São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
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ELIO GASPARI

Quem paga imposto fez seu eterno papel, o de bobo

Ganha um celular pré-pago quem descobrir onde FFHH estava com a cabeça quando anunciou que a anistia parcial concedida aos caloteiros de tributos e aos rapinadores do FGTS e do INSS era uma "alforria" para os pequenos empresários e significava uma "antiderrama".
No mesmo dia em que beneficiou caloteiros e gente que fica com o dinheiro alheio, seu governo tributou os trabalhadores, impondo-lhes penas de trabalho forçado para se aposentarem. Mais: no dia seguinte, anunciou uma derrama contra os empresários que pagam seus impostos em dia.
O que FFHH disse não faz sentido. Quem fez "antiderrama" foi o visconde de Barbacena, suspendendo a cobrança de um imposto extraordinário para cobrir o déficit do rei de Portugal. O que se fez na quinta-feira foi precisamente uma derrama. Elevou-se a carga tributária para cobrir o déficit real, que resulta dos juros que se pagam aos gatos gordos da banca internacional. FFHH não alforriou empresários. Aliviou caloteiros.
Pode-se admitir que uma crise leve um governo, depois de dois anos de estagnação econômica, a perdoar dívidas tributárias, para não esmagar as empresas. Quando esse é o caso, compete ao presidente da República dizer à choldra que, lamentavelmente, a ruína o obriga a perdoar sonegadores para conter o desemprego. O resto é gogó.
FFHH aliviou caloteiros na razão direta de suas malfeitorias. Quanto maior fosse o beiço, maior foi a boca-rica.
Para se entender o que aconteceu na semana passada, vale criar três exemplos, imaginando-se três irmãos.
Um trabalha desde os 18 anos. Paga à Previdência desde 1974 e esperava se aposentar no ano 2009 com pouco menos que dez salários mínimos. O governo decidiu que ele terá que trabalhar até 2015 para receber o que a lei lhe dá direito hoje.
O outro, Zé Bobão, tem uma pequena empresa. Desde o início da crise, no início do ano passado, ficou curto de caixa. Decidiu não atrasar seus impostos e tomou dinheiro emprestado num banco. Calculando-se que devesse R$ 20 mil mensais entre encargos trabalhistas e tributos, sua dívida está hoje em pelo menos R$ 650 mil.
O terceiro, apelidado Metralha desde criança, resolveu lesar a Viúva. Sua empresa é igual à do Bobão. FFHH deu-lhe descontos na multa e nos juros de mora, tirou-o das taxas do mercado e colocou-o sob a taxa especial do governo, a bondosa TJLP. Devia uma fortuna, mas foi alforriado. Admitindo-se que sua dívida tenha ficado do mesmo tamanho que a do irmão, Metralha pagará juros de 12% (ou menos que isso). Bobão continuará na taxa do mercado, que custa o dobro.
O governo perdoou parte da dívida de pessoas que se apropriaram indevidamente de recursos descontados em folha aos trabalhadores. Gente que praticou crime. Antes de discutir com calma o Direito Penal Mínimo, instituiu-se o Direito Tributário Mínimo.
O que FFHH fez foi coisa histórica. Alforriou os senhores, tributou os escravos e lançou uma derrama sobre as empresas que pagam impostos em dia e não raspam as contribuições de seus empregados. Nesse ritmo, alcança d. João 6º, em cujo reinado cobrava-se uma taxa aos mendigos do Rio de Janeiro.

Aviso

Este material de leitura não contém agrotóxicos, nicotina ou substâncias que façam parte do "Programa de Qualidade contra genéricos para mídia visando atingir os consumidores" proposto na ata da reunião de gerentes de vendas dos grandes laboratórios. Esse conclave que nenhum desses laboratórios teria coragem de realizar no país onde funciona sua sede continua impune em Pindorama.
Dando nome aos bois, são os seguintes os laboratórios cujos gerentes participaram da reunião que resultou na ata:
Abbott, Astra Zeneca, Bayer, Byk, Biosintética, Boeringher, Bristol, Centeon, Eurofarma, Glaxo Wellcome, Janssen-Cilag, Lilly, Merck, Organon, Roche, Sanofi, Schering Plough e Searle.

Humor negro

Observação cruel de um incorrigível inimigo do Fundo Monetário Internacional:
"O diretor-geral do FMI, Michel Camdessus, ilustrou a sua preocupação com a miséria lendo na abertura do seu discurso uma carta encontrada no corpo de um menino da Guiné. Ele e um amigo tinham morrido no trem de aterrissagem de um avião, onde se esconderam para chegar à Europa.
Enquanto as crianças da Guiné morriam em terra firme, Camdessus não mostrou preocupação pela fome africana. Agora ele está preocupado. Se as crianças da Guiné começarem a cair dos aviões em vôo, não se poderá mais passear pelo Central Park em sossego. Camdessus teme que o Primeiro Mundo seja bombardeado por miseráveis".

Só uma ponte

O tucanato vem testando, com muita cautela, a solidez de algumas pontes que possam levá-lo a um melhor entendimento com o PT.
A maior parte dessas conversas passa pela disputa da Prefeitura de São Paulo.

O sonho de Miami acaba em Bangladesh

Num país em que o monarca alforria as dívidas dos senhores e tributa o trabalho dos escravos, alguma coisa de bom tem que acontecer. Começa na próxima semana a reunião da Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais, a Anpocs. Quem conseguir uma cópia da apresentação da professora Elisa Reis, da UFRJ, será um afortunado.
Chama-se "Percepções da Pobreza e da Desigualdade entre Elites". É um trabalho comparativo da forma como se vêem os andares de cima do Brasil, África do Sul e Bangladesh.
A professora relembra que as elites conservadoras da Europa enfrentaram os problemas da pobreza porque viram na miséria um estorvo ao próprio progresso e conforto. Ampara-se em textos clássicos e em ninguém menos que Gertrude Himmelfarb, grande dama do conservadorismo americano.
Depois de entrevistar 320 quadros das elites políticas, empresariais, burocráticas e sindicais no Rio, São Paulo, Ceará e Bahia, ela alinhavou conclusões inquietantes. A elite brasileira admite que a miséria é um dos grandes problemas nacionais (depois do nível educacional e da inflação). A coisa encrenca na hora de explicar por que há pobreza. A turma do andar de cima acha que a culpa é dos outros. Da falta de planejamento (29%) ou de vontade política (19%). Só 5% dos entrevistados acreditam que o problema se deve a uma característica da elite.
Comparada com as elites da África do Sul e de Bangladesh, a brasileira assemelha-se à primeira, mas se diferencia (por pior) da segunda. Não é à toa que, apesar das promessas, FFHH ainda não conseguiu copiar o modelo do Banco do Povo, coisa existente em Bangladesh.
A elite brasileira tende a confundir pobreza com marginalidade, despreza a filantropia e gosta de culpar o governo por tudo. Erros desse tipo, a de Bangladesh não comete.
Quem ler o trabalho da professora Elisa Reis poderá dar boas gargalhadas quando ouvir o blablablá do andar de cima, dizendo-se disposto a fazer o que pode contra a pobreza, desde que não lhe peçam para fazer coisa alguma. É uma gente engraçadíssima.

Uma marca para a elite: o BigJoan

O regime de mercado funciona. Não precisa de anistias fiscais nem de gogó privatista. Basta trabalhar e saber que a riqueza não prospera à custa da miséria.
Era uma vez um vendedor de milk-shake que, em 1953, viu dois irmãos vendendo hambúrgueres numa lanchonete da Califórnia. Ray Kroc tinha 52 anos e pouca saúde. Comprou-lhes o direito de montar uma rede com o nome MacDonald's. Morreu em 1984 deixando algo como US$ 2 bilhões para sua mulher, Joan.
Joan Kroc dedica-se a dar boa parte do dinheiro que recebeu. Na segunda-feira, inaugurou-se o Instituto de Justiça e Paz da Universidade de San Diego. Um dos principais oradores da cerimônia foi o professor brasileiro Luiz Alberto Gomez de Souza, do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais, do Rio.
Joan Kroc cacifou o Instituto de Justiça e Paz com um cheque de US$ 25 milhões. Ela é uma das mulheres mais ricas dos Estados Unidos, mas também uma das maiores doadoras (com George Soros, Steven Spielberg e Paul Newman).
Em 1997, uma enchente devastou uma parte da Califórnia. Uma desconhecida apelidada de "Anjo" deu US$ 10 milhões aos flagelados, com a condição de que o dinheiro não passasse por burocracia. Joan Kroc nunca confirmou, mas era ela.
É um prazer comer um Big Mac pensando que dona Joan vai ficar com um pedaço do dinheiro que se pagou por ele.

Garotinho foi buscar o dinheiro

Se as coisas andarem direito, os governadores Anthony Garotinho e Olívio Dutra receberão os recursos do Ministério da Saúde que corriam o risco de perder.
Estava errada a informação aqui publicada segundo a qual o governo gaúcho não enviou a Brasília o projeto necessário para sacar os R$ 2,6 milhões colocados à sua disposição para o tratamento de casos de gravidez de alto risco.
Segundo a Secretaria da Saúde gaúcha, o projeto foi remetido a Brasília no dia 5 de julho. Um recibo dos Correios comprova que essa afirmação é verdadeira. Segundo o ministério, os papéis remetidos não configuravam um projeto, pois não listavam os hospitais que receberiam o dinheiro. Entre julho e setembro, o ministério nada cobrou oficialmente do governo gaúcho. No dia 29 de setembro, diante da proximidade da guilhotina dos prazos orçamentários, o ministério fez a cobrança e o papelório está chegando a Brasília.
No Rio de Janeiro, Garotinho correu atrás dos R$ 19,5 milhões colocados à disposição do seu governo para treinamento e reequipamento de serviços de emergência. Existia um projeto, feito na gestão Marcello Alencar. Por incompleto e até mesmo irregular, ele foi inabilitado e deveria ser substituído. Segundo a Secretaria da Saúde do Rio de Janeiro, o novo projeto, contemplando 16 hospitais, seguiu para Brasília nesta semana. Garotinho fez o seu dever de casa na captura dos recursos para a assistência às gestantes e já recebeu R$ 7 milhões do governo federal.

Poesia
Mariana Ianelli
(19 anos, autora do livro "Trajetória de Antes")
Peça em um ato
De tanto pó podia-se
escrever nos móveis.
Na mesa.
E o lugar era vazio
como uma paisagem
sem circunstância.
Na mesa houve
o pouco de amor
que a mulher escondeu
e o homem não teve.
Na mesa existiu
o descompasso da noite
e da vela queimando,
existiu a vela no fim
o vinho pela metade.
Na mesa estava arrumada
a paixão
que ia jantar em dois pratos
beber em dois copos
o vinho até a metade.
Na mesa era o homem
comendo sem modos
e a mulher de olhos pintados
pensando um tempo distante dali,
tempo sem data.

À margem
Afundei em mim
feito um corpo sem força
e de mim não saí
para olhar as pessoas
para tocar coisas
ou tocar pessoas.
Estava imóvel e débil,
perdida para um homem.
Amava as conversas com ninguém,
um diálogo com almas penadas.
Amava gastar o tempo
na contemplação das mulheres
que seriam minhas
se eu pudesse uma vez
tocar a delicadeza.
O homem em que me perdi
é todo meu
e somos os dois
aquela comunicação entre almas
minuciosas na voz,
duas almas quase amigas.
Somos velhos cientes de nós
mas não nos olhamos
não podemos tocar-nos:
dois náufragos que falam entre si
e não se conhecem, não se sabem.
Eu afundei nesse homem
feito alma sem corpo
e perdi a inspiração
que é natural das mulheres.
Ele não foi feito para quedas
para o balanço do tempo
- homens não querem consolo.
Recolho a nossa velhice
sem culpa, sem um apelo,
e agora vou para o fundo de mim,
mas ele...


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