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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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ELIO GASPARI

Kissinger reencontrou um passado duro de roer

Uma boa briga na revista "Foreign Affairs", a mais prestigiosa publicação de política externa dos Estados Unidos. De um lado está o ex-conselheiro da Casa Branca e ex-secretário de Estado (1969 a 1977), Henry Kissinger. Do outro, o professor Kenneth Maxwell, chefe do programa latino-americano do Council on Foreign Relations e veterano estudioso do Brasil, onde pesquisou seu livro sobre a Inconfidência Mineira. Maxwell foi o primeiro inquilino do andar de cima americano a dizer à banca que Lula não mordia e podia ser o ótimo negócio que vem sendo.
A encrenca começou no primeiro semestre, quando saiu nos Estados Unidos o livro "The Pinochet File" ("Os Documentos de Pinochet"), do historiador Peter Kornbluh, diretor da ONG The National Security Archive, instituição destinada a caçar documentos nos arquivos oficiais. Desentocou 25 mil papéis chilenos. Foi o NSA quem achou a declaração do presidente Richard Nixon de que a ditadura brasileira ajudou a fraudar a eleição uruguaia de 1971.
Kornbluh pegou pesado em Kissinger. Mostrou documentos (alguns deles conhecidos) indicando o envolvimento da CIA, em 1970, com militares terroristas que planejavam sequestrar o comandante do Exército chileno, René Schneider e acabaram matando-o. Empilhou mais documentos demonstrativos da participação americana no golpe que resultou na morte de Salvador Allende e na notoriedade de um general chamado Augusto Pinochet.
Até aí, tudo bem, mas Kornbluh desencavou nova documentação relacionada com o atentado em que a polícia secreta chilena explodiu o carro do ex-ministro da Defesa de Allende, Orlando Letelier. O assassinato aconteceu em Washington, a 14 quarteirões da Casa Branca. (Foi o atentado de maior impacto ocorrido nos Estados Unidos até o 11 de setembro. Essa é sua urucubaca.)
Kenneth Maxwell resenhou o livro para a "Foreign Affairs" e informou que em agosto de 1976 a equipe de Kissinger no Departamento de Estado sabia do seguinte:
1) Dois agentes da polícia política chilena tentaram entrar nos Estados Unidos e deram meia-volta. (Eles preferiram tomar outro caminho.)
2) No dia 23 de agosto, Kissinger assinou um telegrama às embaixadas americanas na Argentina, Uruguai e Chile para que se buscasse um contato no mais alto nível, "de preferência com o chefe de Estado", informando que os Estados Unidos condenavam o extermínio de dissidentes políticos exilados em terras alheias. (Um dos agentes chilenos chegou a Washington naquele dia. Seu parceiro viria duas semanas depois.)
3) No dia 20 de setembro, o subsecretário para a América Latina, Harry Shlaudeman, mandou um telegrama determinando que as gestões fossem suspensas, pois não haviam aparecido indícios de reativação do "esquema Condor".
Na manhã seguinte, Orlando Letelier dirigia seu Chevelle a 14 quarteirões da Casa Branca. Tinha uma bomba embaixo do carro. Um sinal eletrônico ativou-a. Sem as pernas, Letelier morreu minutos depois. Sua assistente, cidadã americana, teve a carótida cortada por um estilhaço e morreu na calçada.
Numa época em que Kissinger enverniza sua biografia publicando conversas telefônicas de outras crises, a resenha de Maxwell na "Foreign Affairs" enfureceu-o.
Na terça-feira, a nova edição da revista circulará com uma réplica a Maxwell, assinada por William D. Rogers, colaborador de Kissinger à época. Ele sustenta que o secretário de Estado afrontou Pinochet em Santiago, defendendo o respeito aos direitos humanos num de seus discursos. Segundo Rogers o telegrama de recuo, transmitido da Costa Rica para Washington, não foi visto por Kissinger. Ademais, àquela altura, a bomba já estava debaixo do carro de Letelier. Apesar da dureza da resposta, Rogers dedica apenas 18 linhas (em 200) à explosão do exilado (cuja pasta Pinochet costumava carregar quando era um simples general).
Maxwell treplica no mesmo número da revista. Mostra que Kissinger pediu a Pinochet que desconsiderasse sua defesa dos direitos humanos feita para "consumo interno". Pior: valendo-se de novos documentos, encontrados pelo escritor John Dinges, autor de "The Condor Years" ("Os Anos da Condor", um livro extraordinário, sai em fevereiro), o secretário de Estado gozou os diplomatas defensores dos direitos humanos durante uma conversa com um almirante chileno. Disse o seguinte:
"O Departamento de Estado está cheio de gente com vocação para padre. Como não há igrejas suficientes, viram diplomatas".
Para uma pessoa que ganhou o Prêmio Nobel da Paz (pela negociação do fim da Guerra do Vietnã), Kissinger caiu numa triste discussão de um pedaço passado. Um tempo em que ele e seus amigos eram tão fortes que se julgaram invulneráveis.

Prioridade

Lula não foi à Arábia Saudita porque tinha menos de dez horas disponíveis em sua agenda. A Casa de Saud disse-lhe que, nesse caso, teria muito prazer em hospedá-lo em outra oportunidade.
Lula teve agenda folgada para a União dos Emirados. É mais ou menos a mesma coisa que convidar a Portela e embarcar com os Gaviões da Fiel.

A lição de decência do senador Peres

O decoro parlamentar ficou devendo mais uma ao senador Jefferson Peres. Ele impediu que um conluio da bancada do governo com as do PSDB e do PFL atropelasse o regimento para votar a reforma da Previdência a toque de caixa.
O regimento determina que as emendas constitucionais tramitem em dois turnos. No primeiro, o projeto deve ser discutido e votado em cinco sessões deliberativas. No segundo, são três sessões.
Esse ritual está no regimento para dar às emendas constitucionais a importância que elas merecem. A Constituição não deve ser tratada como um programa partidário, que se altera ao sabor das pesquisas eleitorais. O ritual busca preservar a dignidade da função parlamentar. Em tese, os prazos destinam-se a dar tempo aos senadores para refletir e, se for o caso, ouvir os interesses que representam.
PT, PSDB e PFL estavam prontos para atropelar o regimento do Senado quando o senador Peres, líder do PDT, recusou-se a endossar o acordo. Liquidou-o.
Em vez de passar o rolo compressor em cima do regimento, a coligação reformista decidiu realizar sessões deliberativas durante o fim de semana. Podiam ter pensado nisso antes, mas, de maneira geral, em Brasília, acredita-se que uma emenda constitucional não vale um fim de semana.

Socorro

O presidente do BNDES, Carlos Lessa, precisa de ajuda. Querem empurrar goela abaixo do banco um contrato para a construção de quatro petroleiros, sem que o empreiteiro dê as garantias necessárias. Coisa de US$ 250 milhões.
A disputa das garantias, liderada pelo velho e bom BNDES, vai completar dois anos. Lessa tem todo o direito de não botar na sua biografia um empréstimo parecido com o que a Eletropaulo fez com os tucanos.

ENTREVISTA

Lauro Vieira de Faria

(47 anos, economista)

O que se poderia fazer, desde já, para que o debate da economia brasileira não acabe de novo num exercício de quiromancia em torno das previsões para o crescimento do PIB? Em vez de se discutir o desempenho da economia, discute-se as divergências entre os astrólogos.
Estamos com excesso de previsores e escassez de revisores. A primeira coisa a fazer seria cobrar, a cada fim de ano, as previsões anunciadas no Natal anterior. O cidadão anunciou que 2003 teria um crescimento de 2,8%. Estamos em dezembro e ele aparece com zero, sem maiores explicações. Deveria explicar o que aconteceu. É mais importante cobrar a previsão vencida do que assistir a discussões em torno dos 0,8% de um ministério contra os 0,4% de outro. Isso não tem sentido. A margem de erro em qualquer previsão do PIB está em torno de 1%. Em 1980 estimou-se um crescimento de 8%. Depois de diversas revisões, a taxa ficou em 9,2%. Ou seja, a diferença de 1980 será maior que todo o crescimento de 2003. Nos Estados Unidos são comuns as revisões das estimativas trimestrais em até 1%. A base para as previsões do PIB inclui números que são obtidos por amostragem e outros que são simples extrapolações. O cálculo é impreciso pela própria vastidão do propósito.
O que poderá acontecer em 2004?
Estamos entrando no novo ano com uma previsão de 3,5% ou 4%. Faz mais de 20 anos que na altura do Natal aparecem números reconfortantes. Na década de 80, as previsões de janeiro ficavam em torno dos 7%. Nos anos 90 baixamos para 4,5% e agora estamos em torno dos 3,5%. Os governos têm uma tendência natural para anunciar que o novo ano será melhor. Além disso, é pressionado pelos previsores do mercado. Se um ministro dissesse, em janeiro passado, que o crescimento de 2003 não chegaria a 1%, seria crucificado. Quando o governo faz o que o mercado pede, sobretudo o que o setor financeiro quer, esse mesmo mercado mostra-se otimista. Ele pode ser verdadeiramente otimista, mas sua felicidade não vem do temperamento. Vem do que o governo está fazendo em seu benefício. Veja o que acontece quando o governo não faz o que o mercado quer: em 1998 o governo da Malásia enfrentou a crise asiática com controles de câmbio e de capitais. Foi considerado uma heresia. O mercado garantiu que a Malásia ia quebrar. Passou o tempo e ela conseguiu um desempenho até superior ao dos velhos tigres que fizeram o que mandava o mercado. Os previsores da quebra da Malásia ainda não deram explicações convincentes para a sua flagrante falta de previsão.
O que um leitor deve fazer para não ser envenenado pelos previsores?
Ele deve fazer uma conta. Nos últimos 20 anos o Brasil cresceu a taxas médias de 2,5% ao ano. Se ele acha que o governo quer fazer a felicidade geral da nação expandindo seus gastos e baixando os juros, pode subir a taxa para 4%. Se acha que os juros vão continuar altos e o governo persistirá no aperto fiscal, baixe para 1%. Com esse tipo de estimativa, que deve ser revista à vontade, o leitor fica dispensado de perder tempo lendo previsões.


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