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ARTIGO
#PREENCHA O TITULO AQUI#
RENATO MEZAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Morreu o governador de São
Paulo. Ao lado das cerimônias
próprias às circunstâncias do gênero -luto oficial, cortejos solenes, velório visitado por inúmeras autoridades e personalidades- assistimos a um fenômeno
de outra ordem: uma genuína comoção popular. Cidadãos comuns deslocaram-se para se despedir de Mário Covas, trazendo-lhe uma homenagem que talvez
não lhe tivessem prestado em vida -na sua posse no cargo, por
exemplo, não vimos nada parecido. A televisão e o rádio mostraram pessoas que choravam ou
acenavam e colheram suas declarações. Elas não eram, em geral,
exageradas: não houve cenas patéticas. Havia tristeza, mas sobretudo respeito e carinho.
Vêm-me à lembrança imagens
de outros funerais impressionantes: Getúlio Vargas, Carmen Miranda, Tancredo Neves, Ayrton
Senna... São em primeiro lugar figuras públicas, e sua morte também teve um aspecto público. No
caso de dirigentes no exercício do
cargo, isto não pode ser esquecido: a liturgia do poder exige
pompa, solenidade, e quem faleceu foi o governador de um importante Estado brasileiro, cuja
doença esteve na mídia durante
bastante tempo. Mas só isso não
basta para explicar o genuíno pesar de pessoas comuns, distantes
da esfera política exceto nos dias
de eleição.
Creio que foi ao homem Covas,
e não ao político, que se dirigiu
esse pesar. O brasileiro é emotivo
e não tem vergonha de expressar
seus sentimentos, especialmente
em ocasiões nas quais é solicitada
a sua compaixão ou a sua solidariedade. Muito se escreveu sobre
o perfil político de Covas, e nesses
textos a tônica foi ressaltar suas
qualidades pessoais: integridade,
firmeza, desassombro, coerência.
Além desses elementos de caráter, jornalistas e políticos destacaram o lado afetivo do personagem -sua teimosia, o estilo mal-humorado, o pavio às vezes curto... O lado "humano", enfim,
"apaixonado", que convivia com
as qualidades de ponderação, cálculo estratégico e sentido do "timing", essenciais para uma carreira política bem sucedida.
Estamos portanto falando de
sentimentos e de emoções, dos
dois lados do cenário: no homem
e no público. Mas foram sobretudo a dignidade e a sinceridade
com que Covas lutou contra a
doença que puderam mobilizar a
reação observada entre os paulistas. À natural compaixão pelo sofrimento do outro -aqui facilitada pela ampla cobertura dada
ao calvário que ele suportou-
soma-se uma forte impressão de
heroísmo e de serenidade frente
ao inevitável, intercalada por momentos de grande intensidade
emocional, como aquele em que,
falando da sua cirurgia, o governador não se conteve e revelou
que sentira dor e medo, como
qualquer pessoa sentiria na mesma situação.
O homem comum pôde assim
experimentar sentimentos que se
potencializaram mutuamente:
frente a alguém que encarnava
uma figura paterna e protetora,
respeito e admiração; frente ao
mesmo indivíduo, porém sob o
aspecto fragilizado em consequência do câncer, empatia e solidariedade. Covas era ao mesmo
tempo "como eu" e "mais do que
eu": identificação e idealização,
portanto, soldaram-se como
duas faces de uma mesma moeda. Acrescente-se a isso a imagem
de honestidade no trato da coisa
pública, que, traduzida na linguagem comum, pode se chamar
simplesmente decência -virtude rara entre nossos políticos-,
e teremos os ingredientes que, a
meu ver, produziram o efeito de
que falamos.
Uma última observação: Covas
não era uma figura capaz de incendiar a imaginação do povo,
como Getúlio -o mártir-, Carmen -a menina pobre e lutadora que venceu no estrangeiro-
ou Ayrton Senna -o super-homem que pilotava máquinas
quase supersônicas. Foi um homem extraordinário, sem dúvida, mas de uma espécie que parece ao alcance de uma pessoa comum: as qualidades que possuía
eram as mesmas que gostaríamos de ter, e que muitos de nós
de fato têm. O que o singularizou
nos últimos tempos de sua vida
foi a coragem de viver um cotidiano de dor, que o impediu de
realizar seus últimos sonhos -e
por isso granjeou o respeito e o
carinho de tantos cidadãos anônimos.
Renato Mezan é psicanalista, coordenador da revista "Percurso" (Instituto
Sedes Sapientiae), professor titular da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo e autor, entre outros, de "Freud
-Pensador da Cultura" (Brasiliense).
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