministério da Justiça foi afastar, em 30 dias, 60 delegados e agentes da Polícia Federal metidos com o crime.

No bolso da choldra


Há uma iniquidade na idéia de cobrar R$ 2,50 em cada conta telefônica com a promessa de que o dinheiro servirá para equipar a polícia de São Paulo. (Só quem acredita em Papai Noel é capaz de supor que a taxa paulista, uma vez instalada, não se propagará por outros Estados.)
Para quem ganha um salário razoável, R$ 2,50 soam como mixaria. Para quem olha o bolso do brasileiro, a coisa é diferente. Vale o exemplo de São Paulo:
A Telefônica expede a cada mês 7,4 milhões de contas. Delas, 4,8 milhões são linhas individuais, de residências ou pequenas empresas. Uma tunga de R$ 2,50 por mês significará um aumento de quase 20% em 275 mil contas. São os cidadãos que usam pouco o telefone e pagam apenas o custo da assinatura (R$ 13,82). Cerca de 2 milhões de pessoas pagam até R$ 30 por mês. Correspondem a 40% das linhas.
Tomando-lhes R$ 2,50, Covas estará impondo a um pedaço da escumalha um aumento médio superior a 10% em sua contas telefônicas.
As pessoas que usam pouco o telefone são as mais pobres, aquelas a quem o Estado dá menos segurança.
Até hoje o governo paulista não teve curiosidade de saber quantas pessoas pagam menos de R$ 30 mensais pelos seus telefones.
Reequipando-se, a PM paulista acaba de comprar (sem licitação, com o amparo legal da Procuradoria Geral do Estado) cinco helicópteros Esquilo, da Helibrás, a R$ 3 milhões cada um.
O procedimento justificou-se pelo interesse de se manter a padronização da frota, pois a PM já tem sete Esquilos. Esse argumento pode ser forte, mas preserva o monopólio da Helibrás, quebrado há poucos anos.
A Polícia Rodoviária Federal, licitando suas encomendas, comprou cinco aparelhos da Bell. Na disputa, os helicópteros Esquilo custariam mais caro. Os Bell saíram por R$ 2,5 milhões cada um.

A Petrobras precisa pedir uma consultoria ao doutor Rennó


Em março, depois de deixar a presidência da Petrobras, o doutor Joel Rennó fez um comentário enigmático a respeito de seu sucessor, Henri Philippe Reichstul: "É um bom moço, mas não é do ramo". Dependendo do que se entenda por "ramo", esse pode ter sido um dos maiores elogios que Reichstul já recebeu.
Há poucas semanas, Rennó contou que jamais ganhou tanto dinheiro na vida. É consultor de três empresas. (Na Petrobras, vivia com menos de R$ 15 mil por mês.) Se Rennó tiver bom gosto, poderá mudar seu escritório para perto de casa. No Leblon, uma boa sala chega a valer R$ 230 mil (US$ 2.500 por metro quadrado, noves fora a garagem).
Por não ser do "ramo", Reichstul deveria convidar Rennó para prestar-lhe uma consultoria. Poderia ajudá-lo a entender o seguinte pandemônio:
Em novembro de 1996, a Petrobras selecionou as empresas que disputavam o fornecimento de uma unidade de produção flutuante para o seu campo de Marlim, no norte fluminense. Chama-se unidade de produção ao equipamento que tira o óleo do poço. Foram desclassificadas duas empresas, a Halla (coreana) e o consórcio Modec/Marítima (brasileira). A Marítima recorreu, a comissão de licitação manteve a desclassificação.
Em dezembro, a mesma comissão registrou que "a autoridade superior" mandou que a Marítima fosse habilitada. Feito isso, ela ganhou a concorrência. No final de 1998, entregaria uma plataforma por US$ 288 milhões. Vem aí o ano 2000, e a plataforma (P-37) não apareceu. Além de se ter estourado o prazo, estourou-se o custo. Estima-se que chegue a US$ 350 milhões.
Menos de um mês depois dessa licitação, um documento interno da Petrobras propunha uma manobra fantástica. Interessada em acelerar a produção de óleo, a empresa promoveria uma dança de plataformas.
Deslocaria uma unidade que deveria ir para o campo de Marlim (a P-36, contratada sem licitação) e a colocaria no de Roncador. Uma beleza. Ela começaria a operar em dezembro de 1998. Cadê a plataforma? Está no Canadá. O estaleiro que a construía foi à garra, a Petrobras assumiu o contrato. Ela chegará ao Rio em dezembro, incompleta. Custaria US$ 400 milhões. Custará em torno de US$ 500 milhões.
No mesmo lance de brilhantismo, decidiu-se contratar (sem licitação) uma plataforma rebarbada na concorrência da P-37. Era a DB-100, rebatizada como PT-40, e iria para Marlim. Começaria a operar em fevereiro de 1999. Cadê? Está em Cingapura. Pode chegar, incompleta, em abril do ano que vem. Seu valor estava em US$ 320 milhões. Ficará em US$ 400 milhões. Isso esquecendo-se que sua funcionalidade obrigou a Petrobras a contratar um navio para estocar o óleo. Coisa de US$ 150 milhões (sem licitação). Sempre com a mesma empresa.
Por não ser do "ramo", é provável que Reichstul não consiga entender o que aconteceu com as plataformas. Deveriam estar funcionando, mas não chegaram. As despesas estouraram em pelo menos US$ 400 milhões.
É certo que o doutor Rennó sabe o que aconteceu. O ex-presidente da Petrobras não haveria de comprar plataformas (ou imóveis) admitindo a hipótese de receber as chaves com um ano de atraso e 40% mais caras.


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