|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LANTERNA NA POPA
Discutindo o social
ROBERTO CAMPOS
O discurso voltado para o social não é o que se costuma esperar das reuniões anuais do FMI
e do Banco Mundial. Desta vez,
houve uma inflexão da linha
usual. Temas sociais há muito
frequentam os trabalhos do
Banco e, de vez em quando,
discretamente, transparecem
nos do FMI. Aliás, o diretor-gerente deste, Michel Camdessus,
na sua conferência de imprensa, insistiu em que não havia
câmbio de orientação. Quem
frequenta o noticiário internacional sabe que os temas da pobreza e da dívida vêm ganhando espaço. Em março deste
ano, por exemplo, numa iniciativa conjunta do BIS, FMI,
Banco Mundial e OCDE, estão
sendo divulgadas estatísticas
cuidadosamente atualizadas sobre a dívida externa de 176 países em desenvolvimento e em
transição.
Dois fatores principais pesam
nisso: um receio mal definido,
mas real, de que a pobreza e o
endividamento ponham em risco a estabilidade do sistema internacional; e algum sentimento
de culpa, nas sociedades mais ricas, da riqueza diante da pobreza. Este último ponto, de resto,
conforma-se às grandes tradições culturais e religiosas do
mundo, em especial do Ocidente. O papa João Paulo 2º mantém uma posição firme, parte,
aliás, de uma tradição religiosa
que vem desde os tempos judaicos. Há dois anos, a ONU conclamou para uma "Década de
Combate à Pobreza Extrema". A
colaboração do presidente Clinton, nesta última reunião do
Banco Mundial e do FMI, em favor do perdão parcial das dívidas dos países mais pobres
-condicionado, porém, a que
os recursos sejam usados em objetivos sociais- tampouco chega a inovar. Encaixa-se numa linha política relativamente generosa dos Estados Unidos, que,
após dez anos de prosperidade
sem precedentes, começam a se
inquietar mais com as desigualdades mundiais.
Algumas cifras, para ajustar a
perspectiva:
Há várias questões convolutas
nessa problemática. Os países
muito pobres têm recebido ajuda significativa: receberam sob a
forma de ajuda oficial externa,
em 1997, 2,9% do seu PIB. E desses, 23 países, como Angola, Benin, Chade, Congo, Eritréia,
Etiópia, Guiné, Haiti, Zâmbia
etc., receberam entre 10% e mais
de 30% do seu PIB. Mas quem
sentirá comiseração comparável
pela Venezuela ou pelo Brasil,
países potencialmente riquíssimos?
Na grande maioria das sociedades mais ricas, há contradições íntimas entre os valores
herdados, que os empurram para a solidariedade, e o instinto
egoístico, hoje exponenciado pelo consumismo. Por outro lado,
a riqueza não é um estado de
coisas "natural". Natural, mesmo, é a condição do homem primitivo, sempre perto do limite
da sobrevivência. A prosperidade dos países industrializados é
algo "artificial", um fenômeno
histórico que se acelerou bruscamente com a Revolução Industrial, a partir do final do século
18 -uma acumulação crescente
de capacidade produtiva, em resultado do conhecimento, esforço e racionalidade. Nesse tempo,
as diferenças na renda por habitante, entre os povos mais ricos e
os mais pobres, não passariam
de um fator de 2 a 4, ao passo
que hoje chegam a um fator de
50. Não foram, porém, os pobres
que perderam, foram os ricos
que ganharam.
Os povos mais pobres não seguiram o mesmo caminho dos
que começaram antes (como
Marx achava que iria ser o caso). O colonialismo pode ter
atrasado alguns, mas será que,
se ninguém tivesse mexido na
Uganda, esta seria hoje uma rival da Suécia? Em verdade, não
existe uma teoria suficientemente aceita que explique as
disparidades observadas.
Um ponto positivo é que começa a condensar-se certa noção de
que é possível, e até relativamente barato, acabar com os extremos da pobreza mais vexatórios. Isso não se faz, porém, sem
regras de jogo aceitas pelos beneficiários. Uma distribuição
melhor de renda requer eficiência microeconômica -que só a
economia de mercado assegura- e uma governança pública
séria e competente, o que é incompatível com as safadezas habituais do populismo latino-americano, os enormes buracos
das contas públicas e os regimes
de câmbio irrealistas.
Em economia, não dá para
criar algo a partir do nada. A
multiplicação dos pães e a transformação da água em vinho estão reservadas apenas ao Senhor, não aos políticos. Manter
estáveis os preços e gastar simultaneamente mais do que o total
da produção disponível é uma
impossibilidade matemática. E,
por menos egoístas que sejam, os
credores potenciais não costumam entusiasmar-se por quem
pede emprestado sem razoáveis perspectivas de pagar.
Muitos países "emergentes"
gastam mal. É o nosso caso.
Com 7,4% do PIB investidos
em saúde e educação, estamos
acima da média mundial. Daria para fazer mais com isso, se
o Estado não funcionasse tão
miseravelmente. O governo arrecada, em proporção do PIB,
tanto quanto os Estados Unidos ou o Japão, mas gasta cerca
de 40%, já beirando a faixa das
grandes social-democracias
européias, onde o cidadão tem
hospital, escola, infra-estrutura
e qualidade de vida. Nessa faixa
de gastos públicos e sem a contrapartida dos serviços públicos
universais, ocorre uma séria
perda de competitividade da
economia, que nenhuma publicidade fantasiosa do governo
pode compensar.
Receitas radicais, como levantar um pouco a tampa da inflação, ou considerar hipóteses de
calote parcial, interno ou externo, levar-nos-iam de volta a
uma economia semifechada
-e, politicamente, ninguém sabe para onde. Estamos pagando
o preço dos pecados consentidos
desde aquele Carnaval da Constituição de 88. Sarney foi à televisão alertar o público contra a
trapalhada fiscal que se estava
aprontando. Acabou ferozmente malhado por Ulisses Guimarães e outros. Foi um momento
de voluntarismo desvairado, em
que se acreditava que a restrição
orçamentária pode ser elidida
por generosa "vontade política".
Se não se cometerem novos erros, já será um ganho.
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).
Texto Anterior: Painel Próximo Texto: Governo: Lobby ajuda prorrogação de bingo Índice
|