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CHOQUE ENTRE PODERES
Presidente do STF vê mais risco em MPs
Legislativo não faz
ameaça, diz Mello
CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
da Sucursal de Brasília
Para o presidente do Supremo Tribunal Federal, Celso de
Mello, no cenário político
atual, "não há
nenhum comportamento do Legislativo que
possa ser considerado ofensivo ao
princípio da separação dos Poderes da República."
Em entrevista de 105 minutos à
Folha, na sexta-feira, embora sem
citar diretamente a CPI do Judiciário instaurada no Senado, Mello
deixou claro que, na sua opinião,
são as ações do Executivo e do próprio Judiciário, não a CPI, que
ameaçam a ordem constitucional.
Para ele, a "compulsão legislativa
(do Executivo) faz o Brasil viver
sob o signo do efêmero" porque as
medidas provisórias introduzem
elemento normativo instável na
ordem legal, por serem provisórias, e essa "distorção institucional
afeta e compromete o princípio da
separação dos Poderes".
O Judiciário, por meio de resoluções administrativas de alguns
Tribunais Regionais e Superiores,
também tem tido "comportamento desviante e ilegítimo" ao dispor
sobre assuntos que a Constituição
exige que sejam regulamentados
por lei.
Trinta anos depois de formado
(pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo), um mês
antes do fim de seu mandato de
dois anos como presidente do STF
(o mais jovem de sua história),
Mello, 53, paulista de Tatuí está no
olho do furacão das desavenças
entre os Poderes da União. A seguir, trechos da entrevista:
Folha - Pouco antes de assumir a
presidência do STF, o sr. deu entrevista a Luis Francisco de Carvalho
Filho, da Folha, na qual o assunto
dominante foi o conflito entre Legislativo e Judiciário. Seu mandato
está no fim, e o problema se agravou. Qual sua perspectiva das relações entre Poderes agora?
Celso de Mello - No plano institucional brasileiro, o aspecto de suma gravidade que tem me preocupado nestes últimos dois anos é a
apropriação institucional pela Presidência da República de poderes
legislativos, transformando as medidas provisórias em meio de legislação usado ordinariamente,
quando a Constituição, ao definir
essa forma excepcional de legislação, estabeleceu que só pode ser
usada em caráter extraordinário.
Folha - O atual presidente da República foi o único a fazer isso?
Mello - Não. Mas nesta administração é que o problema se tornou
mais agudo. Esse poder institucional gera grave distorção: desloca o
eixo da elaboração de leis para o
Executivo, quando ela é uma função clássica, típica, natural do Legislativo. O presidente da República se transformou no grande legislador do país. Essa sua compulsão
legislativa faz o Brasil viver sob o
signo do efêmero porque as medidas provisórias, por serem provisórias, introduzem um elemento
normativo instável. Essa distorção
institucional afeta e compromete o
princípio da separação dos Poderes, uma das cláusulas pétreas, a alma da nossa Constituição.
Folha - O que é possível se fazer
para eliminar essa distorção?
Mello - O Congresso Nacional está tendo uma reação muito importante para limitar de modo claro o
desempenho do presidente da República em seu desempenho normativo. Há um projeto de emenda
constitucional que busca aperfeiçoar esse sistema. É importante
que isso ocorra.
Folha - O sr. acha que não devem
existir medidas provisórias?
Mello - Instrumentos excepcionais podem existir e existem em
muitas democracias, como Espanha, Itália, Portugal, Alemanha.
Mas devem ser utilizados apenas
em situações de crise, que exigem
ação rápida. O que preocupa é a
banalização do uso das medidas
provisórias. Na Itália, em 1996, a
Corte Constitucional repeliu, em
unânime votação, a possibilidade
de o governo reeditar provimentos
normativos de caráter provisório.
Folha - Em relação às recentes divergências entre Legislativo e Judiciário, qual a sua opinião?
Mello - O regime político brasileiro consagra os poderes limitados. Nenhum Poder deve ter hegemonia sobre os demais. Nenhum
Poder é senhor absoluto de suas
atribuições. Esse princípio vigora
desde a Carta do Império, de 25 de
março de 1824, a Constituição brasileira que teve vigência mais longa. No seu artigo nono, de grande
atualidade, já afirmava: "a divisão
e harmonia dos Poderes políticos é
o princípio conservador dos direitos dos cidadãos é o mais seguro
meio de fazer efetivas as garantias
que a Constituição oferece."
Folha - Na sua opinião, o que
mais ameaça esse princípio hoje
em dia no Brasil?
Mello - Hoje, esse princípio está
ameaçado no Brasil e, não importa
o grau da agressão contra ele, isso
já traz gravíssimas consequências.
A expansão desordenada dos poderes da Presidência da República
com as medidas provisórias é um
dos exemplos mais marcantes de
atuação que descaracteriza esse
princípio da separação dos Poderes. Mas o comportamento de órgãos do Poder Judiciário também
tem usurpado a competência do
Poder Legislativo.
Folha - Como isso acontece?
Mello - O STF já cassou mais de
30 resoluções administrativas de
Tribunais Regionais e Superiores
que, desconsiderando o princípio
da separação dos Poderes, dispuseram sobre matérias sobre as
quais a Constituição exige a existência de lei para regulamentar.
Folha - Então, do Legislativo, o sr.
não vê ameaças ao princípio de separação dos Poderes?
Mello - No cenário político brasileiro atual, não vejo nenhum comportamento do Legislativo que
possa ser considerado ofensivo ao
princípio da separação dos poderes. O exercício regular de suas
atribuições constitucionais não
constitui ameaça ou ofensa.
Folha - Há dois anos, o sr. defendia que a possibilidade de impeachment, atualmente existente
apenas contra os ministros do STF
no Poder Judiciário, também pudesse ser estendida a outros juízes.
O que acha desse tema agora?
Melo - Estou cada vez mais convencido da necessidade de controle externo sobre o Poder Judiciário. Fiscalização e responsabilidade são princípios do modelo republicano. A fiscalização externa não
compromete o princípio da separação dos Poderes. Ela não quer dizer que se vá exercer censura sobre
o pensamento dos magistrados. A
independência dos juízes deve ser
preservada. Mas ela não é uma finalidade em si própria. É preciso
ter juízes independentes para se
poder ter cidadãos livres.
Folha - O que esse sistema de
controle externo vai controlar?
Mello - O que se pretende é impedir abusos funcionais e desmandos
administrativos. A Constituição já
prevê, em seu artigo 70, o controle
externo pelo Congresso Nacional
sobre o Judiciário.
Folha - Por que só os ministros do
STF e não os demais juízes federais
podem sofrer impeachment?
Mello - A lei 1.079, de 10 de abril
de 1950, ainda em vigor, definiu os
crimes de responsabilidade, pelos
quais presidente da República, ministros de Estado e ministros do
STF podem ser punidos. Está no
seu artigo 39. São infrações político-administrativas ou procedimentos incompatíveis com a honra, a dignidade, o decoro das suas
funções. Cabe ao STF, desde a
Constituição de 1891, julgar os demais magistrados federais.
Folha - Isso tem acontecido?
Mello - Não. Porque não há lei
votada pelo Congresso Nacional
definindo crimes de responsabilidade para os demais magistrados.
Folha - Não se pode usar a lei de
1950 por analogia para julgá-los?
Mello - Não é possível, em matéria de restrição de direito, usar da
analogia para prejudicar uma parte, só para beneficiá-la.
Folha - Não há um projeto de lei
para mudar essa situação?
Mello - Houve um, do então senador e atual governador do Espírito Santo, José Ignácio, do fim dos
anos 80. Não sei que destino teve.
Mas é essencial, enquanto não se
define a questão da fiscalização externa do Judiciário, que seja votada
uma lei para definir os crimes de
responsabilidade de todos os magistrados para dar mais efetividade
aos princípios republicanos de fiscalização e responsabilidade.
Folha - Como pode ser esse controle externo do Judiciário?
Mello - Há modelos que devem,
não ser copiados, mas submetidos
a uma confrontação crítica. Na Argentina, há um Conselho da Magistratura, com 20 membros, só 5
deles magistrados. Na França, o
Conselho Superior da Magistratura, com 12 membros, 6 magistrados. O importante é atender à necessidade inadiável de fiscalização
externa, não para censurar ou
comprometer a independência dos
juízes mas para torná-los responsáveis diante da sociedade.
Folha - O sr. acha que os juízes
devem ser eleitos, como são, em
nível local, nos EUA?
Mello - Isso talvez traga consigo
graves inconvenientes. Não deve
haver modelo de cooptação para
impedir a criação de sistemas de
dinastia e o comprometimento da
imparcialidade dos juízes. Há outros modelos. No Japão, o nome do
juiz nomeado para a Corte Superior é submetido à população na
eleição parlamentar seguinte à nomeação e, depois, de novo, a cada
dez anos. Se a maioria dos eleitores
rejeitar seu nome, ele é demitido.
Folha - O sr. é a favor de mandatos para os juízes?
Mello - Mandatos para juízes, só
para os de tribunais constitucionais, como ocorre na Espanha, Itália, Portugal e Alemanha, por
exemplo. Para magistrados ordinários, o mandato pode caracterizar uma situação que pode comprometer sua independência e imparcialidade, como ocorreu no Paraguai, durante o regime de Alfredo Stroessner, quando a investidura dos juízes era reapreciada pelo
presidente da República a cada
cinco anos.
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