São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
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AS ARTES PLÁSTICAS

Cabral considerava pintura como a "grande arte"

CASSIANO ELEK MACHADO
Editor-assistente interino da Ilustrada

João Cabral dizia que a grande arte não era a literatura, mas a pintura. Essa convicção lhe acompanhou desde cedo. E fez com que chegasse a sujar as mãos com tinta, quando jovem. Entre os anos de 1939 e 1940, Cabral pintou com muita frequência, segundo relato da irmã mais nova do poeta, Maria de Lourdes.
O escritor não usava cavaletes. Pintava com as telas apoiadas sobre uma mesa. Em tempos em que a arte ainda era eminentemente figurativa, Cabral criava pintura abstrata (Fernando Cabral de Melo, primo do poeta, ganhou dele duas telas abstratas feitas em 1940).
A relação com os pincéis não foi duradoura, mas o amor à pintura tingiu toda a sua trajetória.
Antonio Candido, na primeira crítica importante feita sobre o poeta (leia na pág. Especial-4), salientou: "As palavras, que têm um poder sugestivo maior ou menor conforme as relações que as ligam umas com as outras, se dispõem nos seus poemas quase como valores plásticos, nesse sistema fechado que assume às vezes o caráter de composição pictórica, e a beleza nasce da sua interrelação".
O crítico comentava "Pedra do Sono", de 1942. Nesse mesmo livro, João Cabral publica o poema "Homenagem a Picasso", no qual escreve: "Não há música aparentemente nos violinos fechados. Apenas os recortes dos jornais diários acenam para mim como o juízo final".
Picasso continuou por muitos anos figurando em sua pinacoteca de pintores prediletos. Mas foi com outros artistas espanhóis que o autor de "Museu de Tudo" manteve relações mais estreitas.
A mais importante delas foi com Joan Miró (1893-1983). Ele e Cabral se conheceram em 1947, quando Miró já havia colocado seus asteriscos na história da arte.
Três anos depois, o poeta lançou na Espanha "Joan Miró", ensaio publicado com a companhia de gravuras originais do artista catalão. "A obra de Miró é, essencialmente, uma luta para devolver ao pintor uma liberdade de composição há muito tempo perdida", escreve Cabral.
Para ele, o catalão não seria o primeiro pintor do mundo a abandonar a terceira dimensão, mas seria "o primeiro a compreender que o tratamento da superfície como superfície libertava o pintor de todo um conceito de composição".
Na radiografia que traça da arte de Miró, Cabral salienta essa liberdade de composição ao apontar a inexistência de sistemas que norteassem seu processo criativo: "Não existe uma gramática Miró. Mais ainda: Miró não só não a formulou jamais como, e estou seguro disso, não possui um conceito exato do que tecnicamente, ou esteticamente, pode constituir sua maneira atual de compor".
Em entrevista a Antonio Carlos Secchim, para o livro "João Cabral: a Poesia do Menos" (Livraria Duas Cidades, 1985), o poeta leva o que esboçara em "Joan Miró" mais adiante.
"A grande arte, para mim, é a pintura. Não como teoria: em geral, os pintores são maus teóricos. Miró quase não tem teoria: quando leu meu livrinho sobre ele, não entendeu nada. É um pintor-operário", diz. E esse "artista industrial" estaria, na visão de João Cabral, intimamente ligado à fatura artística, ao passo em que estaria absolutamente desinteressado pelos temas da pintura.
"Ele era um pintor muito pouco literário", escreveu.
A falta de literariedade que observava em Miró, Cabral não vislumbrava no trabalho de outro catalão, o poeta conceitual e também artista plástico Joan Brossa, de quem também foi amigo.
Cabral elogiava a produção visual de Brossa. Brossa elogiava a crítica de arte feita por Cabral.
Em entrevista publicada pela Folha, em 1993, o artista catalão mapeia a relação de Cabral com as artes: "Me lembro de que ele tinha uma maneira especial de valorizar a pintura. Dividia os pintores em dois grupos: o grupo A era formado pelos pintores que pintam sem ter em conta a moldura da tela; o grupo B, por aqueles que pintam tendo em conta a moldura da tela. Eu o considero um crítico extraordinário".
Considerado um dos maiores pintores espanhóis vivos, Antoni Tàpies, que assim como Brossa pertenceu ao grupo de vanguarda catalão "Dau al set" (O dado de sete lados), é outro dos vértices que ligam Cabral às artes.
"Tivemos uma amizade muito instrutiva", disse em entrevista à Folha em 1996.
O poeta teria sido o responsável por apresentar o marxismo ao artista catalão, em 1947. "Cabral conhecia as ideologias modernas e nós estávamos fechados naquele cárcere coletivo que era a ditadura espanhola. Ele me ajudou a ter maior consciência ideológica", disse Tàpies, artista marcado pelo humanismo.
Um ano antes, o mesmo artista salientara a importância da passagem de Cabral por Barcelona. "Ele nos ajudou a ver um outro aspecto da modernidade, a nós que estávamos muito tomados pelo surrealismo e dadaísmo."
Curiosamente, foi a arquitetura, e não a pintura ou a literatura, a responsável por criar o mesmo efeito em Cabral. "A arquitetura de Le Corbusier ajudou a me livrar da dicção noturna e mórbida do surrealismo", disse o poeta dos textos secos, em 1994. Secura que não deixou de motivar comparações com artistas plásticos.
Se sua poesia virasse pintura, provavelmente não teria as feições explosivas e alegres de Miró, nem a generosidade na massa pictórica de Tàpies. Como já disse o crítico e poeta Haroldo de Campos, "Cabral trabalha com blocos que funcionam como retângulos num quadro de Mondrian".


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