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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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PÚBLICO & PRIVADO

Para Francisco de Oliveira, impossibilitado de fazer macropolítica, o Estado faz "simulacro de política social"

ONGs auxiliam neopopulismo, diz sociólogo

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Não é gratuita a relação entre programas tipo Fome Zero e as ONGs. Para o sociólogo Francisco de Oliveira, as organizações não-governamentais são instrumentos auxiliares de uma nova forma de populismo que ele diz ver surgir -não só no Brasil, mas "em toda a periferia" mundial.
O Estado nacional, afirma o professor emérito da USP, incapacitado de realizar políticas públicas universais -que eram, afinal de contas, uma de suas razões de ser-, passa a ter nos "simulacros de política social" -cartõezinhos a granel- uma de suas principais fontes de legitimação.
"Estados nacionais se legitimam por meio dessas políticas da pobreza. Eles não têm mais poder para fazer a macropolítica, então vão fazendo essas micropolíticas, que chamo de funcionalização da pobreza", afirma. "Essas políticas segmentadas são o conduto de um novo populismo."
"Aí existe um risco de populismo. Que não é aquele dos anos 40 e 50. Aquele populismo se definia pela inclusão da classe trabalhadora na política pela via autoritária. Agora é a exclusão dela da política. É o oposto. Pode não ganhar formas protofascistas, como a literatura dos anos 40 e 50 sugeria, mas é mais manipulável até."
As ONGs são "subsidiárias" desse processo por terem essa capacidade de, para usar um termo caro aos economistas do Ministério da Fazenda, focalização, que os partidos ou o Estado não têm.
Para Oliveira, tanto o neopopulismo quanto o que chama de "onguismo" são o resultado do fim da relação tradicional entre grupos sociais, seus interesses e a política, antes fundamentada no trabalho formal.
O sociólogo afirma que não é possível pensar a política -ao menos não aquela que foi praticada ao longo do século passado- fora dessas relações de interesse -uma classe, um grupo social, que tem interesses específicos e se organiza em um partido político.
Com a dissolução do trabalho formal, enfraquecem as relações de classe e de interesse, e portanto também a política. Cria-se uma "massa de trabalhadores chamados informais" que "não têm enquadramento político e estão à disposição".
"Esse é um problema que está se apresentando em toda a América Latina, em toda a periferia. É um pouco o problema do [Hugo] Chávez", ele diz.
Não se trata, para Oliveira, de dizer que o presidente venezuelano é populista. Ao contrário, as dificuldades de sua gestão estariam exatamente na quase impossibilidade de articular politicamente uma massa empobrecida que se encontra fora das relações formais de trabalho.

Crise da política
Essa crise da política, e mais especificamente dos partidos, foi a princípio uma das causas mesmas do surgimento das ONGs, afirma o sociólogo. "No início elas foram uma forma nova de vocalização de questões que as formas políticas não tinham capacidade de processar -o feminismo, a questão indígena, as etnias minoritárias, o meio ambiente", diz.
Exatamente por causa de seu fundamento nas relações de trabalho, "as formas políticas tradicionais, o partido sobretudo, não tinham capacidade de processar [essas novas questões]". "Eram novidades do ponto de vista social. As ONGs foram o veículo e a voz disso."
Com o que Oliveira considera uma implosão sem volta do trabalho formal, as ONGs mudam de figura. "No passado, elas foram sintoma de algo que a política não sabia processar. Agora são um sintoma de algo que não pode ser processado pela política. A colocação do verbo faz a diferença."


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