São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2000

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NO PLANALTO

Assentados expõem tudo o que o MST deseja esconder

JOSIAS DE SOUZA

DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

É com imenso pesar que aqui se constata: o MST virou caso de polícia. O Ministério Público receberá nos próximos dias uma papelada que expõe as vísceras do movimento. O que se vê nos papéis é a imagem de um organismo em decomposição.
A radiografia das entranhas do MST foi obtida a partir do depoimento de centenas de pessoas insuspeitas. São trabalhadores humildes, assentados em diferentes regiões do país. Gente que deve à ação de líderes como João Pedro Stedile o acesso à terra.
Ouvidos, os assentados trazem à tona o retrato de um MST que o MST tenta esconder da sociedade. Um movimento que vai buscar nas fronteiras da marginalidade o dinheiro que o mantém de pé.
A documentação contém, por exemplo, o testemunho de José Devanzir Ribeiro, integrante do assentamento 12 de Abril, no município de Birutuna (PR). Ele conta que era um dos líderes naquela área. Foi destituído porque ousou discordar de uma norma do MST: a cobrança de pedágio de 3% sobre o dinheiro que o governo libera para o cultivo da terra.
Segundo Devanzir Ribeiro, o pedágio serve para "custear viagens e invasões de prédios públicos". Além de achacar os assentados, o MST obriga-os a fazer compras em empresas previamente selecionadas.
"Os comerciantes, principalmente de alimentação, ferramentas e maquinário, também foram pressionados a aceitar o esquema do movimento, sob pena de não poder vender para os assentados", revela Devanzir Ribeiro. "A diferença de preços entre os produtos e o verdadeiro preço pago era muito grande, talvez até superando os 3%, podendo chegar a 20% (...)."
Garimpando-se no monte de papéis chega-se a outra preciosidade: declarações assinadas por 18 assentados do interior da Bahia. Diz uma delas: "Eu, José Soares de Oliveira, brasileiro, casado, trabalhador rural, beneficiário do projeto de assentamento Lagoa Caldeirão (...), declaro para os fins de direito que o MST (...) cobra de cada beneficiário deste projeto os percentuais de 2%, 3% e 5% de qualquer recurso do Incra (...) Esses percentuais são cobrados na boca do caixa (...), sendo que aqueles que não pagarem terão seus recursos bloqueados. Declaro ainda que estou à disposição de qualquer instituição para os esclarecimentos que se fizerem necessários".
As declarações foram redigidas por um funcionário do Incra, a pedido dos assentados. Todas têm o mesmo teor. Trocam-se apenas os nomes dos signatários e dos assentamentos a que pertencem. Ouvidos, todos confirmaram a autenticidade de suas assinaturas.
Colheu-se também, em Mato Grosso do Sul, o depoimento de Edivaldo Gomes Carneiro. Ele disse ter pedido, junto com outros 45 assentados, o desligamento do MST. Discordaram da cobrança do pedágio de 3%. Contatados, 15 assentados exibiram notas e recibos que comprovam o recolhimento da comissão, feito inclusive dentro de uma agência do Banco do Brasil, numa "mesa arrecadadora".
O Incra decidiu sair a campo depois que a Folha publicou, em 14 de maio, reportagem em que revelava a engrenagem montada pelo MST no Paraná, para arrancar dinheiro dos assentados.
A malha de captação do movimento se servia de pessoas remuneradas pelo próprio governo. Ou, se preferir, pelo contribuinte. Eram agrônomos e especialistas de um projeto chamado Lumiar. Deveriam levar orientação técnica aos assentados. Mas, indicados pelo próprio MST, converteram-se em agentes do movimento, cujas ordens eram compelidos a seguir.
Em sindicâncias abertas em todo o país, o Incra foi tirar a prova dos nove. Descobriu que o esquema paranaense se reproduz, debaixo do seu nariz, em praticamente todas as regiões. Os documentos anotam nome e sobrenome dos técnicos envolvidos.
O pessoal do Lumiar tem enorme poder dentro dos assentamentos. Eles são o elo entre o assentado e o dinheiro no banco. Elaboram projetos e atestam o cumprimento dos planos aprovados pelo Incra. Assinam notas, faturas e laudos. Sem as suas rubricas, o banco não libera a verba dos assentados.
Ouça-se o que diz Edvaldo Jacinto dos Santos, ex-agente do Lumiar no município de Itaquiraí (MS): "(...) A coordenação do MST ordenava ao técnico que não emitisse os laudos que possibilitavam ao assentado receber seus créditos no caso de o assentado não concordar em pagar a taxa de 3% (...) Sabia que, se não seguisse a determinação da coordenação em relação ao laudo, perderia o emprego".
Em Bituruna (PR), dois técnicos do Lumiar chegavam mesmo a coletar o dinheiro junto aos assentados. Chamam-se Antônio Carlos Halinski e Cláudia Cisoto. Eles também indicavam as empresas nas quais os assentados deveriam fazer as suas compras. Depois, recolhiam contribuições dos proprietários dos estabelecimentos.
Halinski negou-se a depor na sindicância. Cisoto, porém, falou. Disse que a contribuição era voluntária. Dezenas de assentados a desmentem. Reconheceu que parte do dinheiro foi parar em sua conta bancária, tendo sido repassado ao movimento.
Funcionários do Incra visitaram as empresas que, a mando do MST, os técnicos indicaram aos assentados. No endereço da F.S. Engel & Cia Ltda (Rua Alceu Moreschi, 281 - Quississana, São José dos Pinhais - PR), não havia uma casa comercial. Encontraram-se duas residências. Numa delas, mora Josemar, que se apresentou como cunhado de um dos supostos sócios da firma, Fernando Soares Engel.
Vários assentados afirmam ter realizado compras junto a um representante da F.S. Engel. Vistadas pelos técnicos do Lumiar, as notas foram pagas pelo Banco do Brasil. Mas os equipamentos não foram entregues.
O assentado Abel Marcos de Mota disse ter adquirido da F.S. Engel um alambique e uma carroça. Desembolsou R$ 2.480. Não recebeu a mercadoria. Evaldo de Andrade Teixeira comprou e pagou uma carroça. Também não recebeu. Casos idênticos saltam da sindicância como pulgas de cachorro sardento.
Há pior. Como o caso de Noeli Aparecida de Ramos, também de Bituruna (PR). De acordo com a nota número 12.081, da empresa Clagil, Aparecida comprou 19 chapas do tipo Eternit. A nota traz a assinatura da assentada. Uma assinatura que ela jura ser falsa. Ou seja, alguém comprou em seu nome um material de que não precisava e jamais recebeu. Vistada, a nota foi paga pelo Banco do Brasil.
Os técnicos do Lumiar são, em sua maioria, vinculados a cooperativas. Essas, por sua vez, são ligadas a movimentos sociais. A sindicância do Incra não se ateve apenas aos casos em que as cooperativas são atreladas ao MST. Mas só nestes encontrou a prática da cobrança do pedágio.
O valor do pedágio é variável. O mais comum é o confisco de 3%. Em Santa Catarina, porém, cobra-se 4%. No Espírito Santo, a taxa oscila de 3% a 10%. Em Rondônia, de 2% a 11%.
No Maranhão, obteve-se uma evidência documental da promiscuidade que liga o MST à contabilidade dos assentamentos. A Associação dos Produtores Rurais da Agrovila Sudelândia coletou dinheiro junto aos assentados e repassou ao MST, em 1998, R$ 7.619,10. A contribuição encontra-se materializada no cheque número 949.080, do Banco do Brasil, agência de Açailândia (MA).
Em São Paulo, a sindicância ainda não foi concluída. Em outros Estados, tais como Rio Grande do Sul, Amapá e Tocantins, não se apurou nenhum desvio. Não se sabe se por ineficiência de quem apurou ou se porque de fato não existem.
A sindicância mais robusta é a do Paraná. Foram intimadas a depor 111 pessoas. O relatório final anota conclusões duras. Por exemplo: "(...) integrantes (alguns líderes) do MST utilizam-se de cooperativas aparentemente constituídas dentro da legalidade para ocultar seus verdadeiros propósitos, quais sejam, manter o controle sobre os trabalhadores assentados (portanto não mais sem-terra), para poder extrair destes o numerário, os recursos, o dinheiro que precisam (vindos tanto do suor laboral dos rurículas - já sofridos e miseráveis historicamente-, quanto dos recursos públicos disponibilizados pela sociedade, representada pelo governo federal ...)". O documento sustenta que a ação do MST é tipificável no Código Penal.
Como se vê, é cada vez mais forte o cheiro de peixe podre que exala dos porões do MST. É espantoso que nenhum de seus líderes, sempre tão loquazes, se disponha a vir a público para dizer meia dúzia de palavras sobre o tema. Espanta também que o Ministério Público, sempre célere, ainda não tenha arregaçado as mangas para apurar fatos já trazidos a público.
O que está em jogo é o futuro de gente humilde. Alguns, de primeiras letras, são quase indefesos. Mexe-se também com dinheiro público. Isso ainda acaba em CPI.


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