São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
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LANTERNA NA POPA

Discutindo o social

ROBERTO CAMPOS

O discurso voltado para o social não é o que se costuma esperar das reuniões anuais do FMI e do Banco Mundial. Desta vez, houve uma inflexão da linha usual. Temas sociais há muito frequentam os trabalhos do Banco e, de vez em quando, discretamente, transparecem nos do FMI. Aliás, o diretor-gerente deste, Michel Camdessus, na sua conferência de imprensa, insistiu em que não havia câmbio de orientação. Quem frequenta o noticiário internacional sabe que os temas da pobreza e da dívida vêm ganhando espaço. Em março deste ano, por exemplo, numa iniciativa conjunta do BIS, FMI, Banco Mundial e OCDE, estão sendo divulgadas estatísticas cuidadosamente atualizadas sobre a dívida externa de 176 países em desenvolvimento e em transição.
Dois fatores principais pesam nisso: um receio mal definido, mas real, de que a pobreza e o endividamento ponham em risco a estabilidade do sistema internacional; e algum sentimento de culpa, nas sociedades mais ricas, da riqueza diante da pobreza. Este último ponto, de resto, conforma-se às grandes tradições culturais e religiosas do mundo, em especial do Ocidente. O papa João Paulo 2º mantém uma posição firme, parte, aliás, de uma tradição religiosa que vem desde os tempos judaicos. Há dois anos, a ONU conclamou para uma "Década de Combate à Pobreza Extrema". A colaboração do presidente Clinton, nesta última reunião do Banco Mundial e do FMI, em favor do perdão parcial das dívidas dos países mais pobres -condicionado, porém, a que os recursos sejam usados em objetivos sociais- tampouco chega a inovar. Encaixa-se numa linha política relativamente generosa dos Estados Unidos, que, após dez anos de prosperidade sem precedentes, começam a se inquietar mais com as desigualdades mundiais.
Algumas cifras, para ajustar a perspectiva:
Há várias questões convolutas nessa problemática. Os países muito pobres têm recebido ajuda significativa: receberam sob a forma de ajuda oficial externa, em 1997, 2,9% do seu PIB. E desses, 23 países, como Angola, Benin, Chade, Congo, Eritréia, Etiópia, Guiné, Haiti, Zâmbia etc., receberam entre 10% e mais de 30% do seu PIB. Mas quem sentirá comiseração comparável pela Venezuela ou pelo Brasil, países potencialmente riquíssimos?
Na grande maioria das sociedades mais ricas, há contradições íntimas entre os valores herdados, que os empurram para a solidariedade, e o instinto egoístico, hoje exponenciado pelo consumismo. Por outro lado, a riqueza não é um estado de coisas "natural". Natural, mesmo, é a condição do homem primitivo, sempre perto do limite da sobrevivência. A prosperidade dos países industrializados é algo "artificial", um fenômeno histórico que se acelerou bruscamente com a Revolução Industrial, a partir do final do século 18 -uma acumulação crescente de capacidade produtiva, em resultado do conhecimento, esforço e racionalidade. Nesse tempo, as diferenças na renda por habitante, entre os povos mais ricos e os mais pobres, não passariam de um fator de 2 a 4, ao passo que hoje chegam a um fator de 50. Não foram, porém, os pobres que perderam, foram os ricos que ganharam.
Os povos mais pobres não seguiram o mesmo caminho dos que começaram antes (como Marx achava que iria ser o caso). O colonialismo pode ter atrasado alguns, mas será que, se ninguém tivesse mexido na Uganda, esta seria hoje uma rival da Suécia? Em verdade, não existe uma teoria suficientemente aceita que explique as disparidades observadas.
Um ponto positivo é que começa a condensar-se certa noção de que é possível, e até relativamente barato, acabar com os extremos da pobreza mais vexatórios. Isso não se faz, porém, sem regras de jogo aceitas pelos beneficiários. Uma distribuição melhor de renda requer eficiência microeconômica -que só a economia de mercado assegura- e uma governança pública séria e competente, o que é incompatível com as safadezas habituais do populismo latino-americano, os enormes buracos das contas públicas e os regimes de câmbio irrealistas.
Em economia, não dá para criar algo a partir do nada. A multiplicação dos pães e a transformação da água em vinho estão reservadas apenas ao Senhor, não aos políticos. Manter estáveis os preços e gastar simultaneamente mais do que o total da produção disponível é uma impossibilidade matemática. E, por menos egoístas que sejam, os credores potenciais não costumam entusiasmar-se por quem pede emprestado sem razoáveis perspectivas de pagar.
Muitos países "emergentes" gastam mal. É o nosso caso. Com 7,4% do PIB investidos em saúde e educação, estamos acima da média mundial. Daria para fazer mais com isso, se o Estado não funcionasse tão miseravelmente. O governo arrecada, em proporção do PIB, tanto quanto os Estados Unidos ou o Japão, mas gasta cerca de 40%, já beirando a faixa das grandes social-democracias européias, onde o cidadão tem hospital, escola, infra-estrutura e qualidade de vida. Nessa faixa de gastos públicos e sem a contrapartida dos serviços públicos universais, ocorre uma séria perda de competitividade da economia, que nenhuma publicidade fantasiosa do governo pode compensar.
Receitas radicais, como levantar um pouco a tampa da inflação, ou considerar hipóteses de calote parcial, interno ou externo, levar-nos-iam de volta a uma economia semifechada -e, politicamente, ninguém sabe para onde. Estamos pagando o preço dos pecados consentidos desde aquele Carnaval da Constituição de 88. Sarney foi à televisão alertar o público contra a trapalhada fiscal que se estava aprontando. Acabou ferozmente malhado por Ulisses Guimarães e outros. Foi um momento de voluntarismo desvairado, em que se acreditava que a restrição orçamentária pode ser elidida por generosa "vontade política".
Se não se cometerem novos erros, já será um ganho.


Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).

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