São Paulo, quinta-feira, 08 de março de 2001

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ARTIGO

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RENATO MEZAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Morreu o governador de São Paulo. Ao lado das cerimônias próprias às circunstâncias do gênero -luto oficial, cortejos solenes, velório visitado por inúmeras autoridades e personalidades- assistimos a um fenômeno de outra ordem: uma genuína comoção popular. Cidadãos comuns deslocaram-se para se despedir de Mário Covas, trazendo-lhe uma homenagem que talvez não lhe tivessem prestado em vida -na sua posse no cargo, por exemplo, não vimos nada parecido. A televisão e o rádio mostraram pessoas que choravam ou acenavam e colheram suas declarações. Elas não eram, em geral, exageradas: não houve cenas patéticas. Havia tristeza, mas sobretudo respeito e carinho.
Vêm-me à lembrança imagens de outros funerais impressionantes: Getúlio Vargas, Carmen Miranda, Tancredo Neves, Ayrton Senna... São em primeiro lugar figuras públicas, e sua morte também teve um aspecto público. No caso de dirigentes no exercício do cargo, isto não pode ser esquecido: a liturgia do poder exige pompa, solenidade, e quem faleceu foi o governador de um importante Estado brasileiro, cuja doença esteve na mídia durante bastante tempo. Mas só isso não basta para explicar o genuíno pesar de pessoas comuns, distantes da esfera política exceto nos dias de eleição.
Creio que foi ao homem Covas, e não ao político, que se dirigiu esse pesar. O brasileiro é emotivo e não tem vergonha de expressar seus sentimentos, especialmente em ocasiões nas quais é solicitada a sua compaixão ou a sua solidariedade. Muito se escreveu sobre o perfil político de Covas, e nesses textos a tônica foi ressaltar suas qualidades pessoais: integridade, firmeza, desassombro, coerência. Além desses elementos de caráter, jornalistas e políticos destacaram o lado afetivo do personagem -sua teimosia, o estilo mal-humorado, o pavio às vezes curto... O lado "humano", enfim, "apaixonado", que convivia com as qualidades de ponderação, cálculo estratégico e sentido do "timing", essenciais para uma carreira política bem sucedida.
Estamos portanto falando de sentimentos e de emoções, dos dois lados do cenário: no homem e no público. Mas foram sobretudo a dignidade e a sinceridade com que Covas lutou contra a doença que puderam mobilizar a reação observada entre os paulistas. À natural compaixão pelo sofrimento do outro -aqui facilitada pela ampla cobertura dada ao calvário que ele suportou- soma-se uma forte impressão de heroísmo e de serenidade frente ao inevitável, intercalada por momentos de grande intensidade emocional, como aquele em que, falando da sua cirurgia, o governador não se conteve e revelou que sentira dor e medo, como qualquer pessoa sentiria na mesma situação.
O homem comum pôde assim experimentar sentimentos que se potencializaram mutuamente: frente a alguém que encarnava uma figura paterna e protetora, respeito e admiração; frente ao mesmo indivíduo, porém sob o aspecto fragilizado em consequência do câncer, empatia e solidariedade. Covas era ao mesmo tempo "como eu" e "mais do que eu": identificação e idealização, portanto, soldaram-se como duas faces de uma mesma moeda. Acrescente-se a isso a imagem de honestidade no trato da coisa pública, que, traduzida na linguagem comum, pode se chamar simplesmente decência -virtude rara entre nossos políticos-, e teremos os ingredientes que, a meu ver, produziram o efeito de que falamos.
Uma última observação: Covas não era uma figura capaz de incendiar a imaginação do povo, como Getúlio -o mártir-, Carmen -a menina pobre e lutadora que venceu no estrangeiro- ou Ayrton Senna -o super-homem que pilotava máquinas quase supersônicas. Foi um homem extraordinário, sem dúvida, mas de uma espécie que parece ao alcance de uma pessoa comum: as qualidades que possuía eram as mesmas que gostaríamos de ter, e que muitos de nós de fato têm. O que o singularizou nos últimos tempos de sua vida foi a coragem de viver um cotidiano de dor, que o impediu de realizar seus últimos sonhos -e por isso granjeou o respeito e o carinho de tantos cidadãos anônimos.


Renato Mezan é psicanalista, coordenador da revista "Percurso" (Instituto Sedes Sapientiae), professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autor, entre outros, de "Freud -Pensador da Cultura" (Brasiliense).



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