São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
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Cabral transitou por três paisagens

AUGUSTO MASSI
especial para a Folha

"Morreu João Cabral." O recado, deixado na secretária eletrônica, desdramatiza qualquer pensamento sobre a morte. Dito assim, a palo seco, a máquina do poema parece repetir os versos do poeta: "A morte alheia tem anedota/ Que prende o morto ao dia-a-dia,/ Que ainda o obriga a estar conosco:/ Já morto, ainda aniversaria". A notícia de sua morte nos transporta à prosa residual de sua vida. É como se, neste último telefonema, dissesse: "Eu dei notícias".
Difícil condensar em algumas linhas o curso de uma vida. Do ponto de vista espacial, três paisagens compõem o roteiro biográfico do poeta: Pernambuco, Rio de Janeiro e Sevilha.

Pernambuco
João Cabral de Melo Neto nasceu em 9 de janeiro de 1920, às margens do rio Capibaribe e viveu parte de sua infância nos engenhos Poço do Aleixo, Pacoval e Dois Irmãos.
Aos dez anos, mudou-se com a família para o Recife. Ingressou no colégio dos irmãos maristas, onde concluiu o secundário. Embora torcedor do América, em 1935 foi campeão juvenil jogando pelo Santa Cruz.
Começou a frequentar o Café Lafayette, ponto de encontro de intelectuais, entre eles o poeta e crítico Willy Levin e o pintor Vicente do Rego Monteiro.
Anos mais tarde, revisitará esta paisagem histórica e social em longos poemas, como "O Rio ou Relação da Viagem Que Faz o Capibaribe de Sua Nascente à Cidade do Recife" (1954), "Morte e Vida Severina: Auto de Natal Pernambucano" (1956), "Dois Parlamentos" (1961) e "Auto do Frade" (1984).

Rio de Janeiro
Na década de 40, mudou para o Rio de Janeiro, onde travou amizade com algumas das principais vozes da poesia modernista: Manuel Bandeira, Murilo Mendes e, principalmente, Carlos Drummond de Andrade. É sob a influência destes dois últimos que, em 1942, publica o livro de estréia, "Pedra do Sono".
Foi frequentador assíduo dos cafés Amarelinho e Vermelhinho. Em constante diálogo com Drummond, escreve "Os Três Mal-Amados" (1943) inspirado no poema "Quadrilha", de autoria do poeta mineiro.
Em 45, ingressa na carreira diplomática e lança seu terceiro livro, "O Engenheiro", no qual esboça as bases construtivas de sua poética.
O diálogo com os modernistas cede terreno às idéias do arquiteto Le Corbusier e às teorias poéticas de Paul Valéry. Dentro desta nova configuração intelectual, surgem dois livros fundamentais: "Psicologia da Composição" (1947) e "O Cão sem Plumas" (1950). Casa-se com Estela de Oliveira, com quem terá cinco filhos: Rodrigo, Inês, Luiz, Isabel e João.

Espanha
Em 1947, aos 27 anos de idade, desembarca em Barcelona na condição de vice-cônsul. A Espanha irá se transformar na sua segunda pátria.
Dentre tantos anos morando fora do Brasil, 14 deles foram vividos na Espanha. Além de tornar-se amigo de Joan Miró, escreve em 1950 um ensaio absolutamente genial sobre a obra do artista catalão. Na condição de editor e animador cultural, teve uma participação decisiva para o grupo de vanguarda Dau Al Set.
Publica, em sua prensa manual, "Sonets de Caruixa", de Joan Brossa, e escreve o texto de apresentação do catálogo da primeira exposição do pintor catalão Antonio Tàpies.
Como se não bastasse, alguns dos principais temas de sua poesia -o flamenco, as touradas, a bailadora andaluza- estão vinculados a esse país. Deste período, datam livros como "Paisagens com Figuras" (1955), "Quaderna" (1960) e "Serial" (1961).

Volta ao Brasil
Apesar de ter servido em outros países -Inglaterra, Suíça, Senegal, Honduras- , os três espaços citados acima continuaram sendo os lugares de eleição do poeta, verdadeiras idéias fixas do seu memorialismo materialista.
Em 1986, casou-se com a poeta Marly de Oliveira. Um ano depois, regressou definitivamente ao Brasil. Nos últimos anos, dentro de um viés memorialístico, escreveu algumas obras de alta voltagem literária: "A Escola das Facas" (1979), "Agrestes" (1985) e "Crime na Calle Relator" (1987). Desde 1995, devido a problemas de visão, o escritor estava impossibilitado de ler, uma de suas grandes paixões.
Sem dúvida alguma, João Cabral foi um dos poetas mais importantes do século 20. Sua obra representa um diálogo fecundo entre a melhor tradição ibérica e o modernismo de linhagem construtivista. Dentro do quadro brasileiro, significou sempre um estímulo e uma influência catalisadora.
O caminho trilhado de "Pedra do Sono" (1942) à "Educação pela Pedra" (1966), considerado por ele mesmo sua melhor obra, fez da poesia uma das aventuras intelectuais mais importantes da cultura brasileira.
Diversas coisas se alinham na memória numa prateleira com o rótulo: João Cabral. Coisas como de cabeceira da memória, a um tempo coisas e no próprio índice; e pois que em índice: densas, recortadas, bem legíveis em suas formas simples. A primeira análise de poema, a primeira entrevista no seu apartamento no Flamengo, a sua voz ao telefone, os seus livros na estante.
Vai ser difícil, daqui para a frente, tecer a manhã.


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