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RECREIO MAGRO
Impropriedades em 45% das licitações ou no pagamento de compras deixam crianças até 20 dias sem refeições
Merenda vira prato cheio para corrupção
FABIO SCHIVARTCHE
do Painel
Em seu primeiro ano de governo, o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva não zerou a fome de 36
milhões de alunos das escolas públicas brasileiras. Pelo menos não
na hora da merenda. Uma análise
de relatórios feitos em 2003 por
órgãos federais de fiscalização revela, na véspera da volta às aulas
na rede pública de ensino, uma
fotografia de corrupção que esvazia os cofres da União e, em última instância, o prato da garotada.
Um balanço preliminar da CGU
(Controladoria Geral da União),
obtido com exclusividade pela
Folha, de auditorias feitas em 350
municípios de pequeno e médio
porte (até 300 mil habitantes)
mostra que houve impropriedades em 45% das licitações ou dos
pagamentos para a compra de
merenda escolar. Já fiscalização
feita no primeiro semestre de
2003 pelo TCU (Tribunal de Contas da União) chegou a um número ainda pior: 54 dos 67 municípios visitados (80%) tiveram problemas nos processos licitatórios
para a compra desses alimentos.
As irregularidades constatadas
produziram os seguintes resultados: 1) em 40% das escolas do país
faltou merenda em pelo menos
dez dias do ano passado ou por
mais de dois dias consecutivos; 2)
em 10% dos municípios analisados faltou comida em algumas escolas por mais de 20 dias -sendo
que quase a metade dessas cidades está nos Estados brasileiros
com menor IDH (índice que mede o desenvolvimento de uma região com base na expectativa de
vida, no nível educacional e na
renda per capita).
Conselhos
São problemas que não surgiram na gestão Lula, mas que também não motivaram programas
específicos nem a mesma atenção
das atividades do Fome Zero. O
governo diz que vai intensificar as
ações de fiscalização para evitar
novos casos de fraude e melhorar
a atuação dos conselhos por meio
de seminários de instrução (leia
texto nesta página).
O grosso do dinheiro da merenda vem dos cofres da União. Será
R$ 1 bilhão neste ano de repasse a
Estados e municípios, o que dá de
R$ 0,13 a R$ 0,18 por dia por aluno, dependendo da faixa etária. É
pouco, mas é o possível no momento, justifica o governo. Para
comparar: um pãozinho de padaria custa pelo menos R$ 0,15. A situação é ainda pior num país onde a merenda escolar é, em alguns
casos, a principal ou a única refeição do dia.
Prefeitos e governadores, que
têm a responsabilidade de completar a verba da União, raramente o fazem. E os Conselhos de Alimentação Escolar (com representantes da prefeitura, do Legislativo, dos professores, da sociedade
civil e dos pais de alunos), que deveriam fiscalizar os gastos, são
ineficientes -acompanham menos da metade das licitações para
a compra de alimentos.
Controle ineficiente
O atual controle "é incapaz de
assegurar a correta execução do
programa", diz relatório do TCU.
Quanto mais pobre e dependente
dos recursos federais é o município, menos atuantes são os conselhos que fiscalizam a aplicação do
dinheiro. É da sua ausência e da
inação do governo federal que
prefeitos corruptos se aproveitam, com a emissão de notas falsas e favorecimento a amigos.
As auditorias da CGU estão repletas de casos, muitos ainda sendo questionados na Justiça. Em
Rio Preto (MG), o pagamento da
licitação foi liberado pela prefeitura antes mesmo da abertura das
propostas. Em Buruti (AM) e em
Milagre do Maranhão (MA) houve favorecimento da empresa
vencedora. Em Estância (ES), os
preços praticados foram até 230%
maiores que o valor de referência.
Em Eldorado dos Carajás, no
sul do Pará, cidade mais conhecida pelo massacre de 19 sem-terra
em 1996, os técnicos encontraram
uma situação alarmante. Segundo
eles, as licitações foram falsificadas e os itens comprados para a
merenda não correspondem à
quantidade especificada nas notas fiscais. Há uma diferença de
R$ 28 mil. Suspeita-se da emissão
de notas frias.
Suspeitas também pairam em
capitais e cidades de grande porte.
Em Fortaleza, o prefeito Juraci
Magalhães (PMDB) é acusado de
desvio de R$ 1,8 milhão. Em São
Carlos (SP), inquérito apura um
rombo de R$ 4 milhões em licitação fraudulenta que teria contratado empresas fantasmas, diz a
procuradora da República Ana
Carolina Nascimento.
As prefeituras suspeitas de fraudes e desvios negam as acusações
(leia texto nesta página).
Técnicos da controladoria estimam que cerca de 40% das denúncias recebidas no órgão são
referentes a desvios no programa
de merenda escolar. "Quando há
programas com grande descentralização, como é o caso da merenda escolar, o controle do Estado será sempre insuficiente se a
população não ajudar na fiscalização", diz Leice Maria Garcia,
coordenadora-geral de auditoria
na área de educação da CGU.
Pais improvisam
Frente ao escasso dinheiro que
sobra para a merenda, pais de alunos muitas vezes têm de improvisar. É o que acontece em Bocaiúva
do Sul (PR), a meia hora de Curitiba, vilarejo rural mais conhecido
pelo polêmico prefeito Élcio Berti
(PFL), que tentou expulsar da cidade os moradores homossexuais. Em 2003, parte do total de
1.200 alunos ficou por mais de 20
dias sem merenda. A situação só
melhorou quando familiares passaram a fazer doações.
"Sempre que posso, colaboro",
diz José Xavier da Silva, avô de
Vanessa Silva, de 6 anos, que está
na pré-escola e, vez por outra, leva
alface, couve, tomate e repolho
para as merendeiras da escola
Cantinho do Céu. Um em cada
dez alunos traz mantimentos de
casa, diz a diretora Maria Cecília
Mariano. "Treze centavos por
aluno não dá para nada. Se não
fosse a ajuda dos alunos, as crianças iriam passar fome", diz.
Prefeituras administradas pelo
PT também sofrem com a falta de
merenda. No outro extremo do
país, em Assis Brasil (AC), na
fronteira do Brasil com a Bolívia e
o Peru, os alunos não têm muito a
comemorar na volta às aulas. Lá, a
falta de merenda é uma constante.
Só que a secretária de Educação,
Maria Eliane Gadelha, não teve a
mesma sorte de sua colega paranaense de Bocaiúva do Sul. "Estamos procurando doadores, mas
até agora, nada", lamenta ela, responsável por 500 alunos da rede
municipal. Corrupção, ao menos,
não é problema no município. "O
dinheiro que recebemos do governo é tão pouco que nem tem
como desviar", ironiza.
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