São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PERSONALIDADE
Se correr a notícia da morte, regras da prudência recomendam que se espere até o terceiro dia
Se houver céu, Betinho ficará na porta

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

"Betinho trata a morte a pontapés." Esta frase do amigo Aldir Blanc omite um importante detalhe: e a morte gosta.
Como explicar o fato de que mesmo tratado a pontapés tenha estado tão perto? Aos oito anos, quase morreu com um simples corte no lábio. Foi quando se descobriu que era hemofílico.
Anos mais tarde, já adolescente, contraiu tuberculose, na época doença de cura improvável.
Chegou a receber extrema-unção de um padre alemão, desses com um sotaque perfeito para descrever o inferno.
Mais tarde a morte rondou sua vida política na clandestinidade. Muitos amigos se foram. Com a Aids, partiram os irmãos e companheiros de luta.
Betinho resistiu a tudo e basta dar uma olhada na sua biografia para sentir como os jornalistas o descreviam ao longo do tempo: 48 anos e 47 kg; 49 anos e 47 kg; 50 anos e 47 kg; 58 anos e 47 kg. Os anos se passavam sobre a mesma suave massa humana.
Se correr a notícia de que Betinho morreu, as mínimas regras de prudência recomendam que se espere até o terceiro dia por uma confirmação.
Mineiro de Bocaiúva, escolheu o Rio seduzido pelo mar. "Todo dia olho para conferir se continua lá: nunca me desapontou." No fim da ditadura militar, era conhecido como o irmão do Henfil por causa da música "O Bêbado e o Equilibrista", de Aldir Blanc e João Bosco.
Depois de alguns anos de democracia, tornou-se mais importante do que ministros, popular a ponto de se tornar enredo de escola de samba.
Quando era clandestino e lutava contra o regime militar, Betinho usou perucas e bigodes falsos para fugir da polícia. Era católico e maoísta e pertencia a uma singular organização de esquerda: a Ação Popular.

Operário
Tentou de todas as maneiras se proletarizar, virar um simples operário que, na época, tinha o papel de herói reservado no script da história.
Chegou a trabalhar numa fábrica de papelão, arriscando a própria vida com sangramentos no joelho.
Vem daí sua paixão pela liberdade individual, seu horror de ser controlado por coletivos. No exílio canadense, onde conquistou seu título de mestre, o sociólogo Betinho enterrou a Ação Popular.
Aliás, tornou-se um especialista em enterros: enterrou a hemofilia, a tuberculose e sempre teve planos de enterrar a Aids -foi o primeiro autor do mundo a ousar um livro sobre a cura da doença.
Além de organizar o Ibase, um instituto de pesquisas que conseguiu apresentar o Brasil real, Betinho sempre animou o movimento pela reforma agrária.
Mas tornou-se conhecido mesmo quando lançou a Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria, a mais importante campanha de solidariedade que o Brasil conheceu no século 20.
Betinho continua querendo mudar o país. Mas não entendia porquê os revolucionários excluíam a dimensão da solidariedade. Os comitês foram brotando e as pessoas perguntando a Betinho qual era a orientação.




Deu tantos e bem colocados pontapés na morte que todos nos sentimos eternos enquanto o ouvimos

Foi difícil convencê-las de que não se tratava de algo centralizado e que Betinho não distribuía diplomas ou franquias para representá-lo.
O movimento era saudavelmente anárquico, como muita coisa que deu certo no mundo moderno.
Críticas vieram de muitos lados. Temia-se que o governo se apropriasse da campanha ou que a oposição, através do PT, o fizesse. Ambos estavam ocupados demais para compreender a importância do movimento.
Como descreveu o próprio Betinho, estavam envolvidos demais no estatal para cuidarem do público.

Denúncias
Em 94, já reconhecido dentro e fora do país, Betinho foi atingido pelas denúncias de que recebera US$ 40 mil dos banqueiros do bicho para a Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids). Na verdade, quem surgiu na lista dos bicheiros foi o então governador do Rio, Nilo Batista.
Pressionado, Nilo contou que aquele dinheiro fora obtido para o combate à Aids.
No dia em que estourou o escândalo, fui visitar Betinho. Estava levemente nervoso porque dezenas de repórteres o esperavam para uma coletiva.
Era importante ir vê-lo porque a denúncia envolvia um amigo comum: o escritor Herbert Daniel, que morreu de Aids.
Aliás, na cerimônia fúnebre, Betinho fez um discurso tão emocionante, deu tantos e bem colocados pontapés na morte, que todos nos sentimos eternos enquanto o ouvimos.
Betinho pediu dinheiro aos bicheiros porque Herbert Daniel, que dirigia a Abia, precisava dele urgentemente para tocar o trabalho.
Era um tempo difícil. A palavra Aids ainda despertava medo e distanciamento.

Erro político
Sem jamais negar que pediu o dinheiro, Betinho lamentou não ter pedido mais, pois a situação era desesperadora. Mas admitiu que cometeu um erro político.
Senti nele um certo alívio. Afinal, conseguira se desvencilhar da aura de santidade com que estavam aprisionando sua imagem. Mas era uma ambígua vitória contra a canonização precoce.
Betinho não tinha pisado na grama, cuspido no chão ou mesmo sido encontrado com uma prostituta num carro estacionado embaixo do poste. Pediu dinheiro para salvar vidas de gente como ele -soropositiva.
Depois daquele escândalo, continuou a desenvolver seu trabalho. A luta contra a fome era apenas uma trincheira.
A outra era a abertura de novos empregos e, a terceira, que iria lançar já em 95, era a democracia na terra.
Betinho acreditava nessas três campanhas e sempre as viu interligadas.
Os críticos da Ação da Cidadania que tentaram conter a preocupação de Betinho nos limites da caridade ficaram devendo um exame mais abrangente de seus projetos.

Filhos
Betinho tem dois filhos homens. O mais velho, Daniel, é dançarino. O mais novo, Henrique, nasceu da relação com Maria Nakano, com quem viveu desde o exílio. A mulher que o ajudou a construir a casa de Itatiaia, um refúgio para recarregar energias.
Ele gostava do mar, mas escolheu a montanha para se sentir absolutamente em casa.
Se houver céu, Betinho é uma das presenças mais improváveis. É do tipo que sentará na porta e só entrará quando todos os outros chegarem.


Fernando Gabeira é deputado federal pelo PV do Rio de Janeiro, membro da Comissão de Direitos Humanos e da Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias da Câmara dos Deputados.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do Universo Online ou do detentor do copyright.