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O VIAJANTE
Do Nordeste para a Espanha, da Espanha para o Nordeste
MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação
Certa vez, numa de suas entrevistas, João Cabral de Melo Neto
disse: "Eu não tenho biografia.
Minha biografia é: em tanto de
tanto foi para tal lugar. Em tanto
de tanto foi para tal lugar, essa é a
biografia que tenho".
Se se quisesse resumir mais ainda, seria possível condensar seu
percurso numa única frase: "Nos
anos 40, Cabral saiu do Nordeste e
foi para a Espanha". Aí estão, entre Pernambuco e Andaluzia, Recife e Sevilha, as principais marcas
da biografia e da poesia de Cabral.
Nascido em 1920 numa tradicional família do Recife, primo de
Manuel Bandeira e Gilberto Freyre, Cabral iria acabar batendo nas
costas da Espanha em 1947, levado por suas funções de diplomata.
A partir de então, Nordeste e Espanha confeririam uma espécie
de dupla naturalidade ao poeta.
Criado em engenhos de cana-de-açúcar de Pernambuco, João
Cabral voltava insistentemente ao
lugar de origem. "Meu pai mandou fazer um engenho em miniatura para que eu e meu irmão
aprendêssemos a fazer açúcar",
lembrava o poeta em 1991.
O mesmo canavial, quase mítico, abria o livro "A Educação pela
Pedra" (1965): "O que o mar sim
aprende do canavial:/ a elocução
horizontal de seu verso;/a geórgica de cordel, ininterrupta,/ narrada em voz e silêncio paralelos".
Mas a imagem cabralina do
Nordeste que está mais entranhada na memória dos leitores não é
certamente essa, líquida, do "derramar-se da cana".
O Nordeste de Cabral que vem
primeiro à memória é aquele do
seu livro mais famoso, "Morte e
Vida Severina" (1955), o lugar onde se morre "de fome um pouco
por dia". Por ironia, esse era o livro que ele menos apreciava, por
ser "o menos trabalhado".
Um "poeta da esquerda"
Por isso, muitos críticos consideravam Cabral um "poeta da esquerda", embora o cidadão João
Cabral de Melo Neto teimasse em
disfarçar suas inclinações políticas -quem sabe por ter sido embaixador numa época de regimes
militares.
Mas sabe-se que, nos anos mais
pesados da história brasileira, a
casa do poeta na Espanha costumava ser generosa aos que tinham de deixar o país.
Se o Nordeste era "onde começamos/ a ser Brasil (talvez por erro)", a Espanha, com a mesma
"solaridade" nordestina -mas
sem a mesma miséria-, tornou-se a contrapartida mais "feliz" para o "erro" histórico denunciado
pelo versos.
De fato, a Espanha que aparece
nos poemas de Cabral nasce da
mistura entre a clareza mediterrânea e a miséria de um país também atrasado, mas sem os mesmos contrastes do Brasil (é bom
lembrar que a Espanha de Cabral
é anterior ao boom econômico
das duas últimas décadas).
A sensualidade e a luminosidade espanhola, com a qual o Nordeste se afina, seria no entanto
menos triste que a nordestina.
No poema "Lições de Sevilha",
de "Sevilha Andando" (1993), Cabral diz: "Tenho Sevilha em minha cama,/ eis que Sevilha se fez
carne,/ eis-me habitando Sevilha/
como é impossível de habitar-se".
Mesmo a religiosidade do sevilhano é menos sombria e carregada que aquela assimilada na infância, no Colégio Marista do Recife, onde Cabral estudou.
Basta comparar os poemas "El
"Embrujo" de Sevilha" e "As Latrinas do Colégio Marista do Recife":
"Não há tal "embrujo" em Sevilha./
Tudo é solar e sem mistério/ e a
superstição do sevilhano/ é um
manso animal doméstico"
"Lavar, na teologia marista/ é coisa da alma, o corpo é do diabo;/ a
castidade dispensa a higiene/ do
corpo, e de onde ir defecá-lo"
Ao exaltar Espanha e Sevilha,
adotando-as como pátria utópica,
Cabral, que dizia não gostar de
utopias, estava também falando
implicitamente da necessidade de
"civilizar" o Brasil, sobretudo sua
parte mais pobre.
"Como é impossível, por enquanto/ civilizar toda a terra,/ o
que não veremos, verão,/ de certo,
nossas tetranetas,// infundir na
terra esse alerta,/ fazê-la uma
enorme Sevilha,/ que é a contra-pelo, onde uma viva/ guerrilha do
ser, pode a guerra." ("Sevilhizar o
Mundo", em "Andando Sevilha").
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