São Paulo, segunda-feira, 09 de setembro de 2002

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ENTREVISTA DA 2ª

Segundo o sociólogo Ignacio Cano, tática do confronto não encontra apoio em áreas de risco

"Violência contra crime opõe interesses"

FERNANDA DA ESCÓSSIA
DA SUCURSAL DO RIO

Especialista no cotidiano de violência nas metrópoles brasileiras, o sociólogo Ignacio Cano, 40, afirma que os candidatos que pregam o confronto como meio principal de combate à criminalidade encontram eco nas pessoas que não moram em áreas onde o conflito vai acontecer. "Ninguém que mora em área de risco defende o tiroteio como solução, porque pode ser atingido. Esses confrontos também colocam os policiais sob maior risco e, na medida em que passam para os bandidos a mensagem de que eles vão ser mortos de qualquer jeito, também estimulam uma criminalidade cada vez mais ousada", afirma.
A curto prazo, Cano afirma que as medidas mais adequadas para reduzir a violência são o controle de armas e a integração das polícias em forças-tarefa dedicadas à investigação de focos do crime organizado. A longo prazo, os programas sociais funcionam, mas é preciso que sua eficácia seja avaliada de maneira independente, o que não acontece hoje.
O sociólogo espanhol, radicado no Brasil desde 1996, está lançando o livro "Introdução à Avaliação de Programas Sociais" (Editora FGV), que analisa os recursos metodológicos disponíveis para que seja preenchida essa lacuna. "Sem avaliação, o cidadão perde o controle, a sociedade perde a possibilidade de direcionar recursos de forma eficiente", disse, em entrevista à Folha.

Folha - Como avaliar a eficácia de um programa social?
Ignacio Cano -
O primeiro passo é uma avaliação de implementação, para ver se aconteceu o que estava previsto. Em segundo lugar é a avaliação de impacto, e em terceiro cabe uma avaliação de custo/benefício. Mas o mais importante é a avaliação de impacto, para dizer se o investimento realmente teve retorno. A metodologia mais adequada é a de comparação com grupo de controle, quando você compara o grupo que recebeu o programa com um grupo similar onde o programa ainda não aconteceu. Isso tem forte tradição na área farmacológica, é assim que os remédios são avaliados. Mas é ainda muito incipiente nas outras áreas.

Folha - Como são avaliados os programas sociais no Brasil?
Cano -
Não há uma cultura de avaliação. O que acontece no Brasil é que, quando acaba o programa e você tem que prestar contas do dinheiro, chama alguém para avaliar. As políticas são lançadas tendo como única base o critério do formulador. Em alguns países existe uma legislação impondo que, a partir de um certo orçamento, todo programa dedique verba para avaliação.
Sem avaliação, o cidadão perde o controle, a sociedade perde a possibilidade de direcionar recursos de forma eficiente. A avaliação é um elemento de cidadania, o poder público tem de dizer como o dinheiro foi gasto.

Folha - Como é possível garantir a independência da avaliação?
Cano -
A avaliação tem que ser técnica, planejada e feita por avaliadores externos. O que não impede que haja também uma avaliação interna. Aí entramos numa área delicada, porque os políticos têm medo de colocar a avaliação de programas nas mãos de pessoas independentes. É preciso mudanças legislativas, com obrigatoriedade de avaliações externas, e mudanças na opinião pública, com a sociedade dizendo: "A gente não quer só tua palavra, quer alguém de fora que diga se isso funciona ou não".

Folha - O que o senhor acha da coqueluche de programas sociais compensatórios, como bolsa-escola, defendidos por todos os partidos, do PT ao PFL?
Cano -
Acho que eles são necessários em qualquer lugar do mundo. O problema é que o déficit social no Brasil é tão grande que os programas compensatórios têm de ter um volume enorme. Se o sistema social e econômico funcionasse de forma menos excludente, os programas compensatórios poderiam ter dimensão menor. Isso faz com que o programa compensatório seja o núcleo central da política social.

Folha - Como avaliar a área de segurança, sua especialidade?
Cano -
A área de segurança pública é paradigmática da incúria, do descaso com avaliação. Vem um novo secretário, diz: "Temos de fazer alguma coisa", faz, e pronto. Depois pega alguns números e cita os que lhe favorecem. As avaliações são parciais, feitas a posteriori, não são rigorosas. Uma das coisas que eu acho importantes nesse contexto é, por exemplo, que as pessoas pedem mais e mais polícia na rua. Vários estudos no exterior mostram que só polícia na rua não reduz a criminalidade, mas ninguém quer refletir sobre isso. Prender gente de alta periculosidade faz diferença. Prender gente que está fumando maconha não adianta.

Folha - Como reduzir os homicídios no Brasil?
Cano -
As grandes metrópoles brasileiras precisam de um plano de choque de prevenção de homicídios. O que pode reduzir homicídios a curto prazo? Programas de inserção da população jovem são muito importantes, mas vão demorar a dar resultados. A curto prazo, é preciso restringir armas de fogo, trabalhar com grupos de investigação de crimes em áreas de alta letalidade. Em terceiro lugar, mudar o tipo de policiamento ostensivo por patrulhamento permanente e preventivo.

Folha - O que acha da estratégia de guerra, na qual "bandido bom é bandido morto"?
Cano -
Em São Paulo, temos a figura do [candidato a governador Paulo" Maluf, que encarna isso há tempos. No Rio, [o prefeito" Cesar Maia está usando essa estratégia nos últimos meses. O grau de desespero das populações leva muita gente a acreditar que qualquer coisa é válida. Essas pseudo-soluções não resolvem e provocam um alto número de vítimas inocentes, pois incentivam policiais a fazer uso da força.
As pessoas que defendem a estratégia do confronto não moram em áreas onde o confronto vai acontecer. Ninguém que mora em área de risco defende o tiroteio como solução, porque pode ser atingido. É o reflexo da profunda fragmentação social da sociedade brasileira. Esses confrontos também colocam os policiais sob maior risco e, na medida em que passam para os bandidos a mensagem de que eles vão ser mortos de qualquer jeito, também estimulam uma criminalidade cada vez mais ousada.

Folha - Por que os programas sociais nas favelas não estão reduzindo a violência?
Cano -
O investimento social ainda é muito pouco, embora seja maior do que há 30 anos, mas as condições de vida nas favelas continuam muito diferentes das condições no asfalto. Em algumas áreas, é um escândalo que a assistência social do pequeno criminoso seja maior do que a assistência social do Estado. É uma perversão absoluta. Quem paga o enterro, os pequenos custos e festas é o criminoso. E o Estado se escandaliza: "Ah, o funk está sendo financiado por bandidos". Por que o Estado não financia o funk? Se houvesse um investimento público maior, o que o criminoso tivesse a acrescentar não seria relevante.

Folha - Como o programa social ajuda a reduzir a violência?
Cano -
Esse tipo de programa tem retorno a longo prazo. Alguns investimentos têm retorno mais imediato, como lazer em áreas críticas, tipo aqueles programas clássicos dos EUA, de basquete à meia-noite nas áreas de mais violência juvenil. Colocaram focos de luz à meia-noite e os caras ficavam fazendo campeonato de basquete. Isso inibiu a criminalidade naqueles horários.
Por outro lado, vários estudos tratam do fenômeno da inércia criminal, mostrando que, uma vez que se atinge um certo patamar de homicídios, as mortes continuam aumentando, mesmo que as condições sociais que originaram o fenômeno mudem.

Folha - O que vivemos no Brasil é fruto da inércia criminal?
Cano -
Todo mundo vive isso em certa medida, pode ser que no Brasil tenha um impacto maior. A inércia criminal não é localizada no tempo e no espaço, é uma tendência geral. Nós ainda não resolvemos nossos problemas sociais, por isso não podemos dizer que a situação atual é fruto apenas da inércia criminal.

Folha - Como o sr.avalia os programas de segurança dos candidatos à Presidência?
Cano -
Nos últimos anos, o governo federal aceitou a agenda da segurança como agenda própria. A segunda coisa positiva é a convergência de várias linhas: restrição de armas de fogo, integração das polícias, importância de melhorar dados de segurança pública e de fortalecer a Polícia Federal.
Vi menções à guerra contra o crime organizado, o que reforça o paradigma bélico. Alguns candidatos mencionam o papel das Forças Armadas. Em segurança pública, o papel das Forças Armadas é limitado às fronteiras e talvez a uma certa colaboração na inteligência, embora isso seja delicado. Há propostas de aumentar penas e construir presídios muito distantes. Aumentar penas não resolve, o que não signifique que não caiba um aumento de penas para um certo tipo de crime.



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