São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
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O VIAJANTE

Do Nordeste para a Espanha, da Espanha para o Nordeste

MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação

Certa vez, numa de suas entrevistas, João Cabral de Melo Neto disse: "Eu não tenho biografia. Minha biografia é: em tanto de tanto foi para tal lugar. Em tanto de tanto foi para tal lugar, essa é a biografia que tenho".
Se se quisesse resumir mais ainda, seria possível condensar seu percurso numa única frase: "Nos anos 40, Cabral saiu do Nordeste e foi para a Espanha". Aí estão, entre Pernambuco e Andaluzia, Recife e Sevilha, as principais marcas da biografia e da poesia de Cabral.
Nascido em 1920 numa tradicional família do Recife, primo de Manuel Bandeira e Gilberto Freyre, Cabral iria acabar batendo nas costas da Espanha em 1947, levado por suas funções de diplomata.
A partir de então, Nordeste e Espanha confeririam uma espécie de dupla naturalidade ao poeta.
Criado em engenhos de cana-de-açúcar de Pernambuco, João Cabral voltava insistentemente ao lugar de origem. "Meu pai mandou fazer um engenho em miniatura para que eu e meu irmão aprendêssemos a fazer açúcar", lembrava o poeta em 1991.
O mesmo canavial, quase mítico, abria o livro "A Educação pela Pedra" (1965): "O que o mar sim aprende do canavial:/ a elocução horizontal de seu verso;/a geórgica de cordel, ininterrupta,/ narrada em voz e silêncio paralelos".
Mas a imagem cabralina do Nordeste que está mais entranhada na memória dos leitores não é certamente essa, líquida, do "derramar-se da cana".
O Nordeste de Cabral que vem primeiro à memória é aquele do seu livro mais famoso, "Morte e Vida Severina" (1955), o lugar onde se morre "de fome um pouco por dia". Por ironia, esse era o livro que ele menos apreciava, por ser "o menos trabalhado".

Um "poeta da esquerda"
Por isso, muitos críticos consideravam Cabral um "poeta da esquerda", embora o cidadão João Cabral de Melo Neto teimasse em disfarçar suas inclinações políticas -quem sabe por ter sido embaixador numa época de regimes militares.
Mas sabe-se que, nos anos mais pesados da história brasileira, a casa do poeta na Espanha costumava ser generosa aos que tinham de deixar o país.
Se o Nordeste era "onde começamos/ a ser Brasil (talvez por erro)", a Espanha, com a mesma "solaridade" nordestina -mas sem a mesma miséria-, tornou-se a contrapartida mais "feliz" para o "erro" histórico denunciado pelo versos.
De fato, a Espanha que aparece nos poemas de Cabral nasce da mistura entre a clareza mediterrânea e a miséria de um país também atrasado, mas sem os mesmos contrastes do Brasil (é bom lembrar que a Espanha de Cabral é anterior ao boom econômico das duas últimas décadas).
A sensualidade e a luminosidade espanhola, com a qual o Nordeste se afina, seria no entanto menos triste que a nordestina.
No poema "Lições de Sevilha", de "Sevilha Andando" (1993), Cabral diz: "Tenho Sevilha em minha cama,/ eis que Sevilha se fez carne,/ eis-me habitando Sevilha/ como é impossível de habitar-se".
Mesmo a religiosidade do sevilhano é menos sombria e carregada que aquela assimilada na infância, no Colégio Marista do Recife, onde Cabral estudou.
Basta comparar os poemas "El "Embrujo" de Sevilha" e "As Latrinas do Colégio Marista do Recife":
"Não há tal "embrujo" em Sevilha./ Tudo é solar e sem mistério/ e a superstição do sevilhano/ é um manso animal doméstico"
"Lavar, na teologia marista/ é coisa da alma, o corpo é do diabo;/ a castidade dispensa a higiene/ do corpo, e de onde ir defecá-lo"
Ao exaltar Espanha e Sevilha, adotando-as como pátria utópica, Cabral, que dizia não gostar de utopias, estava também falando implicitamente da necessidade de "civilizar" o Brasil, sobretudo sua parte mais pobre.
"Como é impossível, por enquanto/ civilizar toda a terra,/ o que não veremos, verão,/ de certo, nossas tetranetas,// infundir na terra esse alerta,/ fazê-la uma enorme Sevilha,/ que é a contra-pelo, onde uma viva/ guerrilha do ser, pode a guerra." ("Sevilhizar o Mundo", em "Andando Sevilha").


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