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"Saiu sem alarde"
ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas
"Só duas coisas", dizia ele, conseguiram levá-lo a um poema: "o
Pernambuco" e "a Andaluzia".
Sertão e Sevilha são os dois pólos
entre os quais vem se estender o
arco dessa poesia, vista em retrospecto pelo próprio poeta pernambucano, ex-cônsul brasileiro na
Espanha. Sertão e Sevilha tem outro sentido, ali: um sentido que só
se aprende com João Cabral, e que
é hoje um patrimônio da nossa
cultura.
Educação pela pedra, escola das
facas: talvez só um escritor nascido e criado num ambiente de português tão rico, como Pernambuco, pudesse se disciplinar para
chegar a tamanha magreza da língua. A "elocução horizontal de
seus versos" não permite enlevo e
desbragamento; nem mesmo a
retórica de seus mestre Drummond parece suficientemente
"pedra" para a poesia de Cabral.
Á sua voz "inenfática, impessoal", corresponde uma "lição de
moral", ou "resistência fria", que
pôde se traduzir em resistência
enfática nos anos em que isso se
impôs. A preocupação social na
sua poesia nem sempre está explícita, mas nunca fica longe das "fábulas" de "um arquiteto" diurno e
solar, votado ao "ar luz razão certa" - seja nas formas, seja nos sentidos da literatura.
O ar e a luz da Espanha, parentes do agreste, fazem brotar nessa
poesia outra vivacidade. Não seria
preciso escrever estudos sobre
uma "bailadora andaluza" para
descobrir, em versos, essa energia
nova da percepção. Mas a coincidência da vida espanhola da imaginação com a Espanha em si
transporta Cabral para uma outra
metade da sua poesia. São poucos
os que vêem nela um repertório
comparável ao primeiro; mas que
leitor não habita, hoje, dentro de
si, esse outro país que foi João Cabral quem nos mostrou?
Foi lá, também, que ele pôde enfrentar, de frente, uma terceira
educação: depois da pedra e das
facas, e depois de Andaluzia, a
educação pela (ou para) a morte.
Volta aos "Agrestes", depois, mas
volta com olho viajado. Como em
Elisabeth Bishop, ou Paul Valéry,
poetas que ele admirava, sua linguagem mais madura "não
agranda e nem diminui". É uma
lente que filtra o essencial, "que
todos vemos mas não vemos / até
o chegar a falar dele".
Juntamente com Drummond,
Cabral foi, por consenso, o maior
poeta da língua brasileira contemporânea. Mas fora do âmbito
da nossa literatura sua poesia não
é bem conhecida, a despeito de
prêmios e traduções. E mesmo
para nós não é tão clara a dimensão que atingirá, vista como um
todo, agora que se pode falar de
Obras Completas.
A presença de Cabral na cultura
brasileira era discreta nos gestos,
mas tinha a autoridade modesta
de sua grandeza, que ninguém
contesta. Sua poesia há muito já
se deu para as recriações da leitura e do comentário, que não vão
acabar nunca. Sempre respeitoso,
o poeta manteve distância de polêmicas, e preferiu a solidão de
sua própria literatura.
Saiu sem alarde e sem choro, fiel
à pedra e às facas, e ao sol a pino
de Sevilha. A terceira educação já
se anunciava há mais de cinqüenta anos, e pode servir de epígrafe
para sua vida e sua obra: "Saio de
meu poema / como quem lava as
mãos".
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