São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
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O TORCEDOR

"O futebol me tomava tempo", diz em sua última entrevista

FÁBIO VICTOR
da Reportagem Local

Preciso e técnico em sua poesia, o pernambucano João Cabral de Melo Neto tinha características bem diferentes como jogador.
"O futebol dele era parecido com o de Dunga (volante da seleção tetracampeã em 1994). Ele era um trator danado. Sua maior qualidade era o desarme. Mas era bom jogador", conta o seu irmão mais velho, o inspetor do Banco do Brasil aposentado Virgínio Cabral de Melo, 81.
A vida intelectual acabou abortando a carreira futebolística do poeta brasileiro, mas a vivência como jogador e torcedor do América de Recife, que defendeu como meio-campista e para o qual sempre torceu, produziu alguns dos mais belos poemas sobre o esporte da literatura nacional -como o reproduzido ao lado, inspirado em seu clube de coração, uma visão cortante sobre a espera do torcedor pela vitória.
Sem enxergar havia sete anos, consequência de degeneração da retina, João Cabral disse que praticamente não acompanhava mais futebol -ouvia esporadicamente transmissões de jogos pelo rádio, em seu apartamento na praia do Flamengo, no Rio, de onde não saía quase nunca.
Sua mulher, a poeta Marly de Oliveira, contou, porém, que, na última Copa do Mundo, o escritor teve uma atitude intrigante. "Ele chegou bem perto da televisão, o que me fez supor que estivesse vendo alguma coisa. O futebol é uma distração muito grande para ele, para todos os homens."
Por telefone, com voz fraca e arrastada, mas memória inabalável -lembrou sem dificuldades todos os seus poemas que tratam de futebol-, João Cabral deu no começo da semana passada a seguinte entrevista à Folha, possivelmente suas últimas declarações públicas. A única exigência: que a conversa se ativesse à sua paixão pela bola.

Folha - Qual é a sua relação com o América?
João Cabral de Melo Neto -
O América era o clube da minha família. Meus primos jogavam lá, meu pai foi diretor do clube. O América lá (em Recife) não é vermelho como aqui (no Rio), é verde. Mas o América, que era uma potência, tinha sido naquele tempo cinco vezes campeão, depois entrou em decadência, sobretudo por causa do profissionalismo.
O América era um clube de amadores. Quando veio o profissionalismo, ele não pôde resistir à concorrência do Sport, do Náutico, do Santa Cruz, do Tramway (clube de ferroviários ingleses). De forma que o América então entrou em decadência. Eu não sei nem se existe ainda hoje.

Folha - Existe, mas está numa situação muito difícil. Mas, mesmo há tanto tempo distante do Recife (onde viveu até a adolescência), o senhor permanece torcedor do América?
João Cabral -
Sou. No Recife, sou América.

Folha - E existiu mesmo a história de que o senhor chegou a jogar pelo América?
João Cabral -
Existiu. Desde menino eu ia ao futebol, todos os domingos. A todos os jogos. Quando cresci, comecei a jogar no colégio e, depois do colégio, passei a jogar no juvenil do América.

Folha - Em que posição?
João Cabral -
Uma posição que não existe mais, center-half, o centro do meio-campo. Naquele tempo se jogava com dois beques, três halfs e cinco atacantes. Era diferente de hoje. E eu joguei no América no juvenil, mas nesse ano o juvenil não estava muito bem, e nós chegamos em último.

Folha - Entre quantos?
João Cabral -
Entre cinco ou seis. Então a decisão do campeonato juvenil de 1935 -isso foi em 1935, eu tinha 15 anos- eu também acabei disputando.

Folha - Mas como, se o América já estava eliminado?
João Cabral -
O Santa Cruz descobriu que a minha mãe era torcedora do Santa. A diretoria do clube foi lá em casa e pediu para ela anular a minha inscrição pelo América para eu disputar a melhor de três pelo Santa Cruz. Mas não era contra o Sport, não, eracontra o Torre, um clube que havia lá (campeão pernambucano em 1926, 1929 e 1930, hoje extinto), que chegou empatado com o Santa Cruz . Então eu fui disputar a melhor de três e fui campeão.
Ganhamos a melhor de três, e eu fui campeão no mesmo ano em que fui último colocado (o irmão mais velho do poeta, Virgínio, contesta a versão: "Não tem nada disso, ele está completamente enganado. Ele de fato mudou de time e jogou pelo Santa Cruz, mas a final foi contra o próprio América").
Mas depois eu não passei a jogar no segundo time, não. Abandonei o futebol (tinha então 16 anos).

Folha - Por que abandonou o futebol?
João Cabral -
Porque comecei a ter outros interesses intelectuais, e futebol me tomava muito tempo. Foi o tempo também que eu acabei o colégio, de forma que não...

Folha - No Rio de Janeiro, o sr. também torce pelo América. Foi por influência do América pernambucano?
João Cabral -
Exato. E o América aqui (no Rio) também está ruinzinho, não é?...

Folha - Qual a participação do futebol na sua obra?
João Cabral -
Escrevi um poeminha falando do torcedor do América, chama-se "O Torcedor do América F.C.". Escrevi poemas também sobre Ademir Menezes, o célebre Ademir, que foi do Vasco. Ele jogava no Sport no tempo em que eu jogava no América. Apenas Ademir continuou. E foi um grande jogador (o atacante, artilheiro da Copa de 50, foi amigo de João Cabral e seus irmãos).
Tem também um poema sobre Ademir da Guia, tem um outro também, "O Futebol Brasileiro Evocado na Europa". Tenho impressão que eu tenho outro que não me lembro agora (pausa). É... "De um Jogador Brasileiro a um Técnico Espanhol" (à exceção do último, do livro "Agrestes", todos os outros citados foram publicados em "Museu de Tudo").


Nota da edição: A entrevista com João Cabral de Melo Neto foi feita no dia 5 de outubro, como parte de reportagem sobre times que um dia foram importantes no futebol brasileiro e seus torcedores ilustres. A reportagem será publicada no próximo domingo em Esporte.



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