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O TORCEDOR
"O futebol me tomava tempo", diz em sua última entrevista
FÁBIO VICTOR
da Reportagem Local
Preciso e técnico em sua poesia,
o pernambucano João Cabral de
Melo Neto tinha características
bem diferentes como jogador.
"O futebol dele era parecido
com o de Dunga (volante da seleção tetracampeã em 1994). Ele era
um trator danado. Sua maior
qualidade era o desarme. Mas era
bom jogador", conta o seu irmão
mais velho, o inspetor do Banco
do Brasil aposentado Virgínio Cabral de Melo, 81.
A vida intelectual acabou abortando a carreira futebolística do
poeta brasileiro, mas a vivência
como jogador e torcedor do América de Recife, que defendeu como meio-campista e para o qual
sempre torceu, produziu alguns
dos mais belos poemas sobre o esporte da literatura nacional -como o reproduzido ao lado, inspirado em seu clube de coração,
uma visão cortante sobre a espera
do torcedor pela vitória.
Sem enxergar havia sete anos,
consequência de degeneração da
retina, João Cabral disse que praticamente não acompanhava
mais futebol -ouvia esporadicamente transmissões de jogos pelo
rádio, em seu apartamento na
praia do Flamengo, no Rio, de onde não saía quase nunca.
Sua mulher, a poeta Marly de
Oliveira, contou, porém, que, na
última Copa do Mundo, o escritor
teve uma atitude intrigante. "Ele
chegou bem perto da televisão, o
que me fez supor que estivesse
vendo alguma coisa. O futebol é
uma distração muito grande para
ele, para todos os homens."
Por telefone, com voz fraca e arrastada, mas memória inabalável
-lembrou sem dificuldades todos os seus poemas que tratam de
futebol-, João Cabral deu no começo da semana passada a seguinte entrevista à Folha, possivelmente suas últimas declarações públicas. A única exigência:
que a conversa se ativesse à sua
paixão pela bola.
Folha - Qual é a sua relação
com o América?
João Cabral de Melo Neto - O
América era o clube da minha família. Meus primos jogavam lá,
meu pai foi diretor do clube. O
América lá (em Recife) não é vermelho como
aqui (no Rio), é
verde. Mas o
América, que
era uma potência, tinha sido
naquele tempo
cinco vezes
campeão, depois entrou em
decadência,
sobretudo por
causa do profissionalismo.
O América
era um clube
de amadores.
Quando veio o
profissionalismo, ele não pôde resistir à concorrência do Sport, do
Náutico, do Santa Cruz, do Tramway (clube de ferroviários ingleses). De forma que o América então entrou em decadência. Eu
não sei nem se existe ainda hoje.
Folha - Existe, mas está numa
situação muito difícil. Mas, mesmo há tanto tempo distante do
Recife (onde viveu até a adolescência), o senhor permanece
torcedor do América?
João Cabral - Sou. No Recife,
sou América.
Folha - E existiu mesmo a história de que o senhor chegou a
jogar pelo América?
João Cabral - Existiu. Desde
menino eu ia ao futebol, todos os
domingos. A todos os jogos.
Quando cresci, comecei a jogar
no colégio e, depois do colégio,
passei a jogar no juvenil do América.
Folha - Em que posição?
João Cabral - Uma posição que
não existe mais, center-half, o
centro do meio-campo. Naquele
tempo se jogava com dois beques,
três halfs e cinco atacantes. Era diferente de hoje. E eu joguei no
América no juvenil, mas nesse
ano o juvenil não estava muito
bem, e nós chegamos em último.
Folha - Entre quantos?
João Cabral - Entre cinco ou
seis. Então a decisão do campeonato juvenil de 1935 -isso foi em
1935, eu tinha 15 anos- eu também acabei disputando.
Folha - Mas como, se o América já estava eliminado?
João Cabral - O Santa Cruz descobriu que a minha mãe era torcedora do Santa. A diretoria do
clube foi lá em casa e pediu para
ela anular a minha inscrição pelo
América para eu disputar a melhor de três pelo Santa Cruz. Mas
não era contra o Sport, não, eracontra o Torre, um clube que havia lá (campeão pernambucano
em 1926, 1929 e 1930, hoje extinto), que chegou empatado com o
Santa Cruz . Então eu fui disputar
a melhor de três e fui campeão.
Ganhamos a melhor de três, e
eu fui campeão no mesmo ano
em que fui último colocado (o irmão mais velho do poeta, Virgínio, contesta a versão: "Não tem
nada disso, ele está completamente enganado. Ele de fato mudou de time e jogou pelo Santa
Cruz, mas a final foi contra o próprio América").
Mas depois eu não passei a jogar
no segundo time, não. Abandonei
o futebol (tinha então 16 anos).
Folha - Por que abandonou o
futebol?
João Cabral - Porque comecei a
ter outros interesses intelectuais, e
futebol me tomava muito tempo.
Foi o tempo também que eu acabei o colégio, de forma que não...
Folha - No Rio de Janeiro, o sr.
também torce pelo América. Foi
por influência do América pernambucano?
João Cabral - Exato. E o América aqui (no Rio) também está
ruinzinho, não é?...
Folha - Qual a participação do
futebol na sua obra?
João Cabral - Escrevi um poeminha falando do torcedor do
América, chama-se "O Torcedor
do América F.C.". Escrevi poemas
também sobre Ademir Menezes,
o célebre Ademir, que foi do Vasco. Ele jogava no Sport no tempo
em que eu jogava no América.
Apenas Ademir continuou. E foi
um grande jogador (o atacante,
artilheiro da Copa de 50, foi amigo de João Cabral e seus irmãos).
Tem também um poema sobre
Ademir da Guia, tem um outro
também, "O Futebol Brasileiro
Evocado na Europa". Tenho impressão que eu tenho outro que
não me lembro agora (pausa). É...
"De um Jogador Brasileiro a um
Técnico Espanhol" (à exceção do
último, do livro "Agrestes", todos
os outros citados foram publicados em "Museu de Tudo").
Nota da edição: A entrevista com João Cabral de Melo Neto foi feita no dia 5 de outubro, como parte de reportagem sobre times
que um dia foram importantes no futebol
brasileiro e seus torcedores ilustres. A reportagem será publicada no próximo domingo
em Esporte.
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