UOL

São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

PT e PSDB: tudo a ver (a crítica da crítica da exceção)

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

É sinal de bons ventos na vida intelectual brasileira que Francisco de Oliveira, hoje professor de sociologia da USP, esteja vivendo um período de inquietude teórica como militante do PT, ele que bem de perto viu nascer no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) a paidéia tucana, tendo sido amigo de alguns caciques do PSDB, um partido político que possui o dom milagroso de transformar alguns professores universitários em donos de banco, assim como o PT detém a fórmula mágica de, graças aos fundos públicos, converter os operadores sindicais dos trabalhadores na nova classe social emergente que tomou o poder em 2003.
Isso numa sociedade semi-desestatizada, numa nação que não tem o controle de seus patrimônios biominerais estratégicos, em que 60% da força de trabalho está engajada na informalidade econômica, tendo diuturnamente a cabeça feita pelas mensagens de telenovela e de programas de auditório.
Ao perguntar que tipo de capitalismo medra nesta ex-colônia de "plantation", ou neste ex-país subdesenvolvido, Francisco de Oliveira, um pernambucano marxista regionalmente adversário da razão dualista não deixa de ficar perplexo diante da nossa anomia societária, tanto que em sua prosa a palavra mais recorrente é "exceção", de modo que ao leitor acode o desejo de saber que é e onde está a regra, dando por suposto que a metástase da exceção não é coisa boa à vigência da democracia.
E aqui entra o destino da periferia, a maldita fatalidade histórica de termos chegado cedo demais no capital financeiro, e não termos chegado ainda no capitalismo propriamente dito. Essa anomalia, esse escotoma, esse monstrengo é a raiz da exceção, ou melhor, a regra da exceção, o paradoxo da "ausência de relação mercantil num mundo e numa sociedade totalmente mercantilizados", no dizer de Francisco de Oliveira.
Essa análise feita sob o prisma do capital e trabalho deixa contudo de salientar que há um lugar onde a exceção não senta praça: é no território físico dos trópicos. É nessa fisicalidade da natureza que se encontra o segredo para a compreensão dos novos botes do colonialismo do século 21, o século da maior crise energética na história da humanidade. Dir-se-ia que a engelsiana dialética da natureza, com a ênfase posta na energia que precede a relação capital e trabalho, colocará as regiões intertropicais do planeta no epicentro da história.
Essa é a regra do jogo geopolítico, cujo desdobramento vai nos indigitando que efetivamente o que importa para o poder mundial instrumentalizador da "dívida externa" é o sol e a água doce do novo mundo, e não a brava gente que o habita, de modo que a reprodução da herança espermática passa a ser a exceção diante da natureza dos trópicos. O antigo moinho de triturar gente converte a população num traste descartável. Apartheid social é eufemismo para designar o extermínio em curso e, no plano cultural, a amnésia desse extermínio. Estamos aqui lidando com uma inusitada mediação energética que não estava embutida no conceito de genocídio do "Manifesto do Partido Comunista" de Marx e Engels, autores que não chegaram em suas vidas a experimentar a fruta jabuticaba da terra do escritor José de Alencar.
Mencionei a sua inquietude teórica para dizer que Francisco de Oliveira está fazendo a revisão, ou a autocrítica, do que se passou nas últimas décadas, cuja sociologia política chapa branca deitou e rolou em cima de um conceito anfibológico e malandro como o de populismo. Daí o ensejo jubiloso de no futuro ele vir a discorrer sobre a complexa questão do nacionalismo trabalhista a partir de 30 e os seus percalços na sociedade brasileira; afinal, o conceito de populismo serviu para desqualificar a tradição do trabalhismo que é anterior ao aparecimento do PT em 1979, no ABC paulista.
Francisco de Oliveira, em seu último artigo, à semelhança do ocorrido com o estalo de Vieira, publicado na revista "Margem Esquerda", está se dando conta agora de que existe convergência material e política entre o PSDB e o PT, ambos de olho gordo nos fundos públicos de investimento, sob a indefectível pata do capital financeiro, o que para Francisco de Oliveira depõe contra a existência do PT, considerado por ele um dos mais importantes partidos políticos de esquerda do mundo.
E aqui de novo avulta o paradoxo: trata-se de um partido de esquerda que é xifópago de um partido de direita. PT e PSDB: tudo a ver. Convém prestar atenção nesse neologismo: o chamado "petucanismo" é a identidade ideológica da política em São Paulo depois do golpe de 64. A xifopagia petucana surge como o reflexo financeiro da política paulistocêntrica recolonizadora dos Brasis ferrados e excluídos. Assistimos à estranha dialética do mesmo: ao príncipe da moeda sucede a plebéia esmola da moeda. A palavra "cidadania" virou sinônimo de tapa buraco, assim como pela taxa entrópica de redundância está cada vez mais insuportável ouvir a retórica sobre o "transparente".
Apesar dos esforços do nosso chanceler glauberiano, Celso Amorim, a questão da impotência do Brasil como sujeito da história consagra entre os intelectuais a safada ideologia pós-moderna: a nação já era. Francisco de Oliveira anda jururu com o PT, que tem jogado fora os milhões de votos, por carecer de um projeto popular e nacional, comprazendo-se em atitudes meramente midiáticas e de cunho assistencialista. Não é por aí que se vai alavancar o país, cujo enorme exército de reserva (os desempregados) o PT não sabe como dar jeito, já que não tem nenhum plano estrutural para empregar a massa da população.
A criação de milhões de empregos não se faz com lágrimas, nem com embalo da má consciência teológica e os torneios distributivistas das rendas mínimas de cidadania. O velho Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), tão vilipendiados pelos novos mandarins da sociologia informava que a contradição radicular do povo brasileiro estava na contradição nação versus antinação.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de "A Salvação da Lavoura" (Casa Amarela), "O Príncipe da Moeda" (Espaço e Tempo) e "Collor, a Cocaína dos Pobres" (Editora Ícone), entre outros livros.



Texto Anterior: Biblioteca Folha: "O Fio da Navalha" é o próximo romance
Próximo Texto: Público & privado: ONG presidida por Marisa cobra de empresas
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.