São Paulo, quarta-feira, 10 de julho de 2002

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ELIO GASPARI

O crime ganhou e o ministro caiu

FFHH começou o fim do seu governo ao criar uma situação na qual o advogado Miguel Reale Jr. teve que escolher entre sua biografia e a permanência num cargo onde com frequência serve-se melhor ao país abandonando-o do que nele permanecendo.Um dia, um ministro da Justiça assumirá o cargo dizendo o seguinte:
"Chego a esta função na qual estiveram, pelo tempo que puderam, liberticidas como Luís Antonio da Gama e Silva e Alfredo Buzaid. Um redigiu o AI-5 e o outro nele sentiu-se confortável. Dessa mesma sala foram-se embora, empurrados pelos seus princípios, o marquês de Paraná, por causa de uma nomeação na alfândega, Milton Campos e Mem de Sá, na infância da ditadura de 1964, José Carlos Dias e Miguel Reale Jr., na redemocratização atucanada. Assumo olhando para o exemplo de quem saiu, aterrorizado pela visão dos que ficaram".
Num confronto entre a lei e o crime, o desassombro administrativo e o embaraço político, FFHH desautorizou a posição de Reale Jr. e do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e recuou de sua decisão de solicitar ao Supremo Tribunal Federal a intervenção federal no Espírito Santo.
Ganhou, entre outros, o presidente da Assembléia capixaba, José Carlos Gratz, ex-bicheiro assumido, do PFL. Ganhou e comemorou: "Eu tinha certeza que o pedido seria engavetado".
Glória a Gratz, imperador da jogatina, acusado por procuradores do Estado e pela CPI do Narcotráfico de ser o chefe do braço político do crime organizado na região. Não se sabe com base em que informações Gratz tinha a sua certeza, mas se sabe que Reale Jr. considerou-se amparado por FFHH. Nas suas palavras: "No dia da aprovação do pedido de intervenção pelo conselho, liguei para o presidente e ele aprovou e festejou a decisão".
Seria muita ingenuidade acreditar que os morros brasileiros produzem tipos como Elias Maluco por geração espontânea. O crime é forte porque tem força e, por ter força, derruba ministro da Justiça. Seria injusto supor que FFHH desautorizou Reale Jr. por conta da mais remota relação com criminosos. Não se trata disso. Trata-se de cair na teia da delinquência por meio de uma concepção oportunista de manutenção da ordem política na qual se pode fazer tudo, menos balançar o coreto das autoridades.
Houve uma época em que a bandidagem do Rio de Janeiro era espalhafatosa, mas quase amadora. Em Caxias reinava Tenório Cavalcanti, um político que andava de capa preta, colete de aço e submetralhadora à mão. (Chamava-a Lurdinha.)
Controlava o jogo do bicho e mandava matar quem o desafiava, até que apareceu um delegado disposto a enfrentá-lo. Chamava-se Albino Imparato. Na madrugada de 28 de agosto de 1953, ele foi metralhado dentro de um automóvel, no centro da cidade. O inquérito policial concluiria que Tenório havia participado pessoalmente do atentado.
Uma semana depois do crime, a polícia cercou a casa de Tenório, mas ele era deputado federal pela UDN (o partido da moralidade, ascendente do que veio a ser o PFL). Aquilo que era um crime da Baixada Fluminense tornou-se uma questão da política nacional. Tenório estava cercado por 50 policiais, mas chegaram a Caxias, em seu socorro, as seguintes personalidades, de vários partidos:
Nereu Ramos, presidente da Câmara, oligarca catarinense e futuro presidente interino da República;
Osvaldo Aranha, ex-ministro da Fazenda, ex-embaixador em Washington;
Afonso Arinos, deputado, futuro senador e ministro das Relações Exteriores, membro da Academia Brasileira de Letras.
Tamanho esforço republicano destinava-se a impedir que a casa de Tenório, onde se supunha que estivesse escondido um dos assassinos de Imparato, fosse invadida durante a noite.
Aconselhado pela prudência política, FFHH decidiu não pedir ao Supremo a intervenção federal no Espírito Santo. Seus motivos foram muito mais frágeis que os de Nereu, Aranha e Arinos quando protegeram Tenório. Talvez tenha acreditado que Miguel Reale Jr. engoliria o recuo. Nesse caso, a cartela de Gratz teve mais sorte que a sua. Bingo.
Duas frases de FFHH ao visitar a Prefeitura do Rio no início de junho, depois do seu metralhamento:
"Vamos definir algo efetivo, porque não dá mais para aguentar tanta violência";
"Não, não dá mais. Essas balas são de uso militar. Elas mostram que a situação ultrapassou todos os limites".
Mal sabia ele que não só "dá para aguentar" mas também havia um limite a transpor. Numa transação em que o Estado e o crime organizado tinham interesses conflitantes, prevaleceram os do crime, e foi-se embora o ministro da Justiça.



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