São Paulo, segunda-feira, 09 de fevereiro de 2004

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RECREIO MAGRO

Impropriedades em 45% das licitações ou no pagamento de compras deixam crianças até 20 dias sem refeições

Merenda vira prato cheio para corrupção

FABIO SCHIVARTCHE
do Painel

Em seu primeiro ano de governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não zerou a fome de 36 milhões de alunos das escolas públicas brasileiras. Pelo menos não na hora da merenda. Uma análise de relatórios feitos em 2003 por órgãos federais de fiscalização revela, na véspera da volta às aulas na rede pública de ensino, uma fotografia de corrupção que esvazia os cofres da União e, em última instância, o prato da garotada.
Um balanço preliminar da CGU (Controladoria Geral da União), obtido com exclusividade pela Folha, de auditorias feitas em 350 municípios de pequeno e médio porte (até 300 mil habitantes) mostra que houve impropriedades em 45% das licitações ou dos pagamentos para a compra de merenda escolar. Já fiscalização feita no primeiro semestre de 2003 pelo TCU (Tribunal de Contas da União) chegou a um número ainda pior: 54 dos 67 municípios visitados (80%) tiveram problemas nos processos licitatórios para a compra desses alimentos.
As irregularidades constatadas produziram os seguintes resultados: 1) em 40% das escolas do país faltou merenda em pelo menos dez dias do ano passado ou por mais de dois dias consecutivos; 2) em 10% dos municípios analisados faltou comida em algumas escolas por mais de 20 dias -sendo que quase a metade dessas cidades está nos Estados brasileiros com menor IDH (índice que mede o desenvolvimento de uma região com base na expectativa de vida, no nível educacional e na renda per capita).

Conselhos
São problemas que não surgiram na gestão Lula, mas que também não motivaram programas específicos nem a mesma atenção das atividades do Fome Zero. O governo diz que vai intensificar as ações de fiscalização para evitar novos casos de fraude e melhorar a atuação dos conselhos por meio de seminários de instrução (leia texto nesta página).
O grosso do dinheiro da merenda vem dos cofres da União. Será R$ 1 bilhão neste ano de repasse a Estados e municípios, o que dá de R$ 0,13 a R$ 0,18 por dia por aluno, dependendo da faixa etária. É pouco, mas é o possível no momento, justifica o governo. Para comparar: um pãozinho de padaria custa pelo menos R$ 0,15. A situação é ainda pior num país onde a merenda escolar é, em alguns casos, a principal ou a única refeição do dia.
Prefeitos e governadores, que têm a responsabilidade de completar a verba da União, raramente o fazem. E os Conselhos de Alimentação Escolar (com representantes da prefeitura, do Legislativo, dos professores, da sociedade civil e dos pais de alunos), que deveriam fiscalizar os gastos, são ineficientes -acompanham menos da metade das licitações para a compra de alimentos.

Controle ineficiente
O atual controle "é incapaz de assegurar a correta execução do programa", diz relatório do TCU. Quanto mais pobre e dependente dos recursos federais é o município, menos atuantes são os conselhos que fiscalizam a aplicação do dinheiro. É da sua ausência e da inação do governo federal que prefeitos corruptos se aproveitam, com a emissão de notas falsas e favorecimento a amigos.
As auditorias da CGU estão repletas de casos, muitos ainda sendo questionados na Justiça. Em Rio Preto (MG), o pagamento da licitação foi liberado pela prefeitura antes mesmo da abertura das propostas. Em Buruti (AM) e em Milagre do Maranhão (MA) houve favorecimento da empresa vencedora. Em Estância (ES), os preços praticados foram até 230% maiores que o valor de referência.
Em Eldorado dos Carajás, no sul do Pará, cidade mais conhecida pelo massacre de 19 sem-terra em 1996, os técnicos encontraram uma situação alarmante. Segundo eles, as licitações foram falsificadas e os itens comprados para a merenda não correspondem à quantidade especificada nas notas fiscais. Há uma diferença de R$ 28 mil. Suspeita-se da emissão de notas frias.
Suspeitas também pairam em capitais e cidades de grande porte. Em Fortaleza, o prefeito Juraci Magalhães (PMDB) é acusado de desvio de R$ 1,8 milhão. Em São Carlos (SP), inquérito apura um rombo de R$ 4 milhões em licitação fraudulenta que teria contratado empresas fantasmas, diz a procuradora da República Ana Carolina Nascimento.
As prefeituras suspeitas de fraudes e desvios negam as acusações (leia texto nesta página).
Técnicos da controladoria estimam que cerca de 40% das denúncias recebidas no órgão são referentes a desvios no programa de merenda escolar. "Quando há programas com grande descentralização, como é o caso da merenda escolar, o controle do Estado será sempre insuficiente se a população não ajudar na fiscalização", diz Leice Maria Garcia, coordenadora-geral de auditoria na área de educação da CGU.


Pais improvisam
Frente ao escasso dinheiro que sobra para a merenda, pais de alunos muitas vezes têm de improvisar. É o que acontece em Bocaiúva do Sul (PR), a meia hora de Curitiba, vilarejo rural mais conhecido pelo polêmico prefeito Élcio Berti (PFL), que tentou expulsar da cidade os moradores homossexuais. Em 2003, parte do total de 1.200 alunos ficou por mais de 20 dias sem merenda. A situação só melhorou quando familiares passaram a fazer doações.
"Sempre que posso, colaboro", diz José Xavier da Silva, avô de Vanessa Silva, de 6 anos, que está na pré-escola e, vez por outra, leva alface, couve, tomate e repolho para as merendeiras da escola Cantinho do Céu. Um em cada dez alunos traz mantimentos de casa, diz a diretora Maria Cecília Mariano. "Treze centavos por aluno não dá para nada. Se não fosse a ajuda dos alunos, as crianças iriam passar fome", diz.
Prefeituras administradas pelo PT também sofrem com a falta de merenda. No outro extremo do país, em Assis Brasil (AC), na fronteira do Brasil com a Bolívia e o Peru, os alunos não têm muito a comemorar na volta às aulas. Lá, a falta de merenda é uma constante. Só que a secretária de Educação, Maria Eliane Gadelha, não teve a mesma sorte de sua colega paranaense de Bocaiúva do Sul. "Estamos procurando doadores, mas até agora, nada", lamenta ela, responsável por 500 alunos da rede municipal. Corrupção, ao menos, não é problema no município. "O dinheiro que recebemos do governo é tão pouco que nem tem como desviar", ironiza.


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