|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TEATRO
"Morte e Vida Severina" e a música do poeta seco
NELSON DE SÁ
da Reportagem Local
No meio do turbilhão de adjetivos que costuma ser usado para
descrever a "substantiva" poesia
de João Cabral de Melo Neto
-adjetivos como seca, enxuta,
antisentimental, essencial-, aparece às vezes "antilírica".
Já se escreveu abertamente, por
outro lado, sobre a ausência de
música, até mesmo sobre a rejeição à música, no poeta pernambucano. Pode ser, no restante da
poesia tão precisa -outro adjetivo- de João Cabral. Mas não se
entende como é possível aplicar
juízos tão fechados e definitivos
para uma peça de teatro como
"Morte e Vida Severina", sua obra
mais conhecida.
Chico Buarque de Hollanda,
que compôs a música para o espetáculo de 1966, na montagem que
fez história no teatro e tornou
"Morte e Vida Severina" tão popular, disse então que nada havia
composto, que toda a música já
estava lá, na redondilha, na rima
toante -e ele só fez realçar a sua
presença.
A peça havia sido escrita mais
de dez anos antes, para atender a
um pedido da autora Maria Clara
Machado, mas foi só com o realce
de sua música por Chico Buarque,
então novato na canção popular,
que ela alcançou impacto.
Impacto -pode-se especular- no próprio João Cabral,
que, alguns anos atrás, se perguntava, depois de reconhecer "necessidade de lirismo" no homem,
se tal necessidade não é suprida
hoje pela canção popular.
Não é fácil separar uma da outra, a poesia da música, em "Morte e Vida Severina", mas sempre
se tentou, como se houvesse um
poema dramático puro, que passou por uma adaptação naquela
montagem de 66.
Até o poeta se revoltava. Ele teria dito, uma vez: "Eu fico irritado
quando leio "adaptação do poema
de João Cabral". Isso é bobagem.
"Morte e Vida Severina" é uma peça".
Aliás, é o que afirma o subtítulo,
"Auto de Natal Pernambucano".
O auto de Natal, um gênero que
resiste ainda hoje nas paróquias,
tem origem medieval e ibérica e
foi especialmente importante para o teatro pernambucano dos
anos 50, mais conhecido, talvez,
pelas peças de Ariano Suassuna
-ele também fascinado pela herança cultural ibérica.
No caso de "Morte e Vida Severina", o que se tem é a oposição
entre a morte, que está em tudo o
que cerca o retirante Severino, e a
vida, que é retratada no carpinteiro ou "mestre carpina" José, que
busca convencer Severino a não
se matar no final -e que, por fim,
recebe a informação do nascimento de seu filho, iniciando júbilo e festa.
Como no poema "O Cão sem
Plumas", escrito poucos anos antes na Espanha, o cenário da viagem de Severino até Recife é o rio
Capiberibe. Um cenário de miséria e morte, que está em toda parte. Também como em "O Cão
sem Plumas", que iniciou tal movimento em João Cabral, a poesia
é "popular", por vezes abertamente cômica.
Entre as cenas, uma chama especial atenção nesse sentido: é a
cena dos coveiros, invariavelmente, porém, a menos satisfatória
nas recorrentes montagens de
"Morte e Vida Severina".
Foi assim, por exemplo, no espetáculo do grupo Tapa dirigido
em 96 por Silnei Siqueira, o mesmo encenador da produção histórica do Tuca, em 66.
A nova encenação de Siqueira
indicou alguns problemas que
surgem ao tentar fazer de João Cabral e sua obra-prima "nossos
contemporâneos".
Não é fácil associar a tragédia
dos retirantes à dos sem-terra, já
que Severino foge da terra como
foge da morte.
E não é fácil encontrar no teatro
brasileiro corrente um elenco, nas
proporções exigidas, que dê voz
de qualidade à sua poesia.
Mas o impacto da miséria, como espelhada nos versos cortantes e em sua música, que ecoam
-com o perdão da heresia-
uma devoção católica, se repete a
cada nova montagem.
Por fim, vale registrar uma outra incursão de João Cabral de
Melo Neto pelo teatro, ainda que
nem o próprio reconheça como
tal, que se saiba, e também não se
tenha conhecimento de encenações. O "Auto do Frade", escrito
entre 1981 e 1983, também vai ao
teatro católico medieval em seu
desenho.
À semelhança de um auto da
Paixão, esse "poema para vozes"
retrata a procissão para a morte
por enforcamento de Joaquim do
Amor Divino Rabelo, o Frei Caneca.
Numa passagem, o condenado
diz, na ironia do poeta sobre si
mesmo: "Se é procissão que me
fazem/ Mudou muito a liturgia:/
... É tudo muito formal/ para ser
uma romaria".
Texto Anterior: Do Nordeste para a Espanha, da Espanha para o Nordeste Próximo Texto: Modesto Carone: Cabral jamais poetizou seu poema Índice
|