São Paulo, domingo, 08 de maio de 2005

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JANIO DE FREITAS

Brasil abaixo

A degringolada só não é geral, nas chamadas altas instâncias, porque alguns setores são pouco visíveis ou mesmo invisíveis à opinião pública. Fica a impressão, muito útil para evitar que o desânimo e reações piores se alastrem, de que as práticas condenáveis pelo senso comum têm minado apenas atividades públicas bem delimitadas -polícia, fiscalizações diversas, compras e concorrências oficiais e, para não faltar com a moda, o tal "baixo clero" que infesta Congresso, assembléias estaduais e câmaras municipais.
O governo está sob uma sucessão humilhante de derrotas parlamentares. A adaga já se virou para a cabeça do ministro de Coordenação Política, Aldo Rebelo, porque é do uso pegar alguém para pagar publicamente. Mas, entre a falta de comando de um presidente dedicado a eventos eleitoreiros, de preferência com bonezinhos, e a inesgotável incompetência política do governo, são muitas as causas das derrotas que o aturdem. Qual, então, a primeira iniciativa afinal adotada?
Os planaltinos organizaram um café da manhã oferecido por Lula a Severino Cavalcanti. Na mesa, muito mais do que os sabores nordestinos, estavam cargos da administração pública. Os bijus eram de graça, os cargos eram para compra e venda. A isso, nos últimos anos, o jornalismo político brasileiro chama de negociação política, articulação, composição da "base", como se houvesse alguma idéia, um projeto de governo, algum propósito de interesse público justificador de entendimentos. Como não há, o adotado é evitar as denominações de imoralidade, de corrupção política, de improbidade pessoal e partidária. Mudanças os nomes para proteger a mudança condenável das práticas.
Manchete de um dos nossos bravos jornais: "Lula cobra agilidade na liberação de verbas". Recebera um aborrecido Gilberto Gil, cujo ministério está no terceiro ano de pão e água, e determinara uma reunião especial na equipe econômica para "discutir a liberação das verbas". Nada mais do que o invariável jogo de cena para desviar a opinião pública. A política econômica do governo Lula consiste disso mesmo: juros e corte de verbas do Orçamento aprovado pelo Congresso. Reclamar, como fez Gil, seria próprio da opinião pública, se visse prontamente desnudados os truques que lhe tapam olhos e ouvidos. Uma espécie de censura que não leva esse nome.
Na sua primeira entrevista coletiva para brasileiros, semana passada, Lula dava como um dos "três erros" do seu governo "as obras das rodovias que queria fazer, mas não pude fazer". Queria? Há rodovias importantes se desfazendo em buracos, acidentes com vítimas ou com prejuízos materiais multiplicam-se, o transporte rodoviário encarece. Pois bem, o Lula que "não pode fazer nas rodovias as obras que queria" não as fez nem faz porque, do R$ 1,1 bilhão para tal fim deixado ao Ministério dos Transportes (depois do corte grosso), até o final do mês passado a equipe econômica só liberou 0,5%. Por extenso: metade de um por cento, arredondando-se por gentileza.
Severino Cavalcanti, o inevitável, recebeu ontem obuses merecidos pela designação de um deputado favorecido pelo emprego de parentes na Câmara -deputado Manato, só isso mesmo, não precisaria de mais- para presidir a comissão que examinará "o problema do nepotismo". No Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes foi designado relator da medida provisória que deu a Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, a condição de ministro, com o direito de foro privilegiado. Gilmar Mendes foi beneficiado por idêntica providência de Fernando Henrique, quando ocupava a Advocacia Geral da União. Alguma dúvida sobre o sentido do parecer que deu, sobre a constitucionalidade, ou não, da MP beneficiadora de Henrique Meirelles, a quem a Procuradoria Geral da República suspeita de sonegação fiscal e remessa ilegal de dinheiro?
É claro que o privilégio foi confirmado pelo plenário do STF, com os votos da apelidada "bancada governista" (Nelson Jobim, Ellen Northfleet, Cesar Peluso, Joaquim Barbosa e Eros Grau), mais o inesperado apoio de Celso de Mello, contra os votos de Carlos Velloso, Carlos Ayres Britto, Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio Mello. O Brasil tem agora, portanto, mais uma originalidade: um ministro (do Banco Central) que é subordinado a outro ministro de idêntico status (o da Fazenda). A associação de Planalto e STF inventou a hierarquia dos iguais.
Um dos argumentos do relator Gilmar Mendes foi de que o foro especial estava concedido, pela MP, ao cargo e não à pessoa. Ora, foi assim porque só poderia ser assim, não havendo como conceder o privilégio nominal a Henrique Meirelles. No caso, o privilégio foi dado ao cargo para ser à pessoa, posta sob pedido de investigação, com indícios fortes. Daí o uso de medida provisória, com seu efeito urgente, e não o normal projeto de lei. Mas, convenhamos, a designação do relator, a sua não-declaração de incompatibilidade para a tarefa, o teor de seu relatório e a decisão dada pela maioria do Supremo Tribunal Federal cabem muito bem na atualidade brasileira. Ou cabem muito bem na modernidade brasileira, para dessa forma homenagear o também adequado Fernando Henrique Cardoso, que atrasou o país com os mais altos juros e agora critica, sem o menor constrangimento de pudor, os juros menos altos do seu sucedâneo.


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