|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Cabral transitou por três paisagens
AUGUSTO MASSI
especial para a Folha
"Morreu João Cabral." O recado, deixado na secretária eletrônica, desdramatiza qualquer pensamento sobre a morte. Dito assim,
a palo seco, a máquina do poema
parece repetir os versos do poeta:
"A morte alheia tem anedota/
Que prende o morto ao dia-a-dia,/ Que ainda o obriga a estar
conosco:/ Já morto, ainda aniversaria". A notícia de sua morte nos
transporta à prosa residual de sua
vida. É como se, neste último telefonema, dissesse: "Eu dei notícias".
Difícil condensar em algumas
linhas o curso de uma vida. Do
ponto de vista espacial, três paisagens compõem o roteiro biográfico do poeta: Pernambuco, Rio de
Janeiro e Sevilha.
Pernambuco
João Cabral de Melo Neto nasceu em 9 de janeiro de 1920, às
margens do rio Capibaribe e viveu parte de sua infância nos engenhos Poço do Aleixo, Pacoval e
Dois Irmãos.
Aos dez anos, mudou-se com a
família para o Recife. Ingressou
no colégio dos irmãos maristas,
onde concluiu o secundário. Embora torcedor do América, em
1935 foi campeão juvenil jogando
pelo Santa Cruz.
Começou a frequentar o Café
Lafayette, ponto de encontro de
intelectuais, entre eles o poeta e
crítico Willy Levin e o pintor Vicente do Rego Monteiro.
Anos mais tarde, revisitará esta
paisagem histórica e social em
longos poemas, como "O Rio ou
Relação da Viagem Que Faz o Capibaribe de Sua Nascente à Cidade do Recife" (1954), "Morte e Vida Severina: Auto de Natal Pernambucano" (1956), "Dois Parlamentos" (1961) e "Auto do Frade"
(1984).
Rio de Janeiro
Na década de 40, mudou para o
Rio de Janeiro, onde travou amizade com algumas das principais
vozes da poesia modernista: Manuel Bandeira, Murilo Mendes e,
principalmente, Carlos Drummond de Andrade. É sob a influência destes dois últimos que,
em 1942, publica o livro de estréia,
"Pedra do Sono".
Foi frequentador assíduo dos
cafés Amarelinho e Vermelhinho.
Em constante diálogo com
Drummond, escreve "Os Três
Mal-Amados" (1943) inspirado
no poema "Quadrilha", de autoria do poeta mineiro.
Em 45, ingressa na carreira diplomática e lança seu terceiro livro, "O Engenheiro", no qual esboça as bases construtivas de sua
poética.
O diálogo com os modernistas
cede terreno às idéias do arquiteto
Le Corbusier e às teorias poéticas
de Paul Valéry. Dentro desta nova
configuração intelectual, surgem
dois livros fundamentais: "Psicologia da Composição" (1947) e "O
Cão sem Plumas" (1950). Casa-se
com Estela de Oliveira, com quem
terá cinco filhos: Rodrigo, Inês,
Luiz, Isabel e João.
Espanha
Em 1947, aos 27 anos de idade,
desembarca em Barcelona na
condição de vice-cônsul. A Espanha irá se transformar na sua segunda pátria.
Dentre tantos anos morando fora do Brasil, 14 deles foram vividos na Espanha. Além de tornar-se amigo de Joan Miró, escreve
em 1950 um ensaio absolutamente genial sobre a obra do artista
catalão. Na condição de editor e
animador cultural, teve uma participação decisiva para o grupo de
vanguarda Dau Al Set.
Publica, em sua prensa manual,
"Sonets de Caruixa", de Joan
Brossa, e escreve o texto de apresentação do catálogo da primeira
exposição do pintor catalão Antonio Tàpies.
Como se não bastasse, alguns
dos principais temas de sua poesia -o flamenco, as touradas, a
bailadora andaluza- estão vinculados a esse país. Deste período,
datam livros como "Paisagens
com Figuras" (1955), "Quaderna"
(1960) e "Serial" (1961).
Volta ao Brasil
Apesar de ter servido em outros
países -Inglaterra, Suíça, Senegal, Honduras- , os três espaços
citados acima continuaram sendo
os lugares de eleição do poeta,
verdadeiras idéias fixas do seu
memorialismo materialista.
Em 1986, casou-se com a poeta
Marly de Oliveira. Um ano depois, regressou definitivamente
ao Brasil. Nos últimos anos, dentro de um viés memorialístico, escreveu algumas obras de alta voltagem literária: "A Escola das Facas" (1979), "Agrestes" (1985) e
"Crime na Calle Relator" (1987).
Desde 1995, devido a problemas
de visão, o escritor estava impossibilitado de ler, uma de suas
grandes paixões.
Sem dúvida alguma, João Cabral foi um dos poetas mais importantes do século 20. Sua obra
representa um diálogo fecundo
entre a melhor tradição ibérica e o
modernismo de linhagem construtivista. Dentro do quadro brasileiro, significou sempre um estímulo e uma influência catalisadora.
O caminho trilhado de "Pedra
do Sono" (1942) à "Educação pela
Pedra" (1966), considerado por
ele mesmo sua melhor obra, fez
da poesia uma das aventuras intelectuais mais importantes da cultura brasileira.
Diversas coisas se alinham na
memória numa prateleira com o
rótulo: João Cabral. Coisas como
de cabeceira da memória, a um
tempo coisas e no próprio índice;
e pois que em índice: densas, recortadas, bem legíveis em suas
formas simples. A primeira análise de poema, a primeira entrevista
no seu apartamento no Flamengo, a sua voz ao telefone, os seus
livros na estante.
Vai ser difícil, daqui para a frente, tecer a manhã.
Texto Anterior: Carlos Heitor Cony: Estrofes construíam catedrais Próximo Texto: Candido comenta texto em que fez a descoberta de Cabral Índice
|