São Paulo, quarta-feira, 11 de fevereiro de 2004

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ELIO GASPARI

Esta é a cota que te cabe deste latifúndio

Muita gente boa acredita que os policiais devem estar prontos para meter um tiro na cara do bandido. De acordo com o que contaram na delegacia, foi essa a idéia que tiveram os cinco PMs que patrulhavam uma rua do bairro de Santana, em São Paulo, há uma semana. Um comerciante tinha sido assaltado e havia um suspeito no pedaço. Um negro. De acordo com os PMs, ele atirou três vezes. Errou. Mataram-no com dois tiros no peito. Junto ao seu corpo havia uma arma e no seu bolso, a carteira do comerciante.
Tudo teatro, farsa de três soldados, um cabo e um tenente. (Três deles já denunciados à Ouvidoria da Polícia, envolvidos em casos semelhantes.) O negro não atirara em ninguém. A carteira foi posta no seu bolso por um dos PMs. Em diversas ocasiões repetiu-se que Flávio Ferreira Sant'Anna, morto aos 28 anos, era dentista. E se fosse lixeiro desempregado?
O governador paulista Geraldo Alckmin e seu secretário de Segurança, o promotor Saulo de Castro Abreu Filho, não devem olhar para Flávio como um dentista, mas como o filho de Jonas Sant'Anna, cabo aposentado da PM. É ele quem fala: "Sei como é o sistema. Tenho certeza de que, se ele fosse branco, não morreria".
Era uma vez um governador chamado Mário Covas. Na sua Secretaria de Segurança funcionava uma coisa chamada Proar, ou Programa de Acompanhamento de PMs Envolvidos em Ocorrências de Alto Risco. Por trás dessa nomenclatura pernóstica operava um sistema no qual todos os policiais militares envolvidos em tiroteios que resultassem em morte de cidadãos eram submetidos a um programa de reciclagem. O policial era inscrito num curso que durava um mês. Depois, esperava outros cinco para retornar às suas funções. Iam para a reciclagem até os PMs que tivessem atirado em legítima defesa ou aqueles que apenas estivessem na cena. O secretário de Segurança de São Paulo, José Afonso Silva, explicou a essência do programa: "Queremos evitar novas mortes e preservar nossos homens".
Em menos de um ano, o Proar baixou a mortandade de 592 casos para 368. Mesmo assim, a PM paulista ficou com um índice oito vezes maior que o da polícia de Nova York. São muitas as pessoas capazes de associar a capacidade da polícia de matar gente com a segurança do povo que ela hipoteticamente protege, mas nem mesmo o marqueteiro do governador Geraldo Alckmin seria capaz de dizer que São Paulo é uma cidade oito vezes mais segura que Nova York.
Em 1998, o candidato Paulo Maluf anunciou que, se fosse eleito governador de São Paulo, fecharia o Proar. O companheiro José Genoino, candidato do PT, pegou mais leve: "Não é por toda morte que o policial precisaria passar pelo programa. Você tem de separar o que é erro, perversidade, do que é circunstância de uma ação delicada da polícia".
Morreu o governador Mário Covas e assumiu o doutor Alckmin. Passado algum tempo, o Proar foi à breca, apesar de ser defendido pelo comandante da PM, coronel Rui Cesar Melo. Há menos de duas semanas, ele contou: "Sei muito bem que a minha defesa do Proar pesou consideravelmente na minha exoneração, mas era a atitude que eu deveria assumir, e assim procedi, na defesa das minhas convicções".
Amparados em suas convicções, Alckmin e o secretário Saulo de Castro praticam uma política de segurança que no ano passado resultou na morte de 868 pessoas, um aumento de 29% em relação a 2002 e de 136% sobre 1996.


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