São Paulo, domingo, 11 de abril de 1999

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CHOQUE ENTRE PODERES
Presidente do STF vê mais risco em MPs
Legislativo não faz ameaça, diz Mello

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
da Sucursal de Brasília


Para o presidente do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, no cenário político atual, "não há nenhum comportamento do Legislativo que possa ser considerado ofensivo ao princípio da separação dos Poderes da República."
Em entrevista de 105 minutos à Folha, na sexta-feira, embora sem citar diretamente a CPI do Judiciário instaurada no Senado, Mello deixou claro que, na sua opinião, são as ações do Executivo e do próprio Judiciário, não a CPI, que ameaçam a ordem constitucional.
Para ele, a "compulsão legislativa (do Executivo) faz o Brasil viver sob o signo do efêmero" porque as medidas provisórias introduzem elemento normativo instável na ordem legal, por serem provisórias, e essa "distorção institucional afeta e compromete o princípio da separação dos Poderes".
O Judiciário, por meio de resoluções administrativas de alguns Tribunais Regionais e Superiores, também tem tido "comportamento desviante e ilegítimo" ao dispor sobre assuntos que a Constituição exige que sejam regulamentados por lei.
Trinta anos depois de formado (pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo), um mês antes do fim de seu mandato de dois anos como presidente do STF (o mais jovem de sua história), Mello, 53, paulista de Tatuí está no olho do furacão das desavenças entre os Poderes da União. A seguir, trechos da entrevista:
Folha - Pouco antes de assumir a presidência do STF, o sr. deu entrevista a Luis Francisco de Carvalho Filho, da Folha, na qual o assunto dominante foi o conflito entre Legislativo e Judiciário. Seu mandato está no fim, e o problema se agravou. Qual sua perspectiva das relações entre Poderes agora?
Celso de Mello - No plano institucional brasileiro, o aspecto de suma gravidade que tem me preocupado nestes últimos dois anos é a apropriação institucional pela Presidência da República de poderes legislativos, transformando as medidas provisórias em meio de legislação usado ordinariamente, quando a Constituição, ao definir essa forma excepcional de legislação, estabeleceu que só pode ser usada em caráter extraordinário.
Folha - O atual presidente da República foi o único a fazer isso?
Mello -
Não. Mas nesta administração é que o problema se tornou mais agudo. Esse poder institucional gera grave distorção: desloca o eixo da elaboração de leis para o Executivo, quando ela é uma função clássica, típica, natural do Legislativo. O presidente da República se transformou no grande legislador do país. Essa sua compulsão legislativa faz o Brasil viver sob o signo do efêmero porque as medidas provisórias, por serem provisórias, introduzem um elemento normativo instável. Essa distorção institucional afeta e compromete o princípio da separação dos Poderes, uma das cláusulas pétreas, a alma da nossa Constituição.
Folha - O que é possível se fazer para eliminar essa distorção?
Mello -
O Congresso Nacional está tendo uma reação muito importante para limitar de modo claro o desempenho do presidente da República em seu desempenho normativo. Há um projeto de emenda constitucional que busca aperfeiçoar esse sistema. É importante que isso ocorra.
Folha - O sr. acha que não devem existir medidas provisórias?
Mello -
Instrumentos excepcionais podem existir e existem em muitas democracias, como Espanha, Itália, Portugal, Alemanha. Mas devem ser utilizados apenas em situações de crise, que exigem ação rápida. O que preocupa é a banalização do uso das medidas provisórias. Na Itália, em 1996, a Corte Constitucional repeliu, em unânime votação, a possibilidade de o governo reeditar provimentos normativos de caráter provisório.
Folha - Em relação às recentes divergências entre Legislativo e Judiciário, qual a sua opinião?
Mello -
O regime político brasileiro consagra os poderes limitados. Nenhum Poder deve ter hegemonia sobre os demais. Nenhum Poder é senhor absoluto de suas atribuições. Esse princípio vigora desde a Carta do Império, de 25 de março de 1824, a Constituição brasileira que teve vigência mais longa. No seu artigo nono, de grande atualidade, já afirmava: "a divisão e harmonia dos Poderes políticos é o princípio conservador dos direitos dos cidadãos é o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias que a Constituição oferece."
Folha - Na sua opinião, o que mais ameaça esse princípio hoje em dia no Brasil?
Mello -
Hoje, esse princípio está ameaçado no Brasil e, não importa o grau da agressão contra ele, isso já traz gravíssimas consequências. A expansão desordenada dos poderes da Presidência da República com as medidas provisórias é um dos exemplos mais marcantes de atuação que descaracteriza esse princípio da separação dos Poderes. Mas o comportamento de órgãos do Poder Judiciário também tem usurpado a competência do Poder Legislativo.
Folha - Como isso acontece?
Mello -
O STF já cassou mais de 30 resoluções administrativas de Tribunais Regionais e Superiores que, desconsiderando o princípio da separação dos Poderes, dispuseram sobre matérias sobre as quais a Constituição exige a existência de lei para regulamentar.
Folha - Então, do Legislativo, o sr. não vê ameaças ao princípio de separação dos Poderes?
Mello -
No cenário político brasileiro atual, não vejo nenhum comportamento do Legislativo que possa ser considerado ofensivo ao princípio da separação dos poderes. O exercício regular de suas atribuições constitucionais não constitui ameaça ou ofensa.
Folha - Há dois anos, o sr. defendia que a possibilidade de impeachment, atualmente existente apenas contra os ministros do STF no Poder Judiciário, também pudesse ser estendida a outros juízes. O que acha desse tema agora?
Melo -
Estou cada vez mais convencido da necessidade de controle externo sobre o Poder Judiciário. Fiscalização e responsabilidade são princípios do modelo republicano. A fiscalização externa não compromete o princípio da separação dos Poderes. Ela não quer dizer que se vá exercer censura sobre o pensamento dos magistrados. A independência dos juízes deve ser preservada. Mas ela não é uma finalidade em si própria. É preciso ter juízes independentes para se poder ter cidadãos livres.
Folha - O que esse sistema de controle externo vai controlar?
Mello -
O que se pretende é impedir abusos funcionais e desmandos administrativos. A Constituição já prevê, em seu artigo 70, o controle externo pelo Congresso Nacional sobre o Judiciário.
Folha - Por que só os ministros do STF e não os demais juízes federais podem sofrer impeachment?
Mello -
A lei 1.079, de 10 de abril de 1950, ainda em vigor, definiu os crimes de responsabilidade, pelos quais presidente da República, ministros de Estado e ministros do STF podem ser punidos. Está no seu artigo 39. São infrações político-administrativas ou procedimentos incompatíveis com a honra, a dignidade, o decoro das suas funções. Cabe ao STF, desde a Constituição de 1891, julgar os demais magistrados federais.
Folha - Isso tem acontecido?
Mello -
Não. Porque não há lei votada pelo Congresso Nacional definindo crimes de responsabilidade para os demais magistrados.
Folha - Não se pode usar a lei de 1950 por analogia para julgá-los?
Mello -
Não é possível, em matéria de restrição de direito, usar da analogia para prejudicar uma parte, só para beneficiá-la.
Folha - Não há um projeto de lei para mudar essa situação?
Mello -
Houve um, do então senador e atual governador do Espírito Santo, José Ignácio, do fim dos anos 80. Não sei que destino teve. Mas é essencial, enquanto não se define a questão da fiscalização externa do Judiciário, que seja votada uma lei para definir os crimes de responsabilidade de todos os magistrados para dar mais efetividade aos princípios republicanos de fiscalização e responsabilidade.
Folha - Como pode ser esse controle externo do Judiciário?
Mello -
Há modelos que devem, não ser copiados, mas submetidos a uma confrontação crítica. Na Argentina, há um Conselho da Magistratura, com 20 membros, só 5 deles magistrados. Na França, o Conselho Superior da Magistratura, com 12 membros, 6 magistrados. O importante é atender à necessidade inadiável de fiscalização externa, não para censurar ou comprometer a independência dos juízes mas para torná-los responsáveis diante da sociedade.
Folha - O sr. acha que os juízes devem ser eleitos, como são, em nível local, nos EUA?
Mello -
Isso talvez traga consigo graves inconvenientes. Não deve haver modelo de cooptação para impedir a criação de sistemas de dinastia e o comprometimento da imparcialidade dos juízes. Há outros modelos. No Japão, o nome do juiz nomeado para a Corte Superior é submetido à população na eleição parlamentar seguinte à nomeação e, depois, de novo, a cada dez anos. Se a maioria dos eleitores rejeitar seu nome, ele é demitido.
Folha - O sr. é a favor de mandatos para os juízes?
Mello -
Mandatos para juízes, só para os de tribunais constitucionais, como ocorre na Espanha, Itália, Portugal e Alemanha, por exemplo. Para magistrados ordinários, o mandato pode caracterizar uma situação que pode comprometer sua independência e imparcialidade, como ocorreu no Paraguai, durante o regime de Alfredo Stroessner, quando a investidura dos juízes era reapreciada pelo presidente da República a cada cinco anos.



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