São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
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TEATRO

"Morte e Vida Severina" e a música do poeta seco

NELSON DE SÁ
da Reportagem Local

No meio do turbilhão de adjetivos que costuma ser usado para descrever a "substantiva" poesia de João Cabral de Melo Neto -adjetivos como seca, enxuta, antisentimental, essencial-, aparece às vezes "antilírica".
Já se escreveu abertamente, por outro lado, sobre a ausência de música, até mesmo sobre a rejeição à música, no poeta pernambucano. Pode ser, no restante da poesia tão precisa -outro adjetivo- de João Cabral. Mas não se entende como é possível aplicar juízos tão fechados e definitivos para uma peça de teatro como "Morte e Vida Severina", sua obra mais conhecida.
Chico Buarque de Hollanda, que compôs a música para o espetáculo de 1966, na montagem que fez história no teatro e tornou "Morte e Vida Severina" tão popular, disse então que nada havia composto, que toda a música já estava lá, na redondilha, na rima toante -e ele só fez realçar a sua presença.
A peça havia sido escrita mais de dez anos antes, para atender a um pedido da autora Maria Clara Machado, mas foi só com o realce de sua música por Chico Buarque, então novato na canção popular, que ela alcançou impacto.
Impacto -pode-se especular- no próprio João Cabral, que, alguns anos atrás, se perguntava, depois de reconhecer "necessidade de lirismo" no homem, se tal necessidade não é suprida hoje pela canção popular.
Não é fácil separar uma da outra, a poesia da música, em "Morte e Vida Severina", mas sempre se tentou, como se houvesse um poema dramático puro, que passou por uma adaptação naquela montagem de 66.
Até o poeta se revoltava. Ele teria dito, uma vez: "Eu fico irritado quando leio "adaptação do poema de João Cabral". Isso é bobagem. "Morte e Vida Severina" é uma peça".
Aliás, é o que afirma o subtítulo, "Auto de Natal Pernambucano". O auto de Natal, um gênero que resiste ainda hoje nas paróquias, tem origem medieval e ibérica e foi especialmente importante para o teatro pernambucano dos anos 50, mais conhecido, talvez, pelas peças de Ariano Suassuna -ele também fascinado pela herança cultural ibérica.
No caso de "Morte e Vida Severina", o que se tem é a oposição entre a morte, que está em tudo o que cerca o retirante Severino, e a vida, que é retratada no carpinteiro ou "mestre carpina" José, que busca convencer Severino a não se matar no final -e que, por fim, recebe a informação do nascimento de seu filho, iniciando júbilo e festa.
Como no poema "O Cão sem Plumas", escrito poucos anos antes na Espanha, o cenário da viagem de Severino até Recife é o rio Capiberibe. Um cenário de miséria e morte, que está em toda parte. Também como em "O Cão sem Plumas", que iniciou tal movimento em João Cabral, a poesia é "popular", por vezes abertamente cômica.
Entre as cenas, uma chama especial atenção nesse sentido: é a cena dos coveiros, invariavelmente, porém, a menos satisfatória nas recorrentes montagens de "Morte e Vida Severina".
Foi assim, por exemplo, no espetáculo do grupo Tapa dirigido em 96 por Silnei Siqueira, o mesmo encenador da produção histórica do Tuca, em 66.
A nova encenação de Siqueira indicou alguns problemas que surgem ao tentar fazer de João Cabral e sua obra-prima "nossos contemporâneos".
Não é fácil associar a tragédia dos retirantes à dos sem-terra, já que Severino foge da terra como foge da morte.
E não é fácil encontrar no teatro brasileiro corrente um elenco, nas proporções exigidas, que dê voz de qualidade à sua poesia.
Mas o impacto da miséria, como espelhada nos versos cortantes e em sua música, que ecoam -com o perdão da heresia- uma devoção católica, se repete a cada nova montagem.
Por fim, vale registrar uma outra incursão de João Cabral de Melo Neto pelo teatro, ainda que nem o próprio reconheça como tal, que se saiba, e também não se tenha conhecimento de encenações. O "Auto do Frade", escrito entre 1981 e 1983, também vai ao teatro católico medieval em seu desenho.
À semelhança de um auto da Paixão, esse "poema para vozes" retrata a procissão para a morte por enforcamento de Joaquim do Amor Divino Rabelo, o Frei Caneca.
Numa passagem, o condenado diz, na ironia do poeta sobre si mesmo: "Se é procissão que me fazem/ Mudou muito a liturgia:/ ... É tudo muito formal/ para ser uma romaria".




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